quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Diário de Um Náufrago (Capítulo V)




MAIS OUTRA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO

José Pedro Araújo
 
Sob a chuva torrencial que desabava naquela madrugada, fui em busca do meu inimigo por outro acesso. E quase me dei mal outra vez. Ao me aproximar do ponto de entrada da caverna, em meio a um matagal fechado, quase cai em uma vala aberta no chão, disfarçada por uma fina camada de folhas. Um galho de árvore inclinado sob a armadilha foi a minha salvação, pois me agarrei como pude a ele e não despenquei no buraco. O coração quase me saiu pela boca, e sem querer, soltei um palavrão que nem sabia que conhecia.
Ao me aproximar novamente do buraco, agora entreaberto, vi que estava cheio de lanças pontiagudas e apontadas para cima. Se tivesse caído ali, certamente ficaria espetado qual um pequeno coelho preparado para ser levado ao fogo. Não teria resistido. Meu opositor, agora meu inimigo real e mortal, não estava para brincadeiras. Decidi sair dali rapidamente. Mas não o fiz o suficiente para escapar de uma flecha que me acertou na altura do abdômen. Alguém fora alertado pelo meu grito. Senti uma dor lancinante, e logo algo quente e úmido me escorreu pela cintura e desceu sobre a minha perna direita. Corri assim mesmo e escapei de outras flechadas desferidas que foram se perdendo ao chocar com as árvores que me protegiam por onde eu passava.
Com muito custo cheguei à minha choupana. Estava fraco e nervoso. Diria melhor, apavorado. Mas ao retirar a minha camisa, a única que eu possuía, e que vestia nessas desbravações, vi que a flecha me atravessara apenas a pele à altura da cintura e me fizera um relativo estrago. Foi a primeira vez que eu notei a minha magreza, estava que era só pele e ossos. Tive febre à noite, mas vi no dia seguinte que o ferimento estava seco e sem pus. Fiz a sua desinfecção com um pouco de água de sal, tal como aprendera quando menino a fazer sarar pequenos cortes nas mãos. Fiz um bom trabalho. E a falta de liquido purulento era um bom sinal disso.
Comecei a trabalhar para melhorar a minha segurança, já que a ideia de sair dali havia sido abandonada, pelo menos momentaneamente. Mesmo com dificuldades, precisava proteger o meu cantinho. Fiz algumas lanças pontiagudas que me serviriam em caso de um ataque, espalhei pela minha acomodação em pontos estratégicos, e preparei também alguns tacapes e passei a andar sempre com um deles. Uma lança e uma borduna, das muitas que eu tinha em locais estratégicos, serviriam para me defender em um caso de confronto com o meu inimigo frente a frente. Também espalhei algumas falsas armadilhas em torno do meu abrigo para afastar o meu insensato vizinho, tudo muito simples, apenas para alertá-lo de que eu estava me preparando para ele. Estava aprendendo com o meu adversário a utilizar a madeira farta encontrada para preparar meu armamento de defesa.
Ainda não falei, mas eu sou um homem de estatura bem acima da média e sou versado em lutas, especialmente o karatê, de modo que, num embate corpo a corpo, não teria problemas em me defender. Pelo menos eu contava com isso. Precisava contar com isso para elevar a minha autoestima. Também tenho a pele clara, muito clara, eu diria, e cabelos tendendo do cinza palha ao louro aguado. Era o que eu via agora através de um caco de espelho que usava em meu barraco. Apesar de não me lembrar muito bem de já ter praticado a arte marcial que citei, dias atrás resolvera me exercitar para estar preparado quando a hora chegasse, e vi que fazia isso com grande destreza e competência, até lembrei do nome dessa luta. Aliás, noto que as coisas começam a clarear na minha mente. Agora mesmo, lembro-me de ter estado em um navio e vejo um grande salão repleto de mesas e cadeiras, quase todas ocupadas. Vejo também homens com viseiras esquisitas manuseando dados, cartas, ou girando uma pequena engrenagem com as mãos em quanto gritam algo aos presentes alguma coisa. Há tremenda agitação entre os circundantes, e eu me acerco do homem e coloco algumas fichas sobre um pano verde, depois de forçar a minha passagem entre os presentes que se agrupam em volta do local. As imagens agora vão se apagando lenta e inexoravelmente da minha mente, mas ainda tenho tempo de ver o homem de viseira empurrar para mim muitas fichas de todas as cores. Como se fossem luzes lembrativas se apagando, voltou o vazio à minha memória.
