sábado, 17 de outubro de 2015

Vida de Agrônomo

José Pedro Araújo

Avalie um homem que acabou de receber o seu diploma universitário, e o encontrará a alguns metros do chão. Foi isso, pelo menos, o que aconteceu comigo. É verdade que me achava um pouco perdido, desorientado mesmo, sem saber como por em prática o que aprendi nos bancos da universidade. Mas também é verdade que a vaidade havia se apossado de parte de mim, a ponto de me achar um homem diferenciado, um candidato compenetrado à espera do seu prometido, e devido, brilhante futuro.

Agora imagine um homem apresentado ao mundo real. É bem provável que, caso não caia das nuvens, num tombo monumental, ganhe algumas esfregadas que irão arranhar o verniz fresquinho, e fraquinho, da sua falsa grandiosidade. Foi assim que aconteceu.

Como chegar ao primeiro emprego não havia sido problema, - após passar em um concurso relativamente fácil -, ingressei na EMATER poucos dias depois do certame. Tudo parecia correr dentro do script, apesar de não ser o emprego ideal, nem o salário fizesse jus ao meu nível de formação, senti-me no rumo certo. Paciência. Era só o primeiro degrau. Foi o que pensei. E assim, dois ou três dias depois, estava desembarcando na cidade de Bacabal, Maranhão, para assumir o meu posto de trabalho. É certo que o ônibus velho e desconfortável que havia me levado até ali, tinha servido para baixar um pouco a minha bola, levando-me no rumo de um futuro que nem de longe pensava ser o que me estava destinado.  Mas as coisas não parariam por ai.  

Ao me apresentar ao Coordenador Regional da unidade, foi-me dito que eu deveria embarcar no dia seguinte para um município de nome Lago Verde, que eu nunca tinha ouvido falar. Iria instalar o escritório da empresa naquela povoação que, a bem da verdade, não ficava muito distante da regional. Sem problema. Desafios me fazem bem. Fazem bem a qualquer pessoa, dirão. No dia seguinte, duas da tarde, lá estava eu novamente na rodoviária da cidade para tomar o meu ônibus com destino a Lago Verde.

Mais uma decepção. O trambolho que encostou na passarela de embarque poderia ser chamado de tudo, menos de ônibus. Estado era lastimável, o que fazia com que o outro que me trouxera de São Luís no dia anterior parecesse um expresso, na acepção da palavra, o barulhento coletivo encobriu a todos com uma fumaça preta e malcheirosa.  E eu não tive nem tempo para incorporar a minha decepção. O motorista, que havia descido rapidamente para a plataforma de embarque foi logo gritando que todos precisavam se apressar, pois ele precisava pegar a estrada, tinha horário para cumprir.  

Com se já estivessem acostumados com a ordem do comandante daquele autocarro, houve uma correria de passageiros para acomodarem suas bagagens no bagageiro, e quase me derrubam. Atropelaram-me sem respeito. Equilibrei-me e, rapidamente, juntei a minha mala e fui procurar acomodação para ela também. Procurei um cantinho isolado, mas logo vi minha porta bagagem ser soterrada por uma montanha de volumes. Lá se foi a minha mala nova, pensei. Enquanto estava pensando assim, fui empurrado por alguém que tentava colocar no bagageiro um leitão vivo e esguichando feito um endemoniado. Um porco junto à bagagem, fui reclamando ao motorista que se mantinha impassível, àquela hora segurando a tampa do bagageiro para ela não achatar a quem tratava de acomodar suas coisas lá. Foi ai que vi que alguém já haviam colocado lá um engradado cheio de galinhas. Desisti de reclamar e tentei entrar no veículo. Lá dentro a confusão era geral. Gente tentando empurrar outras bagagens no bagageiro interno, como se o troço fosse feito de elástico e se expandisse para comportar o volume que ele tentasse colocar lá dentro. O corredor, já que o pessoal continuava em pé, estava entupido. E, àquela hora, o calor que fazia no interior da lata-velha, era de deixar qualquer um louco da vida. E era um empurra-empurra que só terminou quando o ônibus já havia tomado a estrada. Como num graneleiro, as coisas foram se acomodando por si só. 

