sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A Decisão

Imagem by Google



José Pedro Araújo

Ramiro chegou à plataforma de embarque com a mesma decisão tomada ao sair de casa: “embarcarei no primeiro trem que partir. Pra onde, não sei. Pode ser pra qualquer lugar, desde que este qualquer lugar fique distante daqui”.
Arriou a mochila no desgastado piso de cimento e ficou observando o movimento apressado dos passageiros. “Parecem formigas tontas, nesse irrequieto vai-e-vem”, pensou enquanto se abaixava para apanhar a mochila novamente.
Dando de ombros, encaminhou-se para uma velha e fumacenta locomotiva que apitava estridentemente à sua direita. E os passageiros, antes apressados, agora corriam para não perder o trem na iminência de partir. 
Ramiro seguiu calmamente na direção do primeiro vagão sem se incomodar com o corre-corre dos outros passageiros que trombavam nervosamente atrás dele, querendo afastá-lo do caminho a qualquer custo. Não alterou o seu humor. Não alterou a passada, para desgosto do primeiro-comissário que já o olhava como se quisesse esganá-lo.
            - O bilhete da passagem, meu rapaz! – o velho ferroviário soltou a voz por entre os fios do bigode amarelado pela nicotina. – Cadê a porcaria do bilhete da passagem? – externou a sua raiva ao observar que o rapaz não trazia nada nas mãos.  
            Continuando no seu total desinteresse, sem demonstrar a menor pressa, Ramiro meteu a mão no bolso lateral da mochila, e com os dedos calmos resgatou um pedaço de papel azulado que apresentou ao nervoso ferroviário que, impaciente, quase arrancou de suas mãos.
            - Me dá isso aqui, rapaz! Sabia que temos horário a cumprir? – falou sem olhar para o rapaz que continuava impassível. – Esse trem não é o seu! Tá maluco? – falou sem conseguir mais reprimir a raiva que sentia daquele jovem que parecia não ligar para o tempo, para o mundo, para nada, afinal. – Não sabe ler? O seu trem só parte daqui a meia hora! Aqui, ó! – apontou para a hora escrita no ticket.
Sem esperar pela resposta do rapaz, o velho deu-lhe as costas e acenou para o maquinista, avisando-o que já podia partir. Ramiro recuou dois passos, e sem mudar a fisionomia, falou consigo mesmo: “eu só ia perguntá-lo se o trem era o meu”. E olhou para o bilhete como se o visse pela primeira vez. “São Luís” - estava escrito em código - SLZ.
Sem demonstrar a menor emoção arrastou os pés até um banco de madeira encostado na parede e desabou sobre, colocando a mochila ao lado. “São Luís é um bom lugar”. Foi a primeira vez que se permitiu emitir uma apreciação desde que levantara de manhã com a vontade de sumir da cidade por uns tempos. “Qualquer lugar é um bom lugar, desde que fique afastado de meus problemas”, concluiu sua análise como se desse o caso por encerrado.
Procurando uma posição mais relaxada, recostou-se no duro encosto e cruzou as pernas disposto a esperar pela partida do seu trem. Mas, antes de fechar os olhos para descansar a vista da fumaça que o incomodava desde o momento que pisou naquela plataforma barulhenta, ainda pensou uma última vez: “Meia hora. É o tempo que ainda permanecerei neste lugar horrível”. Fechou os olhos e procurou se isolar do mundo.
Estava assim, quando um som metálico o tirou da madorra em que se encontrava. Pela primeira vez também suas feições se alteraram naquela manhã. “Que diabos está acontecendo?” -  abriu os olhos rapidamente.
- Ei! Tá surdo, rapaz?  Até quando eu tenho que gritar avisando que o seu trem já vai partir? – o velho ferroviário se esgoelava de frente para ele com uma barra de ferro na mão. Mais um pouco e ele o espancaria com ela, tal o estado em quem se achava.
Ramiro olhou para ele mais relaxado e pensou mais uma vez consigo mesmo: “então é isso! O maldito gongo que ouvi tocar com estardalhaço era isso?”.  E calmamente se encaminhou para o vagão que o velho lhe apontava. Procurou outra vez o papel azulado do bolso da mochila, enquanto caminhava lentamente, ocasião em que o velho explodiu de vez:
- O bilhete, condenado! – gritou a plenos pulmões, vermelho como se estivesse numa iminente crise de apoplexia – Cadê a maldita passagem! 
Ato continuo, bateu com a barra de ferro na velha e tremida máquina. O barulho ensurdecedor que se ouviu foi o de um gongo com um som oco, como se espancassem um tambor. Mas ninguém se importou com isto. Alguns olharam de lado para observar o que acontecia, mas continuaram a fazer o que faziam antes. Nem mesmo os passageiros já embarcados pareciam dar a mínima importância ao que acontecia do lado de fora do vagão.
Então Ramiro mostrou-se satisfeito. Também pela primeira vez naquela manhã. Animou-se com o resultado da sua decisão. Logo estaria distante de tudo, da sua rotina cansativa, do seu modo de vida sem grandes decisões.
“Afinal, parece que a viagem vai ser legal” - Concluiu mansamente enquanto o velho ferroviário tomava-lhe o papel azul das mãos e o empurrava furioso para os degraus de acesso ao vagão – “Uma semana longe de casa vale qualquer coisa. A Úrsula que me perdoe, mas seus gritos já estavam maltratando os meus tímpanos. Precisava daquilo tudo?”.  Ramiro alegrou-se intimamente com a decisão tomada na noite anterior.
A locomotiva apitou estridentemente, como se concordasse com a conclusão a que o rapaz havia chegado. Foi o último apito antes do mostrengo se sacudir e escorregar pelos trilhos reluzentes rumo à saída da estação. O sol já começava a subir por trás dos prédios cinzentos daquela manhã de inverno, molhada, quando Ramiro começava a procurar um lugar para se sentar.

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