terça-feira, 23 de junho de 2015

Barras do Marataoan: O Retorno



(Chicoacoram Araújo)*
                Alguns dias atrás fui a minha cidade natal, Barras do Marataoan. Há muito tempo por lá não ia. A cidade cresceu, inchou; não se desenvolveu.  O comportamento das pessoas mudou. As crianças e jovens não diferem nem pouco dos que moram nas grandes cidades. Perderam a simplicidade interiorana; a violência é marcante. Tudo mudado. Aliás, ultimamente, perdi o encanto em visitar meu torrão. Há quase dois anos não andava por minha saudosa Barras. A última vez estive lá por conta do velório e sepultamento de uma estimada parente. Cabe aqui salientar que o objetivo dessa viagem de agora era apenas para conduzir minha tia de volta à Teresina, conforme tínhamos acertado semana antecedente a sua ida àquela cidade. A viagem fora marcada para o domingo seguinte.
                Acordei cedo no domingo, sem muita vontade; comumente, nesse sagrado dia, levanto-me um pouco mais tarde. Uma preguiça perpétua me abate. Nada, porém, que um bom  banho não possa dissipar.
O dia amanheceu ensolarado; o céu com um azul brilhante, brisa calma e aconchegante. Dia bom para uma viagem, pensei. Despedi-me da esposa, e parti.
                Em pouco tempo já estava na BR-343 rumo à Barras – terra dos governadores, dos poetas e dos escritores; e paraíso das águas. Alguns minutos depois, tomei a PI-113, conhecida como Rodovia do Babaçu, acesso da rota turística chamada de Caminho das Águas. Sozinho no meu carro, absorto em um torvelinho de pensamentos passados, lembrei–me de um certo  janeiro, lá pelo ano de 1961.  Tinha apenas oito anos de idade quando meu pai decidiu morar em Teresina em busca de melhores condições de vida para sua família. Fiquei maravilhado com minha primeira viagem, sobretudo pelo fato de ir em cima de um caminhão, embora apertado entre as velhas tralhas que estavam em cima da carroceria. Naquela época, o percurso entre as duas cidades durava cerca de quatro ou cinco horas. O chão da estrada era de piçarra, o que levantava uma grande poeira avermelhada com o atrito dos pneus do veículo.  Hoje, com a estrada asfaltada, o tempo de viagem é de apenas hora e meia, aproximadamente. Mas, essa história já contei aqui mesmo nesse espaço, em crônica anterior.
                Como todo mundo gosta de contar a história da sua terra querida, peço licença para falar sobre a minha também. A história registra que Barras surgiu a partir de uma fazenda de gado conhecida como Buritizinho, que se tornou povoado alguns anos depois. Nessa localidade construiu-se, em meados do século XVIII, uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, atualmente padroeira da cidade.  Barras do Marataoan, como era antes conhecida (em alusão ao rio que serpenteia e banha a cidade), foi elevada à categoria de cidade pelo Decreto nº 1, de 28/12/1889. A cidade está localizada no centro de seis barras de rios e riachos, daí o nome adotado, Barras. Localiza-se na microrregião do Baixo Parnaíba Piauiense, com uma área de 1.719,798 km², e possui densa vegetação entremeada por babaçu, mas também extensos campos cobertos por gramíneas. Sua população atual beira os 44.850 habitantes; e  barrense é o nome gentílico do habitante do município.
                Barras é conhecida como terra dos governadores e dos poetas. Segundo Elmar Carvalho, notório magistrado e escritor piauiense, o primeiro aposto se devia não só ao fato de Barras ter tido vários de seus filhos na governança do Estado do Piauí, mas também na chefia do Executivo de Pernambuco e amazonas. Ele cita como governadores do Piauí: Gregório Taumaturgo de Azevedo (26/12/1889 a 04/06/1890), primeiro governador republicano do Piauí; Coriolano de Carvalho e Silva (11/12/1892 a 04/07/1896); Raimundo Artur de Vasconcelos (01/07/1896 a 1900); Matias Olímpio de Melo (1924 a 1928); e Leônidas de Castro Melo (03/05/1935 a 09/11/1945), que governou o Estado por mais de dez anos. O emérito Escritor elenca ainda os barrenses Gregório Taumaturgo de Azevedo e Fileto Pires Ferreira como governantes do Estado do Amazonas, enquanto Segismundo Antônio Gonçalves governou o Estado de Pernambuco. O poeta declara ainda que Barras poderia ser chamada, igualmente, de terra dos intelectuais, uma vez que forneceu ao Estado nomeados escritores e poetas.
                Quanto ao epíteto de terras dos poetas, o ilustre Elmar Carvalho destaca entre os intelectuais, poetas e escritores às margens do Marataoan, os seguintes barrenses: David Moreira Caldas, o “Profeta da República”, por ter previsto, em 1873, a Proclamação da República do Brasil no ano de 1989 (ele faleceu 10 anos antes da Proclamação, e em condições precárias, pois a igreja católica lhe negou o sepultamento de cristão, por suas convicções políticas e religiosas. Foi enterrado fora do cemitério, nas cercanias da cidade de Teresina); Celso Pinheiro, o mais importante poeta simbolista do Piauí; José de Arimathéa Tito Filho, que presidiu a Academia Piauiense de Letras durante 23 anos; João Pinheiro, autor da mais notável obra sobre a história literária do Piauí; Matias Olímpio de Melo, Presidente da Academia Piauiense de Letras por dois mandatos. Elmar cita ainda os escritores, Fenelon Castelo Branco, José Pires Lima Rebelo e Wilson Carvalho Gonçalves, sendo este último o autor de uma das mais notáveis obras de divulgação da História do Piauí. Afirma ainda que são considerados barrenses os poetas Leonardo de Carvalho Castelo Branco, Hermínio de Carvalho Castelo Branco e Teodoro de Carvalho Castelo Branco, haja vista que as localidades onde nasceram pertenceram ao município de Barras. Seria injusto não mencionar o barrense Lucílio de Albuquerque, que foi pintor, desenhista e professor brasileiro, de notoriedade internacional. Em 1906, esse ilustre piauiense recebeu o Prêmio de Viagem da ENBA, com a tela Anchieta escrevendo o poema à Virgem.
                Elmar Carvalho, em sua pesquisa, afirma categoricamente que Barras, além de ser a Terra dos Governadores, é também celeiro de marechais e senadores. Entre os primeiros, enumera: Firmino Pires Ferreira, que lutou na Guerra do Paraguai, e Gregório Taumaturgo de Azevedo, que chefiou a comissão de limites entre o Brasil e Bolívia, e fundou a cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre, e a Cruz Vermelha Brasileira. Quanto aos senadores, Elmar Carvalho aponta os barrenses Firmino Pires Ferreira, Raimundo Artur de Vasconcelos, Joaquim Pires Ferreira, Matias Olímpio de Melo e Leônidas de Castro Melo, salientando que todos estes foram também deputados federais.
                Aqui cabe um adendo. O emérito magistrado e escritor Elmar Carvalho é barrense de sangue, pois como ele próprio declarou, assim como seu pai, vários dos seus ancestrais paternos são filhos de Barras. Portanto, esse preclaro poeta e escritor é, também, um ilustre barrense, embora tenha nascido na vizinha cidade de Campo Maior.
                Feito a publicidade da minha terra natal, volto novamente meus pensamentos para a Rodovia do Babaçu. Depois que passei por José de Freitas e Cabeceiras, recordo-me de ter visto, durante aquela viagem da mudança de minha família para a Capital, uma revoada de periquitos que sobrevoavam as matas, um nambu correndo no mato, um carcará pousado em uma árvore, um preá atravessando a estrada, uma palmeira lascada por um raio. Lembro-me também, nas margens da rodovia, bois pé duro pastando, algumas casas cobertas de palhas de palmeira, bem como algumas roças cheias de legumes. Esse fantástico cenário bucólico agora não o estou vendo. Tudo mudou; é passado. Meus pensamentos divagavam errantes, em lembranças atuais e remotas. Parece que a solidão provoca no ser humano a capacidade de lembrar fatos e coisas que ocorreram no passado distante, e que, às vezes, a gente nem imaginava a existência deles. Lembre-se que eu estava sozinho e Deus no meu automóvel.
                Chegando à cidade de Barras, um pouco antes, vi a casa grande da antiga fazenda conhecida como “Cantinho”. Nessa localidade, quando criança, tomava de vez por outra uma garapa extraída da cana-de-açúcar, e comia também rapadura quentinha. Observei que aquela vivenda agora estava reformada, mas guardava as características antigas; e que não existe mais a casa de moagem.
                Do “Cantinho” para cidade é pulo; apenas cinco minutos. Enfim, cheguei à Terra dos Governadores e dos Poetas. Porém, antes de entrar na cidade, existe à esquerda da rodovia, em uma curva e um pouco antes da ponte que atravessa o rio Marataoan, um morro que impede a visão panorâmica da cidade. Esse pequeno acidente geográfico está no lugar errado, ou foi a estrada que foi construída no lugar indevido?
                Chegando ao meu destino, fui direto para casa da minha tia que morava do outro lado da cidade, no Bairro Boa Vista. Antes de entrar na rua que dar acesso à residência da referida tia, observei, à direita, algumas pequenas casas e bares que ficavam ao lado de uma grota que escoa água e esgoto. Nesse local, quando o bairro não era ainda muito povoado, existia um perene riacho conhecido como “Riachinho”. Hoje, não existe mais esse córrego em que tantas vezes, quando criança, banhei em suas águas cristalinas.  Por conta desse fato, transcrevo, a seguir, um trecho de poema que escrevi muito tempo atrás:

Onde está meu córrego de nome Riachinho?
Meu pequeno rio de saudades – água preciosa servida em um dourado pucarinho!
Riacho já não mais existe. E a minha Boa Vista
Há muito deixou de ser uma bela vista.

No final do mesmo poema, eu faço um protesto ecológico que diz assim:

Lá se vão mais de meio século de rota,
Época que não volta mais; e eu longe do canto dos pássaros, pela manhã.
Hoje, meu Riachinho é apenas uma grande grota,
Que desemboca no meu rio de saudades, o Marataoan.

                Sigo na minha viagem sentimental e, momento depois, eu chegava em casa da minha tia, que acima já me referi. Esta e a outra tia, que viera do Rio Janeiro visitar parentes, já me esperavam, conforme o combinado na semana anterior, em Teresina. Desde a minha chegada até a hora do almoço houve uma longa e demorada conversa entre os parentes que se encontravam na casa. Lembrávamos acontecimentos do arco da velha; assuntos de toda natureza. Vez por outra, ouviam-se belas gargalhadas. Uma confraternização familiar, enfim. Isso durou até a hora do almoço. O cardápio era costela frita de leitão novo, baião de dois, com o feijão colhido na roça no dia anterior, acompanhado de uma galinha caipira ao molho. Iguarias como estas não existem melhor. Após a ceia, fui cochilar um pouco em uma macia rede branca feita de tecido “sol-a-sol”.  Afinal, ninguém é de ferro!
                Quando o sol baixou, e o calor deu uma trégua, partirmos de volta para Teresina, eu e minha tia; felizes. 
     
* Chico Acoram é funcionário público federal, contador, poeta bissexto, cronista e contista.                           

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