A MEMÓRIA VOLTA A
TRABALHAR INTENSAMENTE
José Pedro Araújo
As lembranças começaram a afluir
aos borbotões. E a primeira coisa que me veio foi o momento em que tentei
escapar de dois homens fortes que tentavam me subjugar. Pareciam leões de
chácara do tipo clássico. Não, agora estava claro, eram dois marinheiros
espadaúdos, grotescos e de cara amarrada, e que tentavam me subjugar a qualquer
custo. Vi também quando, ao tentar me firmar na amurada, já próxima à popa,
para chegar ao convés superior de uma embarcação luxuosa, escorreguei devido ao
balanço do mar e despenquei no vazio. No trajeto tomei uma pancada na fronte
que me deixou tudo escuro, semiacordado. Essa foi a última imagem que me chegou
à mente. Depois voltou a pasmaceira.
Todas essas lembranças me vinham
à mente após ter batido a cabeça em uma das colunas do velho navio ancorado na
areia da praia. Melhor agora, procurei descer da embarcação e pisei na areia
fofa. Olhando mais detidamente, atentei que as marcas das minhas pisadas
estavam intactas e formava uma trilha bem visível bordejando a praia. Resolvi
seguir por elas. Depois de caminhar por um tempo impreciso, vi que as mesmas
deixavam a praia e seguiam para uma mata bem fechada que distava pouco mais de
cem metros da água.
Curioso e completamente atônito,
segui meus antigos passos e logo avistei uma construção que mais parecia um
pequeno depósito de madeira, feito com material de todos os tipos, e de maneira
bem rústica. Resolvi arriscar. Precisava saber o que era aquilo, e como tinha
chegado até ali. Uma porta de madeira bem sofrível foi aberta sem dificuldades
e logo vi o interior da cabana com uma mesa postada no centro do ambiente, e
com uma das pernas, de madeira roliça, destacando-se das outras três bem
torneadas. Girando o olhar para o canto direito, observei uma cama, uma espécie
sofrível de enxerga, coberta por lençóis amarelados, mas que pareciam de boa
qualidade, e algumas roupas jogadas sobre ela e que logo reconheci serem as que
eu vestia na última vez em que estive de posse da minha memória.
Mas por que aquilo? O que eu
fazia aqui? Pelo visto, tinha muita coisa para descobrir sobre a minha nova
existência. Estava com outro problema. O que eu desconhecia agora era o que me
havia acontecido nos últimos dias. Mas isso logo seria dirimido.
Trouxera da embarcação encalhada
algumas facas de inox e dois arpões de ferro de mais ou menos um metro e vinte
de extensão. Levei tudo para o abrigo quando resolvi seguir a trilha deixada
por mim com as marcas dos meus pés. Depois de muito andar em volta da cabana,
sem que as explicações me chegassem aclaradas, pensei em dormir por ali mesmo,
até por falta de outra opção. Nesta noite descansei bem. Se bem que com um olho
fechado e o outro aberto, como se diz quando estamos com alguma desconfiança a
nos atormentar. Mas acordei antes do sol sair, com alguns novos flashes de
memória. Parecia que um barulho estridente de carros havia me acordado. Carros,
sim! Muitos, barulhentos e apressados, a julgar pelo resfolegar dos motores em
constante aceleração. Depois tudo se misturou e eu já me via em uma sala
confortável, dezenas de papéis espalhados sobre uma mesa, uma tela de
computador da marca Dell em frente a mim, poltronas postadas a um canto e de
frente para uma vidraça com vista para uma cidade repleta de arranha-céus.
Nesse ponto as coisas voltaram a se misturar, e novamente apareceu aquele salão
repleto de gente. Parecia que alguém se dirigia a mim despejando palavras
elogiosas, e logo estava eu tentando fugir deles. A minha ida para a minha
cabine, os homens forçando a porta de entrada, e novamente a subida na amurada
e a queda no vazio. E foi só. Ainda dessa vez. Acordei como que de um sonho. Ou
de vários sonhos em conjunto.
Passei um dia exasperado. As lembranças
me chegavam aos poucos, a conta-a-gotas, como se precisassem de tempo para ser
novamente ordenadas nos arquivos da minha memória. Mas, estavam vindo, e isso
era o bastante, isso me trazia alento.
