sexta-feira, 10 de abril de 2015

Naná



  
        Sentado no último degrau de madeira da pequena escadaria de acesso à pensão, observava absorto aquela mulher jovem que começava a subi-la com dificuldade crescente em razão dos enormes saltos dos sapatos escuros.
Desviei o olhar para observá-la melhor, mudando o foco do seu rosto, bonito e pintado com excessiva quantidade de Rouge, para o busto volumoso e ofegante, e fiquei petrificado: era até engraçado observar aqueles dois verdadeiros melões se equilibrando perigosamente para não saltarem fora do sutiã que teimava em segurá-los firmes como um bom goleiro faz com a bola chutada com violência pelo atacante adversário. 
        Ao passar por mim a moça parou indecisa e perguntou, após um breve instante que usou para ganhar novo fôlego:
- Gostaria de falar com a dona da pensão. Ela está?
Aquela voz rouca e macia, expressada como se estivesse sendo apenas soprada, pegou-me desprevenido e me deixou sem ação, enquanto ela me olhava pacientemente esperando a minha resposta.
Ao contrário da pergunta, a resposta saiu como um fio de voz intermitente, como se eu estivesse mastigando as sílabas. 
- Es-tá.... qu-ero di-zer... a-cho que es-tá – não consegui afastar os olhos daqueles dois faróis serenos e profundos como as águas de uma plácida lagoa de coloração cinza-escuro.
- Poderia verificar para mim? – e a voz agora menos cansada, saiu mais rouca e com um timbre suave e melódico.
Sem poder mais suportar quieto aquele canto de ninfa que me atraia para um redemoinho, puxando-me cada vez mais para as águas profundas do seu olhar lacustre, levantei de um salto e sai correndo como um menino bem mandado faz quando o patrão o despacha para dar algum recado.
Em instantes já estava na cozinha na qual entrei como um bólido, quase atropelando a mulher que saia com uma travessa de arroz fumegante nas mãos.
- Que é isso, menino? Quase me fez derrubar o arroz! – falou a mulher-quarentona-quase-atropelada-por-mim.
- Dona Neuza, tem uma moça lá fora querendo falar com a senhora – soltei com rapidez a informação sem me preocupar em pedir desculpas pela quase-trombada.
- Sabe o que ela quer? - indagou retomando a caminhada no rumo à copa.
- Não. Ela só perguntou pela senhora.
- Tá certo. Mas não custava nada perguntar o que ela queria. – Repreendeu-me sem muita dureza, talvez porque ainda não tivesse se refeito ainda do susto que eu havia lhe pregado.
Nessa época o menino contava com pouco mais de dezessete anos, mas continuava ainda um garoto inexperiente e introvertido, atrapalhado a mais não poder quando o assunto era mulher. E aquela o havia deixado mais enrolado ainda que o normal, frente ao seu corpanzil espetacular e o atrativo cheiro que emanava.
Terminado a minha tarefa de estafeta, mantive-me num ponto da sala que me permitia observar tudo sem ser notado. A conversa, pelo que pude notar, versava sobre a vinda da garota e de outra colega para a pensão. Dizia que eram estudantes e que procuravam um lugar para morar.
Não sei dizer por que, mas comecei a torcer pela pretensão dela se concretizar. E sabia também que ela tinha ótimas chances de conseguir o seu intento, uma vez que a proprietária da pensão estava precisando de dinheiro e, por conseguinte, necessitava aumentar a sua clientela.
Dito e feito. A moça ficou de voltar logo mais à tarde com todas as suas tralhas. Abri um sorriso satisfeito.
Esse foi o meu primeiro encontro com Naná.
E a Naná mudou completamente a rotina da casa, a começar pelo cheiro de perfume que ficava pelo ar quando ela passava, expulsando para-não-sei-onde o odor de fritura que vinha da cozinha e se espalhava por todos os ambientes.  Era fácil segui-la até mesmo de olhos fechados: bastava seguir o rastro deixado pelo cheiro que ela exalava pela casa.
E o som da sua voz, rouquinho e baixo? Esse inebriava o ambiente de poesia, mesmo sendo um artigo raríssimo, pois a Naná dormia até tarde e preferia fazer as suas refeições no próprio quarto.
E assim os meus dias começaram a ser dirigidos por ela. Passava as manhãs aguardando que ela levantasse e se dirigisse ao banheiro para tomar banho. Nessa ocasião, eu já estava na sala fingindo estudar, somente para vê-la passar enrolada na toalha de banho felpuda. Melhor quando voltava, cabelos escorrendo água ainda e a toalha molhada cismando em colar no seu corpo, delineando-o todo. O cheiro deixava um rastro e me atordoavam os sentidos. Valia a pena ficar a manhã inteira esperando pela passagem dela.
As tardes também obedeciam a essa mesma rotina. Quando ela não saia para fazer compras no comercio. Nessas ocasiões saia sempre em companhia da amiga que, para ser justo, não me lembro nem como era, quanto mais o seu nome. Se era gorda ou magra, baixa ou alta, morena ou clara, isso não consigo me lembrar, já que todos os meus sentidos estavam dirigidos para Ela, a espetacular criatura cujo nome era Naná, simples assim.
Rotina também era o que faziam ao anoitecer. Finalzinho da tarde, as duas saiam para a aula após um rápido jantar realizado também no quarto. Livros e cadernos abraçados junto ao peito, saia azul plissada e blusa branca com um laço azul fechando à gola, Naná subia altaneira a rua chamando a atenção de quantos com ela cruzava.
Poderia dizer que se tratava de um espetáculo deslumbrante a passagem dela descendo os degraus da escada para sair para a rua. Rivalizava com a magnifica cena da atriz Audrey Repburn descendo as escadas do Louvre, no filme Cinderela em Paris. Apenas as escadarias não poderiam se comparar. A do Louvre era de mármore, a da pensão, de madeira. Mas isso na minha humilde opinião, pois não sei de nada. Só sei de Naná.
Nesses momentos, já me encontrava à porta de saída, pronto também para ir para o colégio, mas aguardando com ansiedade a descida dela pela escadaria. 
Nessa ocasião também me sentia regiamente agraciado com um oi mortífero que me lançava quando passava por mim. E isso fazia o meu coração bater como nunca, zabumbando.
Mas a minha doce ilusão tinha hora certa para acabar. Estava escrito.
Em uma dessas tardes-noites tive a infeliz ideia de seguir as duas moças quando saíram para o colégio.
Pois logo que alcançaram a Praça Deodoro, separaram-se. E cada uma escolheu um local para esperar por algo. Mas, esperavam o quê?
Nessa altura a noite já cobria São Luís e as luzes artificiais substituíam já completamente a do dia que já se fora. Não tardou, e o primeiro veículo parou e um princípio de conversação se desenrolou entre Naná e o motorista. Daí a pouco, ele se foi. Ela ficou.
Outro carro parou. A mesma coisa aconteceu. O motorista prosseguiu viagem, ela ficou e suspendeu um pouco mais a barra da saia.
O terceiro carro levou Naná embora. Ainda vi que ela trocou beijos calientes com o condutor do veículo. A minha certeza chegou ao mesmo tempo em que o carro sumia na noite: Naná era uma garota de programa. Uma puta!
Um coração sangrou na noite são-luisense.

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