DUAS DESCOBERTAS
IMPORTANTES
Chegou a temporada de chuvas.
Elas vieram fortes, com ventos, trovões, e logo os dias começaram a ficar muito
solitários. Mais do que jamais foram. Eu não disse ainda que quando acordei na
praia, tinha alguns hematomas pelo corpo, e um corte largo, mas raso, na cabeça,
por cujo orifício o sangue já havia escorrido, mas agora havia estancado. O bom
disso é que quase não me doía mais. Residia ali a razão da minha perda
momentânea de memória, foi o que pensei.
Com os meus dias de solidão se
acentuando, passei a me inquirir como havia chegado até ali, o que havia me
acontecido. E uma luz se acendeu na minha mente quando, certo dia, encontrei em
um dos lados da ilha uma grande quantidade de cartas de baralho. Estranhamente
me vi imbuído de grande contentamento e passei a juntar freneticamente o
material espalhado pela areia da praia de modo que, quando cheguei ao meu
barraco e comecei a organizá-lo, vi que formavam quase três baralhos completos.
Passou a ser o meu passatempo favorito e quase abandonei os livros que já se
achavam em boa quantidade, esperando para serem devorados. Vi também que
manuseava com extrema maestria as cartas como se tivesse sido essa uma coisa
que eu fazia com muita assiduidade. Paciência, pôquer, buraco, vinte e um,
canastra, black jack, e tantos outros
jogos, viraram atrações em uma mesa que eu cobria com a toalha descolorida por
mim encontrada dias antes. A mesa eu havia achado faltando uma perna, mas a
consertei com habilidade. Passei a jogar sozinho, mas honestamente. Deste modo,
as partidas eram duras, disputadíssimas. Até havia encontrado um grande boneco
de plástico, um palhaço sorridente, que me passou a fazer companhia, e ao qual
dei o nome de Vincent. Vincent não jogava, só fazia parte da torcida, e como
não interferia, não recebia de volta aquelas piadinhas sem graça que são
lançadas sobre os assistentes chatos, os tais perus.
Depois de três dias de intensas
chuvas, o dia amanheceu com sol brilhante, um daqueles apropriados para se
levar a família à praia mesmo. Como não havia família nenhuma a me acompanhar,
e o Vincent estava me chateando com aquele sorriso que nunca o abandonava,
decidi sair sozinho para uma caminhada. E caminhei bastante, pois estava com
saudades de esticar as pernas. Contornei a ilha na sua face norte e andei mais
uma meia hora, até encontrar uma embarcação semidestruída que eu ainda não vira
antes. Era uma grande embarcação, ou o que restara de uma. Ao me aproximar mais
um pouco notei que era bem maior do que eu pensara anteriormente, pois a maior
parte estava submersa e deveria estar enterrada na areia, pois a carcaça não se
movia quando as ondas batiam nela.
Sem dificuldades, apoiando os pés
em uma abertura grandiosa no seu casco, subi até ao tombadilho, pois o navio
encalhara na praia de ré. Era até possível ver duas enormes hélices enterradas
quase completamente na areia. E ele parecia estar ali há muitos anos. Não era
um vaso de guerra, nem um barco de pesca. Também não era um navio de
passageiros, e como tinha espaço achatado, plano, para acomodar contêineres, não
havia dúvidas, tratava-se de uma embarcação mercante. Passeei pelo
porta-contêineres e ainda pensei em entrar por uma abertura que levava ao seu
interior, mas um esvoaçar de morcegos apressados me fez refluir da ideia. Que
ficasse para outro dia.
Não vi nenhum contêiner por ali,
nem muito menos ao redor da embarcação. Talvez tivessem levado a carga e
embarcado em outro navio.
