quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Herança

José Pedro Araújo


                O assunto do título acima está sobejamente tratado na literatura, pelo que me consta, pois é um tema que suscita uma série de enredos com várias nuances, ou vários finais. Machado de Assis foi um dos que tratou sobre ele em um conto, chamado A Herança. A jovem escritora americana Kiera Cass, caiu nas graças do público, inclusive o brasileiro, com uma serie de livros intitulados A herdeira. Outros autores cuidaram do tema de modo superficial, quase como enchimento para alongar ou acrescentar um pouco mais de páginas a determinado livro. É um tema instigante, portanto, e é tão poderoso que tem destruído ou desestruturado muitas famílias quando chega a hora da divisão do patrimônio deixado pelos pais. E isso se dá desde os primórdios da civilização, em todas as culturas, em todos os grupos familiares, em todas as classes sociais. A busca pelo maior ou o melhor naco do patrimônio deixado por seus progenitores, põe em lados opostos até mesmo quem antes jurava amizade eterna. Esse tema nunca envelhece, e é também muito citado nos folhetins para a televisão em razão do grau de discórdia que pode alimentar, da trama que pode suscitar.

                Recentemente ouvi uma história contada por um irmão meu, que a disse verdadeira, sobre uma disputa entre alguns irmãos pela herdade deixada pelos pais mortos. Com seu jeito meio jocoso de contar seus causos, ele afirmou que a tal desavença ocorreu no seio de uma família residente no velho e querido Curador. E como não me pediu segredo, repasso o que ouvi, com algum acréscimo, talvez. O fato aconteceu mais ou menos assim, salvo uma pitada de humor acrescentado por ele, ou por mim, ao relatar como o caso se deu.

               Em pouco tempo, morreram os pais de uma família de quatro irmãos. Eles deixaram para os filhos, como herança, apenas e tão somente uma pequena, mas bem estruturada propriedade rural. Antes da passagem do casal, porém, como a terra era relativamente pequena, dois desses irmãos já haviam partido para Brasília em busca de um lugar ao sol, conscientes de que a pequena propriedade não era suficiente para acomodar a todos. Ou até mesmo porque quisessem levar uma vida um pouco menos sacrificada. E esses dois irmãos se deram relativamente bem na capital federal. Arranjaram bons empregos e constituíram família ali. Prosperaram, enfim. Já o irmão mais velho, mais adaptado às coisas da roça, ficou ajudando o pai na tarefa de amanhar a terra e prover toda a família com o que conseguiam retirar dela. E foi desse trabalho ininterrupto, pesado, cansativo, que saíram os recursos para bancar os estudos dos dois irmãos que haviam escolhido outro caminho a seguir. Os tais que estavam vivendo e Brasília.

O irmão número quatro, nasceu com sérias complicações pós-parto, o que comprometeu a sua vida futura. Com problemas graves na fala e no sistema nervoso, tinha surtos periódicos que o leva a ficar um pouco agressivo, mas, bem cuidado pelos pais e pelo irmão, nunca havia causado mal maior a quem quer que fosse.

Pois bem. Falecido o velho chefe de família, algum tempo depois da esposa, os filhos residentes na capital vieram para a missa de sétimo dia, uma vez que não conseguiram tempo para comparecer ao seu sepultamento, assim como aconteceu ao lhes falecer a mãe. E nesse mesmo dia, alegando que precisavam voltar para os seus afazeres, reuniram-se, os três, para determinarem o que fazer com a herança deixada pelos pais.

Conversa vem, conversa vai, os dois irmãos mais bem postados e que haviam recebido uma educação diferenciada e a custa do trabalho do mais velho, conduziam a reunião e, logo, chegaram a uma proposta que julgaram ser a mais adequada para todos: propuseram vender a propriedade, único bem deixado pelos pais. Seria mais fácil dividir o dinheiro do que a terra, afirmaram com convicção e sabedoria. Depois, de tão longe, não tinham como administrar a gleba de terra que tocasse para eles, que não deveria ser muito grande. Seria até mesmo antieconômico, portanto impensável. 
O irmão que havia ficado em casa para ajudar na condução da propriedade, ficou calado o tempo todo enquanto os outros dois, mais sábios, procuravam uma saída para o caso. Algum tempo depois, instado pelos outros a falar o que achava da proposta, saiu-se com essa:

- A proposta que eu tenho é um pouco diferente da de vocês. Eu fico com toda a propriedade, só para mim. Ou então, não fico com nada. Vocês podem ficar com ela pra vocês. E façam o que bem entender: vendam, troquem, faça a doação para quem quiser. 

Não é preciso dizer que suas palavras causaram enorme surpresa aos outros dois. As esposas destes, então, que haviam acompanhado os maridos para prestar as últimas homenagens ao sogro falecido, sentiram-se ultrajadas com aquela proposta. Logo elas que tantos meneios aprovativos de cabeça haviam feito ao ouvirem a proposta mais que inteligente formatada pelos maridos! Tão surpresas ficaram que uma delas não se conteve e interpelou o cunhado.

- Você não acha que está sendo muito ambicioso, não? Seja menos egoísta, não queira ficar com tudo o que pertence também e por direito aos seus irmãos!

- Talvez eu não tenha me explicado bem, minha cunhada. Para mim só serve se eu ficar com tudo. Caso contrário, abro mão da minha parte sem o menor constrangimento. Não estou zangado, nem muito menos decepcionado com a proposta ouvida. Por outro lado, não trago um pingo de egoísmo na minha proposta. A única coisa que me esqueci de dizer, é que abro mão da minha parte em favor dos meus queridos irmãos, desde que eles fiquem com o Chicó também! – Chicó era o irmão doente, e que havia sido deixado à margem da discussão.

- Tomar conta do Chicó?  - responderam em uníssono. E logo as mulheres cuidaram de puxar os maridos para um canto para discutir a nova questão surgida.

Dois minutos depois, talvez menos disso, os dois brasilienses voltaram a conversar com o outro irmão.

- Lembramos de que saímos daqui porque a terrinha era pouca, insuficiente para todos nós. Você tem razão. O que tem aqui não dá pra todos nós. Vamos deixar as coisas como estão. Você vai administrando a fazenda, depois veremos o que fazer.

- Assim, não! Vamos formalizar o inventário nos termos que eu propus. Vocês não vieram aqui com este propósito? Até trouxeram suas amáveis esposas que nunca haviam pisado por aqui para visitar os sogros enquanto ainda vivos? Vamos concluir o inventário, manos. Preto no branco.

Os bacharéis se surpreenderam, mas acederam ante a possibilidade de tomarem conta do Chicó. E voltaram para casa, para o conforto da família, para seus empregos bem remunerados. Ficou para traz o irmão caipira com uma procuração que lhe dava amplos poderes para realizar o inventário da maneira que bem entendesse.

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