Com muito custo, consegui um lugarzinho na janela, no assento sobre os pneus traseiros. Àquela altura, a minha autoestima estava muito baixa. Um doutor não merecia aquilo. Mas, fazer o que? Era melhor relaxar e aproveitar a paisagem que se descortinava pela janela. Mas, como relaxar, se a tal poltrona tinha o encosto voltado para a frente, reduzindo o ângulo de noventa graus das normais em pouco mais de oitenta. Fiquei com o rosto quase enfiado no encosto da poltrona da frente. Com os dois braços apoiados nas coxas, permaneci por cerca de quarenta minutos a uma hora assim. De vez em quando conseguia olhar pela janela para apreciar a paisagem. Decorrido esse tempo, vi que o coletivo deixou a BR e tomou uma estrada de piçarra. Ai a poeira veio se somar a todas as misérias que o maldito transporte nos impingia. E o transporte começou também a sacolejar como se quisesse acomodar direito os passageiros no seu interior. Andamos assim cerca de meia hora mais. Depois disso, o bichão parou e o motorista desligou o motor. O que teria acontecido? – Dirigi-me ao meu companheiro de bancada. “O ônibus já vai até aqui”. – respondeu-me – “Tem um atoleiro muito grande ai na frente impedindo a gente de passar”.

Ninguém tinha me avisado sobre isso. E agora?

Parei de frente ao motorista e indaguei-lhe como íamos fazer o resto do trajeto. E ele, calmamente, respondeu-me: “a pé”. A pé e com a mala na cabeça, desesperei-me. E ele, olhando com pena da minha pouca experiência, avisou-me que logo na frente tinha algumas carroças que, contratadas, podiam levar a minha mala.

- Ainda por cima, tenho que pagar? – revoltei-me.  E ele, do alto da sua autoridade de comandante do nosso coletivo, disse-me que apenas se não quisesse levar a mala na cabeça. Pronto. A conversa estava encerrada, foi o que ele deu entender ao pedir-me que saísse da frente para dar passagem pra os outros passageiros.

Depois de descer e apanhar a minha mala completamente amassada, fiz o que a maioria dos passageiros estavam fazendo: corri até a primeira carroça e contratei o transporte da minha bagagem, depois de perguntar se estávamos  perto da nossa cidade.

- Sim. Apenas dez a doze quilômetros daqui. Já a gente chega lá.

Quase tive um troço. Aquele dia não merecia existir. Que dia aziago!

Tomei a estrada também. Caso não me apressasse, não acompanharia a carroça com a minha mala que já tinha partido rapidamente. A carga da carroça ia por cima. A bagagem havia tomado uma altura louca, e precisou ser amarrada para não cair na lama que inundava o caminho. Consegui caminhar por vinte minutos. Caminhar é a forma de dizer. Na verdade, sai deslizando na lama enquanto me equilibrava para não cair. Depois desse tempo, cansado, olhei para a carga e perguntei ao carroceiro se eu podia subir no veículo também. Ele me respondeu que sim.

Bom. Ia anoitecendo quando entramos na cidade. O acesso era feito por uma rua comprida e sinuosa, sem calçamento, que ia de uma ponta a outra da comunidade. E parecia ser única, mas, a bem da verdade, não era. Alguns pedaços de ruas saiam perpendicularmente e logo se interrompiam. Assim, a rua que trafegávamos não era a única, mas era a mais importante, a principal, como parece existir em todas as cidades do interior.

Bateu-me uma tristeza. Isso era demais para a minha autoridade. Um doutor agrônomo formado na renomada Universidade Federal Rural de Pernambuco, ter que tomar contato com o seu local de trabalho daquela forma, e ainda por cima sobre uma carroça atupetada de bagagem. Só não voltei para trás porque não tinha como. Parabéns a todos os agrônomos desse imenso Brasil!

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