quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Diário de um Náufrago (Capítulo IV)




José Pedro Araújo


TEM MAIS ALGUÉM POR AQUI!

Quatro ou cinco dias depois, aproveitei o dia de sol, coisa rara naqueles tempos, e voltei ao local. Passei pelo velho navio, mas não tive vontade de subir nele e prossegui. Também não tomei a trilha para subir ao alto do morro e continuei bordeando a ilha pela praia até chegar a um ponto distante, a umas duas horas de caminhada. Parecia uma pequena enseada, linda e com uma prainha estreita, imagem típica de um paraíso terreal.
Observei que partia, desde a praia, um caminho para o interior da ilha, uma rota bem trilhada, e segui por ele até certo ponto, quando a vegetação foi se fechando e tomei um caminho bem mais estreito. Já seguia por ele há pelo menos cinco minutos, quando trombei com alguma coisa. Senti uma resistência tênue, quase imperceptível, um leve roçar nas minhas pernas. Mas, como estava em estado total de alerta, retrocedi um pouco e abaixei-me para observar melhor. Vi uma espécie de linha esticada, um fio transparente que atravessava o caminho. Mais à frente, outro, e depois mais outro. Eram fios demais para ser coincidência. Segui para os lados e vi que as linhas se juntavam e se amarravam em outra mais grossa e mais extensa que seguia em sentido perpendicular às primeiras e sumia em meio à vegetação.
Quando voltava para observar melhor o caminho, ouvi um barulho, quase um chiado, e logo senti que uma coisa pontuda me atingiu de raspão no braço esquerdo. Como num gesto de defesa irrefletido, abaixei-me e corri apalpando o local atingido e que agora ardia ferozmente, qual mordida de um cão furibundo. Ouvi mais dois ou três barulhos iguais ao primeiro, mas, apesar de sentir passarem bem próximo a mim, pois ouvi um silvo fino e quase imperceptível, não fui atingido novamente. E logo ocorreu um quarto chiado e um baque mais forte, bem próximo ao meu ombro. E ao me virar rapidamente vi uma coisa esquisita, parecendo uma flecha, fixada no tronco de uma árvore ao meu lado, vibrando, vibrando, nervosamente. Não parei para ver melhor. Mas, ao identificar a seta, aumentei a velocidade no que pude e trafeguei espavorido por um bom trecho. Ofegante, parei para uma rápida olhada para trás, mas vi que ninguém me seguia. Continuei a corrida, mas devagar agora, e voltei à praia. Lá parei novamente. Nada. Ninguém atrás de mim. Apalpei o ferimento do meu braço. Havia sido atingido apenas de raspão, nada que me preocupasse. Mas ardia um bocado.
Voltei para casa, troteando quase que o tempo todo, parando apenas para olhar novamente para trás e para respirar melhor. Nada mais ocorreu, contudo. Cheguei lá em menos da metade do tempo que havia levado para ir até ao local em que havia sofrido o ataque. Estava com o coração aos pulos. Agora tinha certeza de que havia mais gente na ilha. E isso, ao invés de me deixar contente, aterrorizou-me. Pois meu vizinho não gostava da minha presença. E como deveria está por ali há bem mais tempo que eu, conhecia melhor o terreno e poderia me causar sérios problemas.
Bateu-me uma preocupação que eu não tinha tido até então: a presença de alguém que me tratava como inimigo. Tentei reforçar a segurança da minha moradia tosca, mais não me dei por satisfeito. O meu inimigo tinha arco e flechas, eu não tinha um tacape sequer. Passei o resto do dia tentando proteger a minha morada. Estendi também algumas linhas em volta do barraco, amarrei em folhas de metal para fazer barulho caso alguém viesse até mim e tropeçasse nelas, mas mesmo assim passei a minha primeira noite em claro desde que cheguei por ali.
No dia seguinte, olhei em volta do barraco em busca de indícios da presença de alguém, mas nada encontrei. E passei o resto do dia ainda reforçando a minha defesa. Também dormi pouco na noite que se seguiu, atemorizado pela chuva com trovões e pelo receio de um ataque do meu inimigo desconhecido. O tempo se apresentava propício para isso, pois seria impossível ouvir a chegada de alguém com o barulho que vinha da noite tempestuosa.
Mas nada aconteceu mais uma vez. Menos mal que o ferimento já estava sarado quase por completo. À tarde a chuva foi embora e decidi ir atrás do meu adversário. Queria, pelo menos, vê-lo de longe. E cheguei até ao local onde fui atacado, pelo lado contrário, embrenhando-me na mata. Depois de andar por um bom tempo, dei com um paredão rochoso e cercado de mato. Somente isso. Depois, olhando mais atentamente, observei uma possível passagem na base da rocha íngreme, tal qual a entrada de uma caverna. Tentei me aproximar. Mas, apesar do cuidado que tomei, tropecei em algo e, já com o espírito armado, saltei imediatamente para trás. E por um triz não fui atingido por uma grade de madeira pontuda que caiu exatamente no lugar onde estive milésimos de segundos atrás. O baque surdo e a proximidade da morte me fizeram correr como nunca. Agora tinha certeza de que ali naquele local alguém se escondia. E era belicoso. Mal intencionado. E havia armado as suas defesas.
Voltei mais agoniado do que quando vim. As têmporas estavam se dilatando e contraindo e eu estava decidido a tomar alguma providência antes que fosse tarde demais. Se meu antagonista conhecia melhor o terreno, eu precisava encontrar uma alternativa para, pelo menos, empatar a disputa. Se ele se mostrava com conhecimentos de estratégia de defesa, eu não sabia nada daquilo, apenas o que lera nas revistas de quadrinho quando criança. Mas só vim saber a origem dos meus conhecimentos sobre estratégias de defesa de um determinado ponto, muito depois daquele momento.
No outro dia sai de casa com a madrugada e debaixo de chuva. Levava nas mãos alguns pedaços de papelão nos quais havia escrito com carvão mensagens de boa vizinhança em português e em inglês. Preguei em troncos de árvores na entrada do caminho que ia dar no abrigo do meu opositor. E voltei. Esperei dois dias e nada de resposta. Fui novamente ao local tomado de expectativas e vi que as minhas placas haviam sido removidas. Então, não fiquei mais lá e retornei imediatamente para casa. E lá encontrei um aviso na minha porta: a cabeça decepada e sangrenta de uma iguana. Meu coração disparou de vez. Meu inimigo me encontrara e me fazia veladas ameaças. Naquela noite não dormi novamente. Nem um cochilo breve. Comecei a pensar em mudar a minha moradia de lugar. E passei o dia seguinte procurando um novo local. Todavia, pensando melhor, vi que seria contraproducente. Meu oponente conhecia bem a ilha, pelo jeito, e não seria difícil para ele me encontrar novamente. Mas, o que fazer?
Pesquisando em volta do meu barraco, verifiquei rastros que alguém tentara disfarçar cuidadosamente. Mais que isso. Somente encontrei marcas do pé direito de uma pessoa de porte mediano para baixo, a julgar pelo tamanho pequeno do pé. Paralelo a estes rastros uma leve compressão do terreno, de cerca de três a quatro centímetros de diâmetro. Esquisito, mas não me chamou a atenção para nada. A falta da marca do pé esquerdo, sim. Não é preciso dizer que fiquei desesperado, e que não encontrei uma saída para aquela situação. Estava sobre ameaça e resolvi procurar o meu opositor outra vez.


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