Cansado de esperar por algo que nunca vem, hoje à tarde resolvi caminhar até o navio naufragado. Mas, antes, deixei algumas coisas distribuídas chamativamente em pontos estratégicos e mentalizei a posição exata de cada uma. Um pequeno livro aberto em determinada página e com um peso em cima; uma velha lata de biscoitos com algumas pequenas coisas dentro, e com uma de suas faces virada para um determinado lado, de modo que eu pudesse notar caso alguém a movesse do lugar. Deixei algumas outras pequenas armadilhas espalhadas em torno do casebre prontas para me alertar sobre a passagem de alguém. Precisava saber se o meu inimigo havia visitado a cabana na minha ausência. Depois destes preparativos, parti até ao navio naufragado. Era uma caminhada boa, e isso me deixou ativo, e com os sentidos ligados em todos os botões, pois queria sentir a presença de alguém chegando antes que me atacasse. Mas, nada aconteceu.
Subi no velho navio e entrei no seu interior pela abertura no convés. Uma nuvem de morcegos fez a minha acolhida, mas eu já estava preparado para eles também e, assim, não me causaram nenhum óbice ou contratempo. O interior da embarcação estava devastado também, coisas jogadas pelos cantos, e no meio do espaço interno um grande vazio. Parecia até que alguém havia tido o cuidado de arrumar tudo ao longo das paredes da embarcação e deixado um imenso vazio no centro dela. Abri uma estreita porta de uma cabine, e senti um bafo embolorado me atingir o rosto com estrema força. Fechei novamente a porta, mas tive tempo de notar um velho catre relativamente arrumado, como se alguém tivesse feito a cama antes de sair, nunca mais retornando. O espaço estava iluminado por uma claraboia lateral.
Passei um bom tempo verificando tudo, e o ambiente relativamente claro foi perdendo a luminosidade à medida que o tempo passava o que denotava que a tarde já ia caminhando para o seu final. De posse de alguns utensílios de cozinha que encontrei jogados pelo chão da embarcação, procurei sair rapidamente dali e tropecei em algo que fez com que levasse um grande tombo, batendo duramente com a cabeça em uma das colunas do casco. Senti com se meus sentidos fossem me abandonar, e uma dor aguda me invadiu o cérebro.  Consegui-me por de joelho, mas estava zonzo para me levantar e permaneci um bom tempo assim. A dor foi aos poucos se reduzindo, mas senti que algumas gotas de sangue quente me escorreram pelo rosto e empaparam a minha barba já bem crescida. Levei um tempo para me recuperar e algumas lembranças de um passado não tão distante vieram até mim à medida que a dor ia embora. O que diabos fazia eu ali naquela velha embarcação? Por que estava vestido só de sunga? O que estava acontecendo comigo?
Sai ao ar livre e me vi em um ambiente de sonhos. À minha frente se estendia uma praia de areias brancas e cintilantes naquele fim de tarde. O mar de águas azuis se estendia a perder de vista, sob um céu azul escuro e cintilante. Comecei a me lembrar então como tinha ido parar por ali. E isso não me animou, muito ao contrário, deixou-me triste e desesperançoso.
Caminhei para a popa e subi no tombadilho para apreciar melhor a paisagem e tentar me localizar. Durante o pequeno trajeto senti me faltar forças, e a minha respiração se mostrava cada vez mais difícil. Minha testa voltou a latejar e logo toquei o ferimento com a ponta dos dedos, retirando-o de supetão ao sentir uma dor forte na altura do ferimento. Sentei-me na borda de madeira da imensa plataforma e os sentidos começaram a se aclarar e o cansaço deu lugar a um momento de relativo e crescente conforto, um gostoso bem estar estava se apossando de mim, eu diria.

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