José Pedro Araújo
Aproximávamo-nos do final dos anos
oitenta quando a cidade de Piracuruca, situada no norte do Piauí, foi acordada
com a notícia de que, enfim, a prometida barragem no rio Piracuruca iria ter
seu início. Antes disso, para alegria de muitos, e a tristeza e preocupação de alguns,
já tivera início o trabalho preliminar de desapropriação dos imóveis que seriam
abrangidos pelo perímetro molhado da dita construção hídrica.
Alegria para aqueles que embarcavam na
propaganda oficial de que seria instalado na região um perímetro irrigado de
mais ou menos 8.000 hectares, para a produção de alimentos, mas, e também, para
cultivo de frutas para exportação. E em meio a estes otimistas, estavam os
endinheirados que logo visualizaram a possibilidade da construção de uma bela
chácara de recreio às margens do portentoso lago que se formaria à montante.
A tristeza, essa ficava na conta das
dezenas de pequenos proprietários que viam seus imóveis serem expropriados pelo
governo por preços vergonhosamente baixos, como sempre acontece quando os
pequenos estão na frente, ‘atrapalhando’, algum empreendimento governamental.
Para alguns destes, o problema seria ainda muito maior. Como o trabalho de
levantamento planialtimétrico da área a ser alagada foi mal conduzindo, alguns
desses imóveis, que se dizia ter apenas uma parte afetada, ficou completamente
sob a água. A parte indenizada, entretanto, foi apenas aquela que os técnicos diziam que seria atingida pelas águas
que se se juntariam no grande lago, e não todo o imóvel. Pior para estes. Viram
o restante das suas terras virar uma grande fazenda submersa.
Mas, como desgraça pouca é bobagem,
aquelas pequenas sobras de terra beira-água, e que deveriam ficar com os seus
verdadeiros proprietários, logo sofreram o assédio de alguns espertalhões que
alegavam serem aquelas terras do governo, uma vez que devidamente indenizadas.
E instalavam no local uma pequena chácara para o deleite da família e dos
amigos, pouco importando as reclamações dos espoliados.
Em meio ao segundo grupo, aquele dos
preocupados com a construção da barragem, estavam alguns que não tinham terra
nenhuma desapropriada, mas que se preocupavam com a construção de uma barragem
daquele porte tão próxima da cidade. Fizeram para estes também ouvidos moucos.
Eu me coloquei no meio destes, e até alertei em algumas reuniões de que
participei, como representante do órgão estadual de terras, que a construção de
uma barragem tão próxima da cidade trazia sempre um risco, um grande e
preocupante risco. Nesses momentos recebia uma resposta ‘técnica’, de algum
profissional da engenharia ou não, de que a barragem seguiria padrões de segurança
internacional, não havendo a menor possibilidade de um desastre. Teimoso que
sou, alegava que qualquer obra feita pelo homem, por mais segura que possa
parecer, sempre poderá ser suplantada pelas forças da natureza algum dia. Não
quis afirmar, para não ser chamado de leviano, que a maioria das grandes obras
de engenharia vinha sempre cercada de nebulosas transações: a propina corria
solta. E isso terminava por afetar a qualidade do material empregado, e dos
cuidados relativos ao empreendimento, por fim. Assim, era preciso reduzir
custos para honrar os compromissos assumidos com os contratantes. Não sei se
isso também aconteceu com a construção das barragens no nosso estado. Não tenho
como afirmar isto. Mas, ficou uma última preocupação a me acompanhar por estes
longos anos: o governo é sempre muito negligente no acompanhamento e
monitoramento de suas obras depois de construídas. Daí, o que espera?
Naquele tempo, a barragem construída
no rio Piracuruca passou a ocupar o segundo lugar no estado, em relação ao seu volume
hídrico. Ficava atrás apenas do grande lago da usina de Boa Esperança, no
Parnaíba. Formou-se um portentoso lençol d’água com 250.000.000 m³, uma massa
d’água de poder avassalador, caso venha a se soltar do lugar em que está
aprisionada. Dista, em linha reta, 4.155 metros da cidade. Pouco mais de 4,0
quilômetros de distância. Em caso de um desastre, o paredão formado pela água
tomaria uma velocidade de cerca de 50 km por hora. E assim, em menos de 5
minutos atingiria as primeiras casas da cidade. O rio Piracuruca, como se sabe,
passa a poucos passos da Praça da Matriz de Nossa Senhora do Carmo, e secciona
a cidade quase ao meio. Com o agravante de a cidade ser muito plana. O desastre
seria monumental, pois não se teria tempo para uma retirada em massa.
Para os medrosos como eu, no dizer de
alguns, é coisa para se voltar a pensar, e pensar com enorme preocupação quando
vemos acontecer tragédias como a ocorrida recentemente em Mariana, Minas
Gerais.
Para ficarmos apenas aqui por perto,
tivemos em 27.05.2009, a tragédia de Algodões que, com o seu rompimento, ceifou
a vida de 9 pessoas, e a de milhares de animais, e aniquilou centenas de
pequenas fazendolas. Os desabrigados, no que pese já terem decorrido mais de 6
anos, ainda esperam por justiça. Estão até hoje desnorteados, com suas vidas
completamente destruídas. E olha que aquela barragem possuía apenas 1/5 (um
quinto) do volume de água da barragem do Piracuruca, 50.000.000 m³. E também
não havia nenhuma cidade a jusante do lago formado. Ao contrário da do
Piracuruca. O Piracuruca ainda encontra
pela frente a cidade de São José do Divino e depois cai no rio Jacaraí para
chegar ao Longá. Daí em diante passa ao largo de Caxingó e depois vai desaguar
no Parnaíba logo abaixo. Como aumentará enormemente o volume de água do
Parnaíba até chegar à cidade de Parnaíba, não se sabe o que pode ocorrer com a
população daquela cidade. O certo é que no caminho até lá já terá deixado uma
obra destrutiva monumental.
