sexta-feira, 17 de abril de 2015

Com a cama ao relento




                Certa vez tive que por em prática a minha formação de profissional da agronomia em um lugar extremamente adverso. Havia sido enviado para as caatingas de São João do Piauí para vistoriar um imóvel rural com o propósito de desapropriá-lo por interesse social. Para quem não sabe, o município em questão fica situado no centro da região que menos chove no Estado. Lá chegando, deparei-me com um numeroso grupo de famílias acampadas e arranchadas em minúsculas casinhas de pau-a-pique, que mais pareciam coisa de criança. As pessoas haviam construído esses casebres próximos a um barreiro com água tão avermelhada que mais parecia um tanque de Fanta laranja. E as casas eram tão pequenas, talvez medissem três metros largura por três de comprimento. Lembrava uma cidade em miniatura. A altura da cumeeira não passava de um metro e sessenta centímetros e, por conta disso, o portal de entrada era tão baixo que tínhamos que nos dobrar para entrar para o interior delas.

                Dentre os muitos fatos inusitados que iriamos presenciar ali, um nos chamou mais a atenção. As camas de casal estavam todas armadas do lado de fora das casinhas, na parte referente ao seu pequeno quintal. Indagado o porquê daquilo, recebemos como resposta: “a cama não cabia na casa. E depois, como não chove mesmo por aqui, não vimos problema em montá-las do lado de fora”. Apesar de já está na lida há tanto tempo, trabalhado em regiões tão distintas e presenciado situações tão surpreendentes, aquele trabalho seria um divisor de água na minha vida profissional. Foi a partir dele que passei a me digladiar com duas situações tão comum no nosso mister: a variante técnica e o componente social do trabalho.

                Passamos dois dias visitando todo o imóvel para levantar as suas características de solo, umidade, pedregosidade, vegetação, declividade, enfim, para identificar se naquele imóvel seria possível assentarem-se famílias de maneira sustentável economicamente. As condições que encontramos não foram boas. Diria mais: assentar cerca de quarenta e cinco famílias em um imóvel sem as menores condições edafoclimáticas para o seu estabelecimento e desenvolvimento, seria o mesmo que condená-los à pobreza eterna, à miséria total. No terceiro dia, cedo da manhã, reunimos a comunidade sob a sombra de uma figueira secular, e passamos a discorrer sobre o resultado das nossas percepções. Poderíamos ter simplesmente retornado para casa e enviado o resultado oficialmente ao sindicato. Mas a expressão de profunda esperança que vi naqueles semblantes me fez retornar para a comunidade naquele dia para tentar uma saída para o que parecia ser o impasse das suas vidas. E antes de informá-los do resultado técnicos da nossa vistoria, ponderei que talvez fosse necessário procurarmos outra área para tentarmos assentá-los. Instalou-se um pandemônio. Mulheres choravam, homens levavam as mãos à cabeça em desespero, crianças se perguntavam o que acontecia. Ninguém, entretanto, acreditava no que tinham ouvido. Não era a resposta que esperavam.

                Nesse instante, uma senhora de meia idade, corpo murcho, rosto encovado pela eterna necessidade, pediu para dizer algumas palavras. E o que ouvi dela, através de palavras simples, mas certeiras, abalou a minha convicção de técnico. “O senhor deve de ter visto uma reportagem no Fantástico anos atrás sobre algumas famílias nordestinas que estavam sobrevivendo comendo ratos. Pois eles falavam de nós. Atravessávamos mais um período de seca e a única escapatória nossa era caçar rabudos na caatinga para nos alimentarmos. Ano passado não havia mais rabudos para caçarmos. E para não morrermos de fome viemos parar na beira desse açude público. Aqui pelo menos temos água para beber, e a estrada que passa aqui do lado facilita a nossa vida. Aproveitamos as pessoas que por aqui passam para trocar alguma coisa, vender outras. Assim vamos vivendo. Moço, isso aqui é o paraíso para nós. Do inferno nós já viemos. Só precisamos de uma pequena ajuda do governo para mostrar o nosso valor”.

                Passamos o resto da manhã tentando encontrar uma saída salomônica para aquele caso. Fui conduzido a algumas pequenas roças e vi como aquelas famílias empregava toda a sua força e conhecimento de práticas agrícolas para o semiárido, e muita, muita esperança era ali utilizada para conseguir retirar o sustento daquela terra pouco dadivosa.  Como agrônomo, tecnicamente, portanto, meu parecer deveria ser pela não desapropriação do imóvel. Ao mesmo tempo, havia um problema social a ser resolvido. Vi naquela comunidade, além de esperança nas ações governamentais, muita força de vontade.

E resolvi apostar naquela gente. Mesmo pondo em cheque a minha reputação como técnico. E não foram poucos os colegas que me censuraram pelo que eu havia feito. Junto aos meus superiores hierárquicos, em Brasília, tive que me desdobrar para justificar o que eu havia feito.

                Felizmente consegui fundamentar bem a minha decisão e mostrei que nenhum dos problemas existentes naquele imóvel era de fato limitação definitiva, e que através da aplicação de algumas técnicas e algum investimento governamental, poderiam perfeitamente ser sanados. O projeto foi criado e as famílias assentadas, conforme propus.

                Cerca de três ou quatro anos depois, estando em São João do Piauí novamente, para participar de um encontro com prefeitos da região, resolvi aproveitar o período livre da tarde para fazer uma visita àquela comunidade. Precisava saber como estavam se arrumando.

Ao subir o último morro antes de chegar ao assentamento, deparei-me com uma visão muito bonita da vila, com suas casas bem enfileiras e pintadas de branco. Quase não acreditei no que via. Paramos o carro em frente a uma farmácia, ao lado de um pequeno mercado, sob a velha figueira de anos antes. Logo fui cercado por um grande número de moradores que ao me reconhecer logo quiseram saber o que eu estava achando daquilo tudo. Fizeram questão de me mostrar várias residências, as mobílias novas, aparelhos como TV e geladeira, e muito mais. Estavam felizes com a minha admiração.

Estávamos no campo visitando algumas roças com promessa de boa colheita quando alguém começou a rir ao relembrar a minha surpresa com as camas dos casais arrumadas do lado de fora da casa.  Agora não seria mais preciso, disse. Com o crédito habitação haviam construído as melhores casas que eu pude ver em nossos assentamentos.

Fiz bem em não me deixar levar pelo meu lado tecnicista, apenas. Afinal, já tinha visto tantos projetos com água em abundância e solos férteis serem levados ao fracasso. Fiz bem em apostar na força da esperança e da organização daquele grupo de famílias. 

Um comentário:

  1. Parabéns por essa linda narrativa! Muitas vezes temos que nos despir do nosso tecnicismo para darmos uma oportunidade ao entusiasmo e à esperança dos mais oprimidos.

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