Imagem meramente ilustrativa |
José Pedro Araújo
Três da tarde, tempo quente, inverno
findando, descíamos a pé a inclinada ladeira do Alto da Balança no sentido da
cidade. Voltávamos para casa depois de matar a sede dos animais retidos na
quinta localizada depois do rio Preguiça, obrigação de quase todos os dias. Foi
ai que avistamos o carro que acabava de passar o Riachinho e se encaminhava
sacolejando ao nosso encontro. Era um daqueles caminhões boiadeiros, com grades
bem altas, e sobre elas vários homens que se seguravam como podiam, dificuldade
aumentada pelos constantes solavancos que o veículo emitia ao rolar pela pista
esburacada. Atrás de si, uma nuvem de poeira vermelha o acompanhava como uma
fiel seguidora, evoluindo e se dispersando ao sabor do vento morno.
Ao passar por nós, em começo da
ladeira íngreme, o carro diminuiu a marcha e o motor agitou-se agoniado,
fazendo força para superar a forte subida. Em meio à poeira que ia ficando para
trás, ouvi uma voz chamando pelo meu nome. Era o Zé Pretinho. Mulato simpático
e muito amigo das crianças que residiam nas proximidades da casa em que
morávamos na Rua Grande. Encarapitado lá no alto das grades do caminhão, agora
em marcha cada vez mais lenta, ele acenava para mim.
Joguei o cabresto que trazia comigo
para o meu companheiro e corri em direção ao carro. Havia acabado de decidir me
juntar ao grupo que se segurava como podia nas elevadas grades. Ia fazer um
passeio de carro. Atrás de mim o colega começou a gritar pedindo que não fosse
em frente. Nem me dei ao trabalho de
justificar o meu ato, precisava aproveitar que o caminhão ainda estava próximo.
Subi sem muitas dificuldades e, logo,
me encontrava do lado do Zé Pretinho. Perguntei-lhe para aonde iam. Ele me
respondeu que iam apanhar algumas cabeças de gado numa fazenda um pouco
distante. Dei de ombros e me acomodei no poleiro; não importava para onde
estávamos indo, contanto que voltássemos logo. Além do mais, estava gostando
daquela aventura que estava só no começo e que, como veremos logo à frente, me
traria muitos dissabores.
A fazenda, diferentemente do que
afirmara o Zé Pretinho, não ficava muito próximo. De onde apanhei o caminhão
até lá ainda levou uns bons dez minutos para vencermos a distância. Ficava
quase nos Poços, região belíssima e de terras muito férteis. Mas, acabou aí a
beleza da minha aventura. Dali para frente as situações foram se encadeando no
sentido de me trazer dissabores. Para começar, não havia embarcadouro por lá.
Foi necessário cavar um buraco no chão para que o caminhão pudesse penetrar
nele e o para que o gado a ser embarcado tivesse acesso à carroceria. Isso
demorou muito tempo. Pelo nervosismo demonstrado pelo motorista vi que aquele
serviço não estaria completado antes da noite chegar. Ai quem ficou nervoso fui
eu.
Cava daqui, discute dali, vi que a tal
rampa estava demorando demais para ficar pronta, apesar do terreno ainda está
um pouco úmido. A ferramenta utilizada para escavar o chão também não era muito
apropriada, e por isso demorou tanto para aquilo ficar do jeito que o motorista
achava que estava legal. Trabalho enfim concluído, ai começaria outro
trabalhão: o gado não se mostrava muito satisfeito com a possibilidade de
entrar naquela carroceria, e os homens encarregados de conduzi-los até lá
pareciam pouco afeitos à tarefa.
A minha preocupação somente aumentava
com o passar das horas e com a possibilidade da chegada da escuridão.
Finalmente deram por completada a empreitada e começaram a arrumação para a
partida. Já era quase noite quando terminaram de colocar o gado sobre o
caminhão. Agora parecia que tudo havia terminado. Era só acionar a chave no
contato e colocar o bicho para funcionar. Até ai, tarefa cumprida: o motor
pegou que foi uma beleza. Nesse momento, meu coração já começava a aquietar-se,
pois, mesmo chegando já noite em casa, não deveria ser muito tarde, e talvez
conseguisse me safar bem.
