quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Piracuruca e a Barragem



             José Pedro Araújo
           Aproximávamo-nos do final dos anos oitenta quando a cidade de Piracuruca, situada no norte do Piauí, foi acordada com a notícia de que, enfim, a prometida barragem no rio Piracuruca iria ter seu início. Antes disso, para alegria de muitos, e a tristeza e preocupação de alguns, já tivera início o trabalho preliminar de desapropriação dos imóveis que seriam abrangidos pelo perímetro molhado da dita construção hídrica.
Alegria para aqueles que embarcavam na propaganda oficial de que seria instalado na região um perímetro irrigado de mais ou menos 8.000 hectares, para a produção de alimentos, mas, e também, para cultivo de frutas para exportação. E em meio a estes otimistas, estavam os endinheirados que logo visualizaram a possibilidade da construção de uma bela chácara de recreio às margens do portentoso lago que se formaria à montante.
A tristeza, essa ficava na conta das dezenas de pequenos proprietários que viam seus imóveis serem expropriados pelo governo por preços vergonhosamente baixos, como sempre acontece quando os pequenos estão na frente, ‘atrapalhando’, algum empreendimento governamental. Para alguns destes, o problema seria ainda muito maior. Como o trabalho de levantamento planialtimétrico da área a ser alagada foi mal conduzindo, alguns desses imóveis, que se dizia ter apenas uma parte afetada, ficou completamente sob a água. A parte indenizada, entretanto, foi apenas aquela que os técnicos diziam que seria atingida pelas águas que se se juntariam no grande lago, e não todo o imóvel. Pior para estes. Viram o restante das suas terras virar uma grande fazenda submersa.
            Mas, como desgraça pouca é bobagem, aquelas pequenas sobras de terra beira-água, e que deveriam ficar com os seus verdadeiros proprietários, logo sofreram o assédio de alguns espertalhões que alegavam serem aquelas terras do governo, uma vez que devidamente indenizadas. E instalavam no local uma pequena chácara para o deleite da família e dos amigos, pouco importando as reclamações dos espoliados.
            Em meio ao segundo grupo, aquele dos preocupados com a construção da barragem, estavam alguns que não tinham terra nenhuma desapropriada, mas que se preocupavam com a construção de uma barragem daquele porte tão próxima da cidade. Fizeram para estes também ouvidos moucos. Eu me coloquei no meio destes, e até alertei em algumas reuniões de que participei, como representante do órgão estadual de terras, que a construção de uma barragem tão próxima da cidade trazia sempre um risco, um grande e preocupante risco. Nesses momentos recebia uma resposta ‘técnica’, de algum profissional da engenharia ou não, de que a barragem seguiria padrões de segurança internacional, não havendo a menor possibilidade de um desastre. Teimoso que sou, alegava que qualquer obra feita pelo homem, por mais segura que possa parecer, sempre poderá ser suplantada pelas forças da natureza algum dia. Não quis afirmar, para não ser chamado de leviano, que a maioria das grandes obras de engenharia vinha sempre cercada de nebulosas transações: a propina corria solta. E isso terminava por afetar a qualidade do material empregado, e dos cuidados relativos ao empreendimento, por fim. Assim, era preciso reduzir custos para honrar os compromissos assumidos com os contratantes. Não sei se isso também aconteceu com a construção das barragens no nosso estado. Não tenho como afirmar isto. Mas, ficou uma última preocupação a me acompanhar por estes longos anos: o governo é sempre muito negligente no acompanhamento e monitoramento de suas obras depois de construídas. Daí, o que espera?
                Naquele tempo, a barragem construída no rio Piracuruca passou a ocupar o segundo lugar no estado, em relação ao seu volume hídrico. Ficava atrás apenas do grande lago da usina de Boa Esperança, no Parnaíba. Formou-se um portentoso lençol d’água com 250.000.000 m³, uma massa d’água de poder avassalador, caso venha a se soltar do lugar em que está aprisionada. Dista, em linha reta, 4.155 metros da cidade. Pouco mais de 4,0 quilômetros de distância. Em caso de um desastre, o paredão formado pela água tomaria uma velocidade de cerca de 50 km por hora. E assim, em menos de 5 minutos atingiria as primeiras casas da cidade. O rio Piracuruca, como se sabe, passa a poucos passos da Praça da Matriz de Nossa Senhora do Carmo, e secciona a cidade quase ao meio. Com o agravante de a cidade ser muito plana. O desastre seria monumental, pois não se teria tempo para uma retirada em massa.
