José Pedro Araújo
As mães têm razão em
se preocupar quando um filho ganha o mundo atrás da sua própria sorte. No
geral, elas ficam imaginando que tipo de problemas vamos encontrar pela vida
afora, quais os perigos que correremos, e isso faz com que se perguntem se os
filhos foram realmente bem orientados e se saberão enfrentar as vicissitudes
que encontrarão pelo caminho. Na maioria das vezes, não estão. Não sabemos como reagir a determinado tipo de
óbice que encontraremos pela frente. Mas, o homem foi dotado de inteligência
exatamente para saber encontrar saídas para qualquer tipo de dificuldade, desde
as mais simples até aquelas em que sua própria vida está em jogo. Na maioria das
vezes, com alguns arranhões e uma dose excessiva de sofrimento, nos safamos com
certa competência dos entraves mais difíceis que a vida se nos apresenta.
Comigo não aconteceu
diferente. Quando sai de casa, contava com meus quinze anos incompletos e encontrei
um mundo cheio de novidades a desafiar o meu aprendizado doméstico. Pelo jeito,
ainda não parei de tentar aprender como me situar bem nesse ambiente que teima
em me por à prova continuamente e, na maioria das vezes, quando isso acontece,
vejo que as experiências adquiridas não foram suficientes, e ai tenho que usar
da criatividade para não sucumbir ao novo desafio. Posso dizer que já vi muita
coisa nesse mundo velho que eu nem de longe achava que fosse possível existir.
Coisas boas, coisas ruins, outras nem tanto. Situações de extrema beleza,
outras muito feias. Mas, sempre é possível nos depararmos com acontecimentos que nos
causem verdadeiro estupor. O certo é que vamos vivendo e aprendendo
continuamente, sempre viajando rumo ao desconhecido.
Quando atingi dezoito
anos, mudei-me para Recife, para cursar Engenharia Agronômica na Universidade
Federal Rural de Pernambuco. Fui morar no campus da própria Universidade, lugar
onde ficavam os estudantes com menor poder aquisitivo, pois os mais bem
aquinhoados financeiramente se organizavam em grupos e formavam uma nova
república. Quem procurava uma vaga para viver no próprio campus, sabia de
antemão que teria de obedecer a regras rígidas, enquanto que os moradores das
repúblicas de estudantes ditavam as suas próprias regras de convivência e, no
geral, possuíam mais liberdade de ação do que os primeiros. Não foi fácil me
acostumar à nova vida. Ali, no princípio, tive que organizar a minha vida
sozinho: lavar a minha própria roupa, me virar para arrumar comida quando o
final de semana chegava ou quando vinham os feriados prolongados; manter o
quarto de dormir em perfeita ordem era basilar, e me defender, construir o meu
próprio espaço em meio ao clima feroz que se instalava a todo começo de ano
letivo, quando os alojamentos recebem novos moradores. A propósito disto, tive
que sair às vias de fatos por duas ou três vezes, para mostrar para os colegas
que a minha estada ali era definitiva, pelo menos até a conclusão do curso. Era
assim na hora do jogo de futebol, na escolha do melhor local e da melhor
posição no beliche e, até mesmo, na hora de assistir a TV.
Antes disso, já vinha
acumulando as minhas experiências, vivendo em pensionatos dos mais diversos,
onde as coisas aconteciam muito diferente do que costumávamos ter em nossos
lares. Em São Luís
do Maranhão tive a oportunidade de conhecer alguns dos piores pensionatos da
face da terra. Geralmente ficavam localizados em algum dos prédios antigos
localizados na região velha da cidade, por dois motivos: por serem sempre muito
espaçosos, dando para acomodar muita gente, mas, principalmente, por serem de
baixo custo os seus aluguéis. Baixo preço porque estava, a maioria, em petição
de miséria, mais parecendo escombros de uma cidade abandonada. Geralmente,
também, as pessoas que se dedicavam a montar um pensionato desses, faziam assim
para ter alguma ocupação à total falta de outro meio de vida. Deste modo,
criavam a sua própria família em meio à estudantada que ia chegando para morar
com eles.