Mas qual! Ninguém havia contado com um
problema a mais: a carga embarcada ficou muito pesada, e isto fez com que o
caminhão começasse a afundar no terreno ainda um pouco molhado logo que o
motorista deu a partida. Patina daqui, afunda dali, logo vimos que daquele
jeito não conseguiríamos jamais sair dali. E como sair daquele imbróglio, foi
motivo de grande discursão. Cada um queria dar uma ideia mais estapafúrdia. Até
que decidiram aliviar a carga. Aliviar a carga significava retirar algumas
reses e colocá-la de volta no curral. Aliviar a carga também significava
demanda de tempo.
Nesse momento, meus nervos já estavam
em pandarecos. Agora a coisa estava complicada. Era certo que não chegaria em
casa tão cedo. E como ninguém sabia por onde eu andava, imaginei como deveria
estar os meus familiares, e como seria a minha recepção na volta.
Retiraram a metade da carga. Os
animais até facilitaram. Tudo, desde que saíssem daquele aperto. E com isso, já
era possível fazer-se uma nova tentativa. Dessa vez foi o caminhão que se negou
a colaborar. Parecia que a bateria tinha descarregado. Porca miséria! Meu
desespero chegou ao ápice.
O motorista desceu do carro
irritadíssimo, e começou a lançar impropérios para todos os lados. E não tendo
outra coisa a fazer, pois na situação em que o veículo estava, era impossível
empurrá-lo, voltou para a boleia e mais uma vez deu com a chave no contato.
Alvíssaras! Não é que o estúpido pegou! E meu herói do dia conseguiu fazer com
que o bichão saísse do buraco de uma só tentativa. Gritos de alegria, palmas,
assobios, era certo que ninguém queria passar a noite por ali. Eu, mais que
todos.
Mas, ai alguém se lembrou de perguntar
como iriamos embarcar o restante da carga retirada. Para isso não encontraram
respostas. E o motorista resolveu demonstrar a sua autoridade: não levaria mais
do que a carga que já estava embarcada. Pronto. E assim fez. Todos a bordo,
enfim!
Ai um desgraçado olhou para mim quando
subia na carroceria e falou que eu não poderia ir com eles. Não tinha nada a
fazer ali, nem havia ajudado em nada! Meu desespero foi ao limite. Aquele infeliz
estava se arvorando de dono de uma coisa na qual ele não tinha outra relação a
não ser a de ajudante. Mas o Zé Pretinho me salvou daquela situação. Disse que
eu havia ido com ele e que ninguém me impediria de retornar com ele também. O
imbecil ainda tentou argumentar, mas foi contido pelo meu amigo ao preço de uma
cara fechada, de poucos amigos. Pronto, subi nas grades e me arrumei para
partir.
A noite estava muito escura, daquele
tipo no qual é impossível se divisar algo a dois metros de nós. Mas, o motorista
ligou os faróis, acelerou e foi encurtando a distância para a minha casa. Ou
mais precisamente, aumentado a proximidade do meu ajuste de contas com meus
pais.
Dai a poucos instantes chegamos perto
da travessia do rio Preguiça. Precisávamos passar por uma ponte de madeira,
velha e carcomida pelo tempo. E isso era também motivo para preocupação de
alguns dos que ali estavam. No presente caso, como diz a Lei de Murphy, “qualquer coisa que possa correr mal,
ocorrerá mal, no pior momento possível”. Não chegamos a subir na ponte. O
caminhão atolou logo na sua cabeceira. E atolou até o eixo naquele massapé que
não deixa dúvidas para ninguém: dali para frente somente um trator resolveria o
caso.
Não era o meu dia! Resolvemos
completar o trajeto a pé. E fomos, rompendo aquela escuridão tremenda, do tipo
que se diz de “meter o dedo no próprio olho”. Já havíamos andado alguns minutos
quando eu ouvi uma voz conhecida perguntando se eu não estaria naquele grupo. A
voz era de um tio meu. Haviam, finalmente, lembrado de perguntar ao rapaz que
me acompanhava quando fomos dar de beber aos animais, conforme mencionei no
início deste texto, o que ele sabia sobre o meu sumiço. E ele falou que eu
havia embarcado em um caminhão ainda no Alto da Balança. Aquele tio meu foi
destacado para investigar o caso e terminou por descobrir que o transporte
tinha ido apanhar um gado na fazenda do Senhor Raimundo Claro. Foi como ele me
encontrou.
Vou parar por aqui. O texto já está
muito longo e eu não vou matar a curiosidade de ninguém. Sei que tem muita
gente querendo saber o resultado desta história. Como foi dolorosa demais para
mim, não vou atender a ninguém. Imagina!
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