Imagem do Cajueiro e H. de Campos - blog do Micko Silva |
Presidente Dutra sempre foi um
corredor de passagem para os nordestinos que buscavam a Amazônia para fugir da
seca periódica que costuma castigar parte considerável desta região. Muitos
ficavam por aqui, enquanto que outros se demoravam um pouco, apenas o tempo de
refazerem as forças, e depois seguirem viagem. Entre os primeiros, com família
numerosa, certo cidadão escolheu exatamente se fixar sob a fronde do cajueiro
que eu já descrevi aqui, em crônica anterior. Ergueram um quiosque ampliado de
madeira e instalaram uma pequena venda de comidas. E para conforto dos
comensais, espalharam ainda algumas mesas toscas em volta do seu negócio. Não é
preciso dizer que provocou grande desgosto na meninada que costumava se reunir
ali para contar suas estórias ou para escaparmos do sol que nos torrava o
cocuruto. Haviam nos esbulhado o território sagrado, aquela gente recém chegada.
Mas, mesmo essa família que ocupou
sem escrúpulo o nosso espaço, o nosso centro de convenções, também deixou uma
história para ser lembrada.
Na filharada que passou a ocupar a
sobra do nosso cajueiro, existia uma menina que não devia ter mais do que seis
anos de idade, mas também um papagaio muito falador e imoral. O bicho
encarapitava-se no alto do cajueiro e demorava-se a cantar, para deleite da
gurizada. Também costumava denunciar alguns momentos de discursão em que se
engalfinhavam os membros daquela família, levando ao conhecimento público os
termos nem um pouco cristãos que aquelas pessoas impingiam umas as outras.
Palavrões cabeludos que não
costumavam ser pronunciados na frente de crianças ou de requintadas damas, eram
repetidos pelo psitacídeo sem nenhum constrangimento pelos novos habitantes do
cajueiro. Entretanto, o que nos chamava mais a atenção era aquela menina que
devia aprontar muito com a mãe, pois vivia sendo espancada sem dó nem piedade.
Nesses momentos, o papagaio entregava o serviço para a comunidade: chorava
desesperadamente imitando o clamor da menina, repetindo as palavras de dor e
sofrimento que ela ia emitindo a cada chibatada recebida. E a mãe, além das
reprimendas e açoites que fazia à criança, ainda lançava impropérios ao
papagaio, desfiando uma série de nomes feios que não podem ser registrados
aqui. Acredito mesmo que se não estivesse protegido no alto do cajueiro, o
papagaio dedo-duro também seria convenientemente contemplado com uma saraivada
de açoites que, nesse caso, ficavam apenas com a infeliz criança.
A família, após algum tempo de
estadia, se foi para lugar incerto e ignorado levando junto o cachorro e o
papagaio sem papas na língua. Devolveram-nos o nosso espaço de reuniões. E o
velho cajueiro voltou a ser o nosso abrigo preferido e o repositório das
lembranças daqueles momentos felizes que passamos juntos, desfrutando da sua
sombra e dos seus deliciosos frutos.
Tempos depois, um prefeito não muito
amigo das praças e dos espaços vazios da cidade, doou o terreno para seus
aliados políticos para que se construíssem naquele local algumas casas, como de
resto andou fazendo com algumas áreas públicas da nossa cidade tão desprovidas
de praças ou locais para o lazer da população. Foi nesse período também que o
maravilhoso terreno que cercava o nosso Grupo Escolar Murilo Braga foi doado
para um grande número de famílias. Nesse tempo também o velho cajueiro tombou
sob a ação de um malvado machado que o pôs no chão sem a menor compaixão. Foi-se
o nosso espaço preferido.
Ficou, todavia, a lembrança do seu
porte altivo e dos belos frutos e da sombra que ele presenteava a tantos quanto
o procurava. Ficou também a pergunta: quem o plantou e quando? Teria essa
pessoa usufruído da sua dadivosa presença? Ou será que nasceu espontaneamente,
sob a ação de algum pássaro benfazejo que lançou a sua semente no solo fértil
da Diogo Soares.
Já o cajueiro de Humberto de Campos
mereceu uma homenagem: uma bela e formosa pracinha foi construída no seu
entorno, homenageando também o seu benfeitor com algumas placas informativas.
Do escriba, um pouco da história do cajueiro que ele contou em seu livro
Memórias: “No dia seguinte ao da mudança
para nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda cheirando ainda
a cal, a tinta e a barro fresco, oferece-me a natureza, ali, um amigo.
Encontrava-me no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos
descobriam no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma
castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser
árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a
carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda,
as duas primeiras folhas úmidas e avermelhadas, as quais eram como duas joias
flexíveis que tentassem fugir do seu cofre... Precipito-me, feliz, com a minha
castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos
uma pequena cova, enterro ai o projeto de árvore, cerco-o com pedaços de tijolo
e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e das galinhas. Todas as
manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablusão alegre.
Acompanho com afeto a multiplicação de suas folhas tenras”. E por ai vai. Se
alguém que leu esse texto estiver interessado em dar continuidade ao texto,
leia o belíssimo livro de memória do incomparável e prolífico escritor Humberto
de Campos.
Ficou a história viva de um menino
que cultivou com afeto e com desvelo uma árvore no seu quintal e registrou o
seu feito para a posteridade no seu livro de memórias. Humberto de Campos
partiu para a eternidade em 1934. No mês de julho do ano da graça de 2012,
observei que dos ramos do seu cajueiro pendiam cachos e mais cachos de castanha
em franco processo de desenvolvimento para se transformar em caju. Vi também
alguns frutos suculentos, amarelos e convidativos. E pelo vigor que a árvore
mostrava, deve ter energia ainda para comemorar mais um centenário. Vida longa
aos cajueiros!
Volto de uma bela viagem cultural pela velha Europa, hoje já tão dividida mas sempre cheia de muita história e um verdadeiro museu a céu aberto a contar-nos a trajetória humana. Aqui fincando novamente o pés da terra querida, sinto o desejo de atualizar minha leitura do "folhas avulsas" e me deleito com as cronicas dos cajueiros árvore que me remete também aos doces tempos da infância. Seu blog tá melhorando à velocidade mil, mais uma vez Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Fernando.
ExcluirPreciso do acesso dos meus dois leitores contumazes para continuar produzindo.
Dr. Araújo, acaba de lê uma belíssima crônica. Cheia ternura e poesia. Quem nunca teve um cajueiro no turbilhão de lembranças de uma criança. No quintal da minha casa,à beira do Marataoan, tinha, além de outras fruteiras um frondoso pé de caju. Há, saudades de minha infância.
ResponderExcluirChico Acoram,
ResponderExcluirA sua origem coincide com a minha. Acho mesmo que todos os meninos do interior são meio parentes, além de conterrâneos.