Ainda lá em cima, parei para
observar a ilha do alto e vi que logo mais para o centro dela havia uma
elevação significativa, um morro de boa altitude. Talvez fosse possível ver bem
o entorno dela lá do seu cume. E parti para lá. Fiz uma caminhada de mais de
uma hora até ao local e cheguei um pouco cansado. Menos mal que havia levado
uma garrafinha de água como sempre fazia, envolta em um pano para lhe conferir
uma característica antitérmica que, apesar de se achar agora meio morna, foi de
muita utilidade. Parei na base da elevação, e observei que havia uma estreita
trilha de subida, como se fosse utilizada amiúde para alguém lhe chegar ao
topo. Fiquei surpreso com a descoberta, mas decidi prosseguir com a subida e em
menos de dez minutos cheguei a sua parte mais alta.
Havia lá em cima uma espécie de
esplanada, e no centro dela, uma pedra larga e plana, uma espécie de altar, ou
observatório, que parecia ter sido usado com muita frequência. Subi nela e tive
ao meu favor uma vista deslumbrante. O mar de águas calmas e azuis perdia-se no
horizonte até fundir-se com a curvatura da abóbada celeste. Fiquei emocionado
com a visão. De fato, um lindo espetáculo. Demorei uma eternidade ali, até que
a barriga reclamou a ingestão de algo. Não dava para saber, mas já passava do
meio dia quando voltei à base daquele morro. Tive, lá em cima, outra surpresa:
do meu ponto de observação, descobri que havia uma infinidade de ilhas para o
lado oposto ao que eu habitava. Umas pequeníssimas, e outras bem maiores, todas
com vegetação luxuriantemente verde. Retornei para casa com várias perguntas se
entrechocando na minha mente.
No dia seguinte, chuva, e no outro
também. E como ficava em casa sem ter o que fazer, além de jogar cartas e ler,
comecei a pensar no que havia visto naquele dia: a trilha de subida no morro, a
pedra que mais parecia um altar para sacrifício ou um ponto de observação, a
existência de inúmeras outras ilhas. Tudo isso aflorava na minha mente. E
passei a imaginar se não existia mais alguém por ali, além de mim. Mas não
cheguei a nenhuma conclusão. Desviava o pensamento, mas logo voltava ao ponto
inicial, e assim ia dando voltas e mais voltas, até que o assunto sumia da
minha mente.
De uma coisa eu tinha certeza:
alguém usou aquele caminho por muitas vezes para subir ao alto daquela
elevação. Ou pelo menos já fizera isso há algum tempo. E se era assim, o que
foi feito dele, já fora embora? Ainda não dava para saber, mas esta era uma
verdade que eu precisava descobrir, para a minha própria sobrevivência. E se
fora embora, como havia feito isso? Passei a me perguntar enquanto aguardava
uma chance para sair pela praia novamente. A chuva não parava, contudo. Parecia
que estávamos no pico do período chuvoso, ou que as chuvas eram bem frequentes
na região, pois havia observado as árvores com líquens em profusão no tronco e
galhos, o que atestava longos períodos de clima bem úmido.
Ainda bem que havia improvisado
algumas lamparinas, pois a minha fogueira havia ido para os cafundós com as
chuvas chegando. E por isso, as minhas lamparinas se mantinham acesas durante
todo o tempo, esfumaçando as paredes e correndo risco de se apagarem quando o
vento penetrava forte pelas frestas das paredes de madeira. E foi ai que
improvisei proteções de vidro para elas, tipo aquelas camisas dos lampiões. Não
fora difícil. Bastou retirar o fundo de algumas garrafas claras e pronto. Bom,
a visão não era muito bonita, mas a sua eficiência estava comprovada.
Dr. Araújo,
ResponderExcluirLegal! Gostei do palhaço Vincent; acho que ele vai rir muito do seu companheiro náufrago. Acho que no próximo capítulo vai ocorrer muita ação. Até Quarta. Um abraço.
O Vincent é meio nômade, acho que logo vai procurar outras praias. Ou não. Grande abraço, Chico Acoram.
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