Certa
vez tive que por em prática a minha formação de profissional da agronomia
em um lugar extremamente adverso. Havia sido enviado para as caatingas de São
João do Piauí para vistoriar um imóvel rural com o propósito de desapropriá-lo por
interesse social. Para quem não sabe, o município em questão fica situado no
centro da região que menos chove no Estado. Lá chegando, deparei-me com um
numeroso grupo de famílias acampadas e arranchadas em minúsculas casinhas de
pau-a-pique, que mais pareciam coisa de criança. As pessoas haviam construído
esses casebres próximos a um barreiro com água tão avermelhada que mais parecia
um tanque de Fanta laranja. E as casas eram tão pequenas, talvez medissem três
metros largura por três de comprimento. Lembrava uma cidade em miniatura. A
altura da cumeeira não passava de um metro e sessenta centímetros e, por conta
disso, o portal de entrada era tão baixo que tínhamos que nos dobrar para
entrar para o interior delas.
Dentre
os muitos fatos inusitados que iriamos presenciar ali, um nos chamou mais a
atenção. As camas de casal estavam todas armadas do lado de fora das casinhas,
na parte referente ao seu pequeno quintal. Indagado o porquê daquilo, recebemos
como resposta: “a cama não cabia na casa. E depois, como não chove mesmo por
aqui, não vimos problema em montá-las do lado de fora”. Apesar de já está na
lida há tanto tempo, trabalhado em regiões tão distintas e presenciado
situações tão surpreendentes, aquele trabalho seria um divisor de água na minha
vida profissional. Foi a partir dele que passei a me digladiar com duas
situações tão comum no nosso mister: a variante técnica e o componente social
do trabalho.
Passamos
dois dias visitando todo o imóvel para levantar as suas características de
solo, umidade, pedregosidade, vegetação, declividade, enfim, para identificar
se naquele imóvel seria possível assentarem-se famílias de maneira sustentável
economicamente. As condições que encontramos não foram boas. Diria mais:
assentar cerca de quarenta e cinco famílias em um imóvel sem as menores
condições edafoclimáticas para o seu estabelecimento e desenvolvimento, seria o
mesmo que condená-los à pobreza eterna, à miséria total. No terceiro dia, cedo
da manhã, reunimos a comunidade sob a sombra de uma figueira secular, e passamos
a discorrer sobre o resultado das nossas percepções. Poderíamos ter
simplesmente retornado para casa e enviado o resultado oficialmente ao
sindicato. Mas a expressão de profunda esperança que vi naqueles semblantes me
fez retornar para a comunidade naquele dia para tentar uma saída para o que
parecia ser o impasse das suas vidas. E antes de informá-los do resultado
técnicos da nossa vistoria, ponderei que talvez fosse necessário procurarmos outra
área para tentarmos assentá-los. Instalou-se um pandemônio. Mulheres choravam,
homens levavam as mãos à cabeça em desespero, crianças se perguntavam o que
acontecia. Ninguém, entretanto, acreditava no que tinham ouvido. Não era a
resposta que esperavam.
Nesse
instante, uma senhora de meia idade, corpo murcho, rosto encovado pela eterna
necessidade, pediu para dizer algumas palavras. E o que ouvi dela, através de
palavras simples, mas certeiras, abalou a minha convicção de técnico. “O senhor
deve de ter visto uma reportagem no Fantástico anos atrás sobre algumas
famílias nordestinas que estavam sobrevivendo comendo ratos. Pois eles falavam
de nós. Atravessávamos mais um período de seca e a única escapatória nossa era
caçar rabudos na caatinga para nos alimentarmos. Ano passado não havia mais
rabudos para caçarmos. E para não morrermos de fome viemos parar na beira desse
açude público. Aqui pelo menos temos água para beber, e a estrada que passa
aqui do lado facilita a nossa vida. Aproveitamos as pessoas que por aqui passam
para trocar alguma coisa, vender outras. Assim vamos vivendo. Moço, isso aqui é
o paraíso para nós. Do inferno nós já viemos. Só precisamos de uma pequena
ajuda do governo para mostrar o nosso valor”.
Passamos
o resto da manhã tentando encontrar uma saída salomônica para aquele caso. Fui
conduzido a algumas pequenas roças e vi como aquelas famílias empregava toda a
sua força e conhecimento de práticas agrícolas para o semiárido, e muita, muita
esperança era ali utilizada para conseguir retirar o sustento daquela terra
pouco dadivosa. Como agrônomo,
tecnicamente, portanto, meu parecer deveria ser pela não desapropriação do
imóvel. Ao mesmo tempo, havia um problema social a ser resolvido. Vi naquela
comunidade, além de esperança nas ações governamentais, muita força de vontade.
E resolvi
apostar naquela gente. Mesmo pondo em cheque a minha reputação como técnico. E
não foram poucos os colegas que me censuraram pelo que eu havia feito. Junto
aos meus superiores hierárquicos, em Brasília, tive que me desdobrar para
justificar o que eu havia feito.
Felizmente
consegui fundamentar bem a minha decisão e mostrei que nenhum dos problemas
existentes naquele imóvel era de fato limitação definitiva, e que através da
aplicação de algumas técnicas e algum investimento governamental, poderiam
perfeitamente ser sanados. O projeto foi criado e as famílias assentadas,
conforme propus.
Cerca
de três ou quatro anos depois, estando em São João do Piauí novamente, para
participar de um encontro com prefeitos da região, resolvi aproveitar o período
livre da tarde para fazer uma visita àquela comunidade. Precisava saber como
estavam se arrumando.
Ao subir o
último morro antes de chegar ao assentamento, deparei-me com uma visão muito
bonita da vila, com suas casas bem enfileiras e pintadas de branco. Quase não
acreditei no que via. Paramos o carro em frente a uma farmácia, ao lado de um
pequeno mercado, sob a velha figueira de anos antes. Logo fui cercado por um
grande número de moradores que ao me reconhecer logo quiseram saber o que eu
estava achando daquilo tudo. Fizeram questão de me mostrar várias residências,
as mobílias novas, aparelhos como TV e geladeira, e muito mais. Estavam felizes
com a minha admiração.
Estávamos no
campo visitando algumas roças com promessa de boa colheita quando alguém
começou a rir ao relembrar a minha surpresa com as camas dos casais arrumadas
do lado de fora da casa. Agora não seria
mais preciso, disse. Com o crédito habitação haviam construído as melhores
casas que eu pude ver em nossos assentamentos.
Fiz bem em não
me deixar levar pelo meu lado tecnicista, apenas. Afinal, já tinha visto tantos
projetos com água em abundância e solos férteis serem levados ao fracasso. Fiz
bem em apostar na força da esperança e da organização daquele grupo de famílias.
Parabéns por essa linda narrativa! Muitas vezes temos que nos despir do nosso tecnicismo para darmos uma oportunidade ao entusiasmo e à esperança dos mais oprimidos.
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