quarta-feira, 20 de maio de 2020

NUM SE PODE, a lenda.




Mozaniel Almeida (*)

Meu primeiro contato com essa história deu-se ainda durante a minha infância. Morávamos na Rua 24 de Janeiro, lado da sombra, entre as Rua Palmeirinha e Rua do Norte, que anos após se tornaram, pela ordem, Tiradentes e Jônatas Batista.

Recordo-me que fora uma manhã de muito alvoroço. Cada pessoa que ouvia o relato recontava sua versão a seu modo e gosto, para isso acrescentando seus condimentos. Era, no entanto, insofismável a existência do fato. Quem contara fora "seu" Zé Leite, músico e tipógrafo, que retornava de uma festa com sua clarineta e partituras debaixo do sovaco, após sua participação no evento, na madrugada daquele sábado.

O que antes se sabia, era que esse fenômeno assombroso acontecia na Praça Saraiva, ou imediações. Agora o demônio resolvera caminhar rumo à periferia norte, inquietado toda aquela região do Mafuá, que nem de longe era o que hoje é. O medo de que tal acontecido viesse a quedar-se ali por muito tempo, era indisfarçável.

Teresina teve seu centenário em 1952, mesmo assim não passava de uma biboca e foi por esse tempo que isso aconteceu. Toda região do Mafuá era constituída de famílias humildes. A quase totalidade das residências era de casas com paredes de enchimento e cobertas de palhas de babaçu. Existia posteação de ferro com nove metros de altura, para iluminação pública, pois a maioria das casas não tinham energia elétrica, pelos argumentos já mencionadas. Era comum o uso de lamparinas a querosene.

Eu sempre acreditei que esses tipos sobrenaturais fossem propriedades de cidades pequeninas e povoados, mas desde que apareceu Um Lobisomem Americano em Londres e outro em Nova York, vi que tudo pode acontecer.

Como já foi mencionado, o músico Zé Leite retornava naquela madrugada de um dos seus "ganha pão", cansado, passos lentos, abstraído em seus pensamentos, quando teve o forte pressentimentos que todos nós temos, vez por outra, de estar sendo seguido, ou observado. Virou-se e viu que uma mulher caminhava apressadamente para lhe alcançar. Não era comum que uma mulher andasse à deriva em tal hora. Resolveu esperá-la, certamente ela estava com medo e ele lhe seria, de algum modo, refúgio de segurança.

Ela usava um vestido branco de saia rodada, decotes sensualizados, sendo que a parte de trás ficava encoberto pelos longos cabelos. Calçava sapatos de saltos que afundaram na areia fofa de uma rua sem revestimento. Não era bonita nem feia, rosto comum, com um batom encarnado vivo e com altura de aproximadamente 1,60m para um corpo proporcional ao peso.

Ele estava a um quarteirão de sua casa e a conversa seria curta. A primeira abordagem dela foi para lhe pedir um cigarro, no que foi atendida, mas recusou o fósforo. Caminhavam e ela o pediu que parassem no primeiro poste, foi quando ele resolveu se identificar.

- Eu sou José Leite, tipógrafo e músico nas horas vagas. Moro aqui perto e você?

Parecia que isso era um obrigatório cabeçalho para o desfecho da tragédia e ele que tinha alma timorata, começou a gelar diante do absurdo da visão. Ele era um homem de pele branca pendendo para o fogoió, seu rosto ficou como lua em quarto minguando: metade branca era cera lívida, metade preta era pavor.

A mulher com o cigarro na mão, começou a crescer lentamente e afinar o corpo como se de borracha fosse, até atingir a lâmpada onde acendera o cigarro e respondeu:

-Meu nome é Num Se Pode, Num Se Pode!

Zé Leite que já conhecia a história da assombração de "ouvi dizer", agora a via em carne e pele e cuidou em escafeder-se rápido como um raio para percorrer uma distância de uns trinta metros até sua casa, mas que lhe pareceram léguas e uma eternidade. Enquanto atabalhoadamente tentava abrir a porta com o lenço de cambraia, supondo ser as chaves, tal o grau de nervosismo, olhou de volta ao poste em tempo de ver a marmota diminuindo de tamanho e dissolver-se no tempo como nuvem. Ele contou essa história e o que mais desequilibrava qualquer raciocínio era a existência das marcas dos sapatos dele e dela que se encontravam ao redor do poste.

São coisas de minha terra, que conto para que não se perca no tempo.

(*)Mozaniel Almeida, piauiense radicado em Sergipe, é cronista e contista.

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