Através de depoimentos de pessoas
atingidas pelas águas que escaparam da barragem de Algodões, soube-se que a
água formou um paredão de mais de seis metros de altura e caiu sobre tudo com o
peso e a força de milhares de toneladas, arrastando e destruindo tudo que havia
pela frente. A tragédia poderia ter sido evitada se houvesse um monitoramento
efetivo daquela barragem. Mas a alegada falta de recursos financeiro, a
desídia, a imperícia, a despreocupação com a possibilidades de tragédias que
somente atinge pessoas de baixo poder aquisitivo, ou pobres para ser mais
exato, faz com que os órgãos de fiscalização façam pouco caso dos problemas que
poderão causar essas barragens em caso de colapso. Em Algodões, mesmo com a
barragem já demonstrando estar em situação de altíssimo risco, houve um esforço
grandioso da parte das autoridades para as vítimas ficarem no lugar em que
estavam. Deu no que deu.
Uma monografia apresentada pelos pós-graduandos
Norma Felicidade Lopes da Silva e
Juliano Costa Gonçalves, em 2006, publicada na Revista Brasileira de
Estudos Urbanos e Regionais, sob o título “A
Convivência com Riscos Relacionados às Barragens no Semiárido Nordestino”,
traça um perfil tenebroso sobre os riscos apresentados pela construção de
barragens no nordeste brasileiro para a acumulação de água sob a alegação de
diminuir os problemas das comunidades afetadas pelas secas cíclicas que atingem
a região. Logo no início do documento, na sua apresentação, os construtores do
importante documento dizem que “O texto
procura mostrar que a barragem pode constituir um outro desastre, ao mesmo
tempo que não impede que secas e cheias ocorram, a vulnerabilidade da população”.
Em seguida, depois de alertar para a falta de empenho e monitoramento das
autoridades e instituições na fiscalização e correção de possíveis erros de concepção
ou uso de material impróprio, alertam que “Mais
de 12 mil pessoas morreram no século XX por barragens colapsadas”. Concluem
a sua peroração dizendo que “A intocabilidade
dos fazedores de barragens requereria ser revista no interior do discurso das
lideranças políticas que têm na domesticação das águas um apelo central para
preservar seu eleitorado”.
Recentemente um deputado estadual piauiense,
alertado pelo problema ocorrido no Rio Doce, em Minas Gerais, aprovou
requerimento à Assembleia Legislativa Estadual pedindo ao IDEPI e ao DNOCS, responsáveis
pelas barragens aqui no estado, que fizesse um monitoramento completo da
situação de todas elas. Logo após o colapso da barragem de Algodões, no
município de Cocal/PI, o Engenheiro civil Manoel Coelho Soares Filho, chefe do
Departamento de Recursos Hídricos da Universidade Federal do Piauí, em
entrevista, afirmou que “falta de
manutenção é um dos problemas de barragens”. E em resposta a indagação sobre a
possibilidade de uma barragem se romper, afirmou que “o perigo existe, mas um
acidente proporcional ao que ocorreu com Algodões I pode ser evitado”. E
concluiu: “no Brasil já houve rompimentos
em reservatórios em Minas Gerais e na Paraíba, por exemplo. Toda obra tem um
desgaste natural, é preciso um monitoramento constantes dessas áreas. Com água
não se brinca, porque a intensidade e a força dela podem ser muito maiores que
o esperado”.
Quando cuidamos do problema da
barragem do rio Piracuruca, não temos por objetivo provocar uma histeria
coletiva na população, mas tão somente alertar as autoridades para um problema
real, que pode ocorrer caso não se tomem as precauções que são obrigatórias em
casos como esses. Quem não conhece a falta de empenho dos nossos órgãos e dos
nossos gestores para cumprir com as suas responsabilidades mais comezinhas. Depois
vem a público falar em acidente natural, que um conjunto de fatores contribuiu para
o desastre. O que falta em relação às nossas barragens é um sistema de
monitoramento eficiente e efetivo. Em Piracuruca não existe, por exemplo, um
sistema de alarme para ser utilizado em razão de algum colapso ou possibilidade
de ocorrência de um. E é um sistema
simples e barato de ser instalado. Notem: depois do colapso de Algodões I,
afirmou-se que a barragem do Piracuruca corria riscos. E agora, como estamos? Passados 25 anos da construção da barragem, não se implantaram projetos de irrigação, não houve a perenização do rio Piracuruca, que nunca esteve com suas águas tão baixas. A barragem serve atualmente aos sítios e chácaras de recreio.
Fechemos a porta antes que ela seja
arrombada! Logo chegará a temporada das chuvas. Vamos acreditar nas previsões
climáticas ou vamos adotar as providências que a prudência requer?
Dr. Araújo,
ResponderExcluirEsse importante depoimento traz a lume os perigos iminentes e ocultos das barragens, especialmente as do Estado do Piauí. É muito preocupante. Sobre essa sua preocupação, aliás muito legítima, sou de opinião que este documento deveria repercutir no plenário da Assembléia Legislativa do Estado. Vamos encaminhá-lo a algum deputado para fazer leitura na tribuna?
Meu amigo,
Excluirparece estranho, este final de semana estive em Piracuruca e vi que haviam liberado água para a manutenção do rio que se achava com tão pouca água que a barraginha construída quase sob a ponte ao lado da Prainha se mostrava desnuda, totalmente exposta. Quanto ao envio da matéria à Assembleia Legislativa, deixo por conta dos meus pouquíssimos leitores. Tenho pouca esperança que alguém dê importância ao assunto. Agora, se o colapso acontecer...