No final do dia eu já sabia o
porquê da minha imagem naquele navio. Relembrei que estava fazendo uma viagem
de férias com alguns amigos em um barco de cruzeiro com um cassino a bordo.
Lembrei que sempre fazia isso nas férias, e tinha especial predileção pelos que
ofereciam jogatina a bordo. Lembrei ainda que naquele dia, já no final da
noite, havia perdido um bom dinheiro nas mesas de apostas e nas roletas,
quando, ao sair sozinho, pois meus amigos haviam resolvido ficar mais um pouco,
resolvi apostar algumas fichas nas máquinas caça níquel que estavam enfileiradas
na minha frente quase na saída do salão. Apostei em três delas e nada saia ao
apertar o botão. No final, já ciente de aquele não era o meu dia, procurei uma
máquina com jackpot progressivo e apostei cinquenta dólares nela. A máquina
engasgou de repente luzes reluziram e sons inundaram o ambiente em festa,
anunciando que eu havia ganhado. Durou apenas segundos e logo começou a vomitar
dólares em profusão.
A imagem da máquina derramando todo aquele
dinheiro quase me enlouquece novamente. Cinquenta mil dólares saíram do seu
interior recheado de dinheiro e suas luzes e sons continuaram na maior festa.
Meus amigos, ao notarem o que acontecia, já que muitos se dirigiam a mim,
acorreram até onde eu estava e festejaram também a minha vitória. Depois, convidaram-me
para uma última rodada de bebidas e eu, alegre com o resultado da minha noite
de gala, e que havia começado tão mal, fiquei mais um pouco com eles. Mas,
apesar dos muitos protestos, resolvi levar tudo o que ganhara para a minha
cabine. Disse-lhes que nessa noite tomaria um banho de dinheiro. E que depois
guardaria tudo no cofre da cabine. Tomei banho de outra coisa.
Quando já me preparava para
dormir, mas antes mesmo de trocar de roupas, tocaram a campainha e eu fui
atender meio desconfiado. Era um garçom com uma bandeja repleta de iguarias e
uma garrafa de champanhe ainda fechada, foi o que pude ver ao olhar pelo olho
mágico. Disse-me ser uma cortesia do comandante do navio em razão da minha
vitória. Desarmou-me.
Abri a porta descuidadamente, e
já pensando em tomar uma última taça da bebida, deparei-me com o cano de uma
pistola apontada para mim. Atrás do dito garçom, dois homens parrudos, vestidos
com roupas de marinheiro, forçaram a entrada e logo foram me perguntando pelos
cinquenta mil ganhos pouco antes. Mas pegaram mais. Deram com a mão em tudo de
valor que encontraram na cabine, reviraram meus bolsos e retiraram todos os
meus documentos e cartões de crédito e, por fim, conduziram-me ao banheiro.
Pela porta aberta vi que o garçom já enchia a banheira com água e adivinhei que
iriam me afogar nela. Mas pensei ao mesmo tempo: se iriam me afogar é porque
não queriam alertar os outros hospedes com o barulho de um disparo de arma de
fogo. E foi ai que reagi para pegar meus agressores despreparados.
Como estava sendo seguro por dois
deles, os tais brutamontes, pelos braços, elevei as minhas pernas no ar e, com
um impulso vertiginoso, empurrei a todos para trás apoiando os pés na parede do
estreito corredor. A flexão que consegui dar às pernas foi forte o bastante
para nos arremessar contra a parede oposta, e caímos todos ao chão. Eles, mais
atordoados do que eu, pois haviam sido pegos de surpresa, além de baterem com
as costas na parede com muita intensidade. Ao cairmos, meus subjugadores
relaxaram e afrouxaram os meus braços, e foi ai que aproveitei para, de um
salto, sair correndo da cabine para o longo corredor que àquela hora se achava
deserto. Ao sair ainda fechei a porta para atrasá-los e parti em disparada.
Meus atacantes demoraram menos
tempo do que eu esperava para se recuperar da surpresa, e logo estavam no meu
encalço. Mas, mesmo de armas em punho, não optaram por disparar em mim. E
mesmo, viram que havia tomado um caminho sem saída, e ali era questão de tempo
para me pegarem novamente. De fato, ao ver-me sem saída, na popa do navio, subi
na amurada para tentar alcançar a parte de cima, mas foi ai que eu cometi o
segundo erro do dia.
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