quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Diário de Um Náufrago (Capítulo III)



Foto Ilustrativa by Google
José Pedro Araújo


DUAS DESCOBERTAS IMPORTANTES


Chegou a temporada de chuvas. Elas vieram fortes, com ventos, trovões, e logo os dias começaram a ficar muito solitários. Mais do que jamais foram. Eu não disse ainda que quando acordei na praia, tinha alguns hematomas pelo corpo, e um corte largo, mas raso, na cabeça, por cujo orifício o sangue já havia escorrido, mas agora havia estancado. O bom disso é que quase não me doía mais. Residia ali a razão da minha perda momentânea de memória, foi o que pensei.

Com os meus dias de solidão se acentuando, passei a me inquirir como havia chegado até ali, o que havia me acontecido. E uma luz se acendeu na minha mente quando, certo dia, encontrei em um dos lados da ilha uma grande quantidade de cartas de baralho. Estranhamente me vi imbuído de grande contentamento e passei a juntar freneticamente o material espalhado pela areia da praia de modo que, quando cheguei ao meu barraco e comecei a organizá-lo, vi que formavam quase três baralhos completos. Passou a ser o meu passatempo favorito e quase abandonei os livros que já se achavam em boa quantidade, esperando para serem devorados. Vi também que manuseava com extrema maestria as cartas como se tivesse sido essa uma coisa que eu fazia com muita assiduidade. Paciência, pôquer, buraco, vinte e um, canastra, black jack,  e tantos outros jogos, viraram atrações em uma mesa que eu cobria com a toalha descolorida por mim encontrada dias antes. A mesa eu havia achado faltando uma perna, mas a consertei com habilidade. Passei a jogar sozinho, mas honestamente. Deste modo, as partidas eram duras, disputadíssimas. Até havia encontrado um grande boneco de plástico, um palhaço sorridente, que me passou a fazer companhia, e ao qual dei o nome de Vincent. Vincent não jogava, só fazia parte da torcida, e como não interferia, não recebia de volta aquelas piadinhas sem graça que são lançadas sobre os assistentes chatos, os tais perus.

Depois de três dias de intensas chuvas, o dia amanheceu com sol brilhante, um daqueles apropriados para se levar a família à praia mesmo. Como não havia família nenhuma a me acompanhar, e o Vincent estava me chateando com aquele sorriso que nunca o abandonava, decidi sair sozinho para uma caminhada. E caminhei bastante, pois estava com saudades de esticar as pernas. Contornei a ilha na sua face norte e andei mais uma meia hora, até encontrar uma embarcação semidestruída que eu ainda não vira antes. Era uma grande embarcação, ou o que restara de uma. Ao me aproximar mais um pouco notei que era bem maior do que eu pensara anteriormente, pois a maior parte estava submersa e deveria estar enterrada na areia, pois a carcaça não se movia quando as ondas batiam nela.

Sem dificuldades, apoiando os pés em uma abertura grandiosa no seu casco, subi até ao tombadilho, pois o navio encalhara na praia de ré. Era até possível ver duas enormes hélices enterradas quase completamente na areia. E ele parecia estar ali há muitos anos. Não era um vaso de guerra, nem um barco de pesca. Também não era um navio de passageiros, e como tinha espaço achatado, plano, para acomodar contêineres, não havia dúvidas, tratava-se de uma embarcação mercante. Passeei pelo porta-contêineres e ainda pensei em entrar por uma abertura que levava ao seu interior, mas um esvoaçar de morcegos apressados me fez refluir da ideia. Que ficasse para outro dia.

Não vi nenhum contêiner por ali, nem muito menos ao redor da embarcação. Talvez tivessem levado a carga e embarcado em outro navio.

Ainda lá em cima, parei para observar a ilha do alto e vi que logo mais para o centro dela havia uma elevação significativa, um morro de boa altitude. Talvez fosse possível ver bem o entorno dela lá do seu cume. E parti para lá. Fiz uma caminhada de mais de uma hora até ao local e cheguei um pouco cansado. Menos mal que havia levado uma garrafinha de água como sempre fazia, envolta em um pano para lhe conferir uma característica antitérmica que, apesar de se achar agora meio morna, foi de muita utilidade. Parei na base da elevação, e observei que havia uma estreita trilha de subida, como se fosse utilizada amiúde para alguém lhe chegar ao topo. Fiquei surpreso com a descoberta, mas decidi prosseguir com a subida e em menos de dez minutos cheguei a sua parte mais alta.

Havia lá em cima uma espécie de esplanada, e no centro dela, uma pedra larga e plana, uma espécie de altar, ou observatório, que parecia ter sido usado com muita frequência. Subi nela e tive ao meu favor uma vista deslumbrante. O mar de águas calmas e azuis perdia-se no horizonte até fundir-se com a curvatura da abóbada celeste. Fiquei emocionado com a visão. De fato, um lindo espetáculo. Demorei uma eternidade ali, até que a barriga reclamou a ingestão de algo. Não dava para saber, mas já passava do meio dia quando voltei à base daquele morro. Tive, lá em cima, outra surpresa: do meu ponto de observação, descobri que havia uma infinidade de ilhas para o lado oposto ao que eu habitava. Umas pequeníssimas, e outras bem maiores, todas com vegetação luxuriantemente verde. Retornei para casa com várias perguntas se entrechocando na minha mente.

No dia seguinte, chuva, e no outro também. E como ficava em casa sem ter o que fazer, além de jogar cartas e ler, comecei a pensar no que havia visto naquele dia: a trilha de subida no morro, a pedra que mais parecia um altar para sacrifício ou um ponto de observação, a existência de inúmeras outras ilhas. Tudo isso aflorava na minha mente. E passei a imaginar se não existia mais alguém por ali, além de mim. Mas não cheguei a nenhuma conclusão. Desviava o pensamento, mas logo voltava ao ponto inicial, e assim ia dando voltas e mais voltas, até que o assunto sumia da minha mente.

De uma coisa eu tinha certeza: alguém usou aquele caminho por muitas vezes para subir ao alto daquela elevação. Ou pelo menos já fizera isso há algum tempo. E se era assim, o que foi feito dele, já fora embora? Ainda não dava para saber, mas esta era uma verdade que eu precisava descobrir, para a minha própria sobrevivência. E se fora embora, como havia feito isso? Passei a me perguntar enquanto aguardava uma chance para sair pela praia novamente. A chuva não parava, contudo. Parecia que estávamos no pico do período chuvoso, ou que as chuvas eram bem frequentes na região, pois havia observado as árvores com líquens em profusão no tronco e galhos, o que atestava longos períodos de clima bem úmido.

Ainda bem que havia improvisado algumas lamparinas, pois a minha fogueira havia ido para os cafundós com as chuvas chegando. E por isso, as minhas lamparinas se mantinham acesas durante todo o tempo, esfumaçando as paredes e correndo risco de se apagarem quando o vento penetrava forte pelas frestas das paredes de madeira. E foi ai que improvisei proteções de vidro para elas, tipo aquelas camisas dos lampiões. Não fora difícil. Bastou retirar o fundo de algumas garrafas claras e pronto. Bom, a visão não era muito bonita, mas a sua eficiência estava comprovada.


2 comentários:

  1. Dr. Araújo,
    Legal! Gostei do palhaço Vincent; acho que ele vai rir muito do seu companheiro náufrago. Acho que no próximo capítulo vai ocorrer muita ação. Até Quarta. Um abraço.

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  2. O Vincent é meio nômade, acho que logo vai procurar outras praias. Ou não. Grande abraço, Chico Acoram.

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