quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Balneário, insubordinação e cipoadas

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José Pedro Araújo

                Já tive oportunidade de homenagear o riacho Firmino, meu caudaloso rio que me emocionou com suas águas cálidas e correntes, e que se transformava, na minha visão pequenina, de um simples filete de água em um tenebroso e desconhecido mar oceano. O período a que me refiro agora antecede ao das traquinagens no Firmino. Digamos que seja a gênese de um atrevido nadador de águas rasas; um desbravador de mares de pequeno curso.

                Os Barreiros eram pequenos ajuntamentos de água que se acumulava ao lado da estrada para Barra do Corda, logo na saída do Curador. Um primo meu, também companheiro de aventuras, orgulhosamente denominava os barreiros de “Valetas”. Nunca chamava aqueles pequenos açudes de Barreiros, como todos os outros banhistas falavam. Parecia-me querer imitar alguém da sua família. Sempre desconfiei disso. Mas, de qualquer forma, que sejam barreiros ou valetas, foi naquele pobre ajuntamento de águas pluviais que aprendi a nadar. E foi por causa deles também que levei a maioria das surras que minha mãe me aquinhoou por querer me transformar num menino-peixe. Temia que eu me afogasse naquelas águas tão poucas.

                Na verdade, a parte mais funda da principal das lagoinhas, aquela que escolhíamos para nosso balneário, a água mal me chegava ao nariz. Mas, mesmo assim, mamãe temia pelo encerramento da minha passagem por esse vale de lágrimas. Nem desconfiava, porém, que aqueles momentos ficariam para sempre na minha memória como algo especial na minha aprendizagem para a vida. Pois foi lá que me libertei do medo do perigo de naufragar em águas em volume realmente significativo. Como aconteceu no velho e querido rio Parnaíba, que atravessei na cota máxima, certa época, de um lado ao outro, apenas para testar a minha competência no ramo, e em um momento em que transbordava de margem a margem. E ainda estou aqui contando a história, prova de que as “aulas” que tomei nos Barreiros foram muito importantes para mim.

                Aquelas pequenas poças d’água acumuladas no período das chuvas, que iam de dezembro a final de abril, atraia a meninada toda da região da Bomba, como era conhecida a parte da cidade na qual morávamos. A água acumulada era de uma coloração verde escura, límpida e calma como são as águas de lagoas. Isso, antes de entramos nela. Depois, com o passar das horas, ia tomando uma coloração vermelho-escura, ficando depois com aquele aspecto barrento, sujo, fazendo com que os micro fragmentos de argila ficassem impregnados em nossos cabelos e na nossa pele. E isso era por demais denunciador. Pois, não bastasse os olhos vermelhos a nos denunciar, a pele também atestava que havíamos desobedecido às ordens de nunca mais voltar àqueles buracos cheios de água. E não adiantava negar. Minha mãe havia adquirido uma experiência ímpar para diagnosticar se havíamos ou não praticado o ato transgressor. Era só passar a unha na pele de um dos braços, e lá ficava um risco comprido, denunciador, a atestar que o período passado dentro das águas dos barreiros haviam sido longo. Depois, era aguentar as consequências.Cipoadas doloridas complementava o meu dia.

                Entretanto, na minha lógica de menino desobediente, a punição valia a pena. A dor das cipoadas recebidas sumia rapidamente, enquanto o prazer adquirido naqueles momentos de puro deleite demorava a sumir. Ou não sumia jamais. Como prova este momento em que escrevo estas transgressoras linhas.

                Hoje, passo a acreditar que minha mãe tinha razão em não me querer tomando banho naquelas lagoinhas. E não apenas pelo fato de eu correr risco de afogamento. O que, apesar da pequena profundidade, sempre poderia ocorrer, uma vez que a meninada extrapolava nas brincadeiras pesadas. Mas, e também, porque ali aconteciam coisas que deixaria qualquer mãe em estado de alerta, caso ouvisse as conversas que ali aconteciam. As brigas também eram frequentes. De quando em vez algum garoto não gostava da desfeita que o outro havia lhe feito, e a pancadaria corria solta. Moleque tinha que está esperto, caso quisesse se dar bem naquele democrático espaço, onde crianças em idade tenra tinha que conviver como meninos já taludos, loucos de vontade de demonstrar isso para outros menos formados fisicamente. No meu caso, apesar de miudinho, um dos menores a frequentar o local, tinha a proteção de alguns primos maiores. Então, o risco corrido era calculado.

                Passei recentemente pelo local onde ficavam os Barreiros. Lá, hoje, só existe mato e lixo. Nem parece que ali já existiu um dia um balneário por excelência. E que nele muitos garotos da minha idade aprenderam a nadar. Parafraseando o poeta Drummond, “os Barreiros são apenas fotografias na parede da memória".

8 comentários:

  1. Que maravilha de narração, me vi banhando na Baixa Crisóstomo. Era a principal lagoa da minha pequena lagos. Todas essas presepadas vivi na minha infância. O risco no braço era o sinal que nos denunciava, anulava todas nossas negativas.
    Excelente, meu amigo José Pedro.

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    1. É isso mesmo. E ninguém ficava obeso. Obrigado pela gentileza.

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  2. Excelente descrição. Quase todo memino do interior passou por isso. Boas lembranças.

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    1. Só os meninos nascidos no interior mesmo. Os da cidade grande tinham que inventar as suas próprias brincadeiras.

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  3. Não sei como sobrevivemos.
    Foi deste tem que surgiram ditados como "o boi que não tem rabo Deus abana", "O crime compensa".

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    1. Isso mesmo, primo. Deus abona as nossas faltas infantis e protege dos perigos.

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  4. Meu caro amigo, eu também me arrisquei muitas vezes nessas águas impróprias para o consumo e banho humanos, pois nunca imaginei que a preocupação maior da minha mãe não era somente pelas águas barrentas, por um provável afogamento, mas também pelo que não viámos na superfície das águas, pois aquelas águas escondiam verdadeiras colônias de vírus e bactérias, ovos e cistos de helmintos e protozoários, respectivamente, que após os banhos inocentes e infantis povoavam o nosso organismo, instalando nele um zoológico microbiológico e parasitário que quando não nos matava nos imunizava por toda vida, eis a razão pela qual somos tão resistentes às patologias letais da modernidade, tais como a Covid-19 e demais vírus do gênero corona, influenza, adenovírus, bem como parasitas e protozoários de todas as proles infecciosas.

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