Certa vez, fui
residir em um velho prédio da Rua de Santana. A república estava em formação e
uma parte dos estudantes era originária da minha cidade. As acomodações eram
simplicíssimas: um grande salão foi dividido por tapumes de compensado de cerca
de um metro e oitenta centímetros de altura de modo que coubesse cerca de três
a quatro pessoas em um espaço de cerca de nove metros quadrados. As redes se
entrançavam umas nas outras e era comum acordarmos no meio da noite após tomar
um chute do colega que dormia ao lado. A comida também era de qualidade no
mínimo duvidosa e a quantidade também deixava a desejar, em uma época da vida
em que os jovens costumam comer muito. Assim, logo que as travessas chegavam às
mesas, a moçada avançava sem pena sobre elas, pois sabiam que quem ficasse por
último fatalmente ficaria com pouquíssima coisa, ou nada mesmo para por no
prato. A da carne, era a travessa que tinha a primazia de primeiro ser atacada.
Todos entravam de garfo em punho, pois se algum incauto metesse a mão ali,
corria sério risco de tê-la furada em vários lugares. Em suma: aquilo não era
lugar para principiantes ou envergonhados.
Residia ali gente de
todos os tipos, desde os mais experientes, até aqueles que estavam saindo de
casa pela primeira vez. Até mesmo duas moças que passavam por estudantes, mas,
que no fundo não passavam de garotas de programa, vieram morar conosco, para
deleite da maioria.
Este pensionato era
dirigido por uma senhora distinta, mas que precisava dele para sobreviver.
Deste modo, procurava economizar em tudo, especialmente no tocante a aquisição
de alimentos. Grande parte do que consumíamos vinha do interior, especialmente
os gêneros de primeira necessidade e menos perecíveis. Assim, a fava, um cereal
de que gosto muito era largamente utilizada por ser, naquela época, um produto
mais barato que o feijão. Certa feita, a nossa senhoria cozinhou uma quantidade
muito grande da fava que daria para a semana inteira e acomodou na geladeira
para retirar, por vez, somente a porção que considerava necessária. A presença
daquele cereal pré-cozido ali começou a contaminar com o seu cheiro a água que
bebíamos, de modo que além de ter que comer da mesma, ainda tínhamos que
bebê-la. A fava, quem já comeu sabe, é muito indigesta, e costuma provocar
grande flatulência em quem a consome de forma exagerada. Deste modo, lá pelo
meio da semana, já não aguentávamos mais nem sentir o cheiro da comida.
Reclamamos com a nossa senhoria do uso excessivo daquele cosido. Não funcionou.
Respondeu-nos que tinha cozinhado uma porção para a semana inteira, e não ia
desperdiçar nada.
Convocamos a
estudantada para uma tomada de posição e decidimos que seria drástica. E eu, um
dos mais veteranos, me encarreguei de por em prática o audacioso plano que
consistia em dar completo sumiço no que havia sobrado do cozido. Ai então, por
volta de meia-noite, quando a dona da pensão dormia profundamente, chamei um
ajudante e fomos até a geladeira e de lá retiramos a panela que continha a fava
pré-cozida. O cheiro de azedo tomou conta do ambiente de tal maneira que
ficamos preocupados que alguém viesse a acordar e nos flagrar praticando o ato irregular.
Felizmente nada disso ocorreu. Rapidamente saímos do prédio e ganhamos a rua,
descendo a ladeira que vai dar no Mercado Central. A noite estava tranquila e
uma leve brisa varria a cidade adormecida. Ao chegarmos a um terreno baldio, no
meio da ladeira, lançamos a panela com o que havia nela e retornamos para casa.
Na manhã seguinte, ao
dar pela falta da sua panela, a mulher indagou o que havíamos feito com ela. Respondemos,
obviamente, que não sabíamos de nada. Enfurecida ela nos disse que não sabia de
fato quem havia dado sumiço na sua fava, se não o abusado pagaria caro pelo gesto irresponsável. Mas, pelo modo que me olhou, foi como
se me acusasse sem palavras. Desde aquele dia a minha permanência naquele
pardieiro ficou comprometida. Não demorou muito e tive que me mudar para outro
patronato. A vida, longe de casa, nunca é fácil!
Precisamos desses episódios para validar nossa história de vida.
ResponderExcluirÉ verdade. Nas dificuldades é que procuramos e encontramos os caminhos a seguir pela vida a fora.
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