Para os medrosos como eu, no dizer de alguns, é coisa para se voltar a pensar, e pensar com enorme preocupação quando vemos acontecer tragédias como a ocorrida recentemente em Mariana, Minas Gerais.  
            Para ficarmos apenas aqui por perto, tivemos em 27.05.2009, a tragédia de Algodões que, com o seu rompimento, ceifou a vida de 9 pessoas, e a de milhares de animais, e aniquilou centenas de pequenas fazendolas. Os desabrigados, no que pese já terem decorrido mais de 6 anos, ainda esperam por justiça. Estão até hoje desnorteados, com suas vidas completamente destruídas. E olha que aquela barragem possuía apenas 1/5 (um quinto) do volume de água da barragem do Piracuruca, 50.000.000 m³. E também não havia nenhuma cidade a jusante do lago formado. Ao contrário da do Piracuruca.  O Piracuruca ainda encontra pela frente a cidade de São José do Divino e depois cai no rio Jacaraí para chegar ao Longá. Daí em diante passa ao largo de Caxingó e depois vai desaguar no Parnaíba logo abaixo. Como aumentará enormemente o volume de água do Parnaíba até chegar à cidade de Parnaíba, não se sabe o que pode ocorrer com a população daquela cidade. O certo é que no caminho até lá já terá deixado uma obra destrutiva monumental.
            Através de depoimentos de pessoas atingidas pelas águas que escaparam da barragem de Algodões, soube-se que a água formou um paredão de mais de seis metros de altura e caiu sobre tudo com o peso e a força de milhares de toneladas, arrastando e destruindo tudo que havia pela frente. A tragédia poderia ter sido evitada se houvesse um monitoramento efetivo daquela barragem. Mas a alegada falta de recursos financeiro, a desídia, a imperícia, a despreocupação com a possibilidades de tragédias que somente atinge pessoas de baixo poder aquisitivo, ou pobres para ser mais exato, faz com que os órgãos de fiscalização façam pouco caso dos problemas que poderão causar essas barragens em caso de colapso. Em Algodões, mesmo com a barragem já demonstrando estar em situação de altíssimo risco, houve um esforço grandioso da parte das autoridades para as vítimas ficarem no lugar em que estavam. Deu no que deu.
            Uma monografia apresentada pelos pós-graduandos Norma Felicidade Lopes da Silva e Juliano Costa Gonçalves, em 2006, publicada na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, sob o título “A Convivência com Riscos Relacionados às Barragens no Semiárido Nordestino”, traça um perfil tenebroso sobre os riscos apresentados pela construção de barragens no nordeste brasileiro para a acumulação de água sob a alegação de diminuir os problemas das comunidades afetadas pelas secas cíclicas que atingem a região. Logo no início do documento, na sua apresentação, os construtores do importante documento dizem que “O texto procura mostrar que a barragem pode constituir um outro desastre, ao mesmo tempo que não impede que secas e cheias ocorram, a vulnerabilidade da população”. Em seguida, depois de alertar para a falta de empenho e monitoramento das autoridades e instituições na fiscalização e correção de possíveis erros de concepção ou uso de material impróprio, alertam que “Mais de 12 mil pessoas morreram no século XX por barragens colapsadas”. Concluem a sua peroração dizendo que “A intocabilidade dos fazedores de barragens requereria ser revista no interior do discurso das lideranças políticas que têm na domesticação das águas um apelo central para preservar seu eleitorado”.
            Recentemente um deputado estadual piauiense, alertado pelo problema ocorrido no Rio Doce, em Minas Gerais, aprovou requerimento à Assembleia Legislativa Estadual pedindo ao IDEPI e ao DNOCS, responsáveis pelas barragens aqui no estado, que fizesse um monitoramento completo da situação de todas elas. Logo após o colapso da barragem de Algodões, no município de Cocal/PI, o Engenheiro civil Manoel Coelho Soares Filho, chefe do Departamento de Recursos Hídricos da Universidade Federal do Piauí, em entrevista, afirmou que “falta de manutenção é um dos problemas de barragens”. E em resposta a indagação sobre a possibilidade de uma barragem se romper, afirmou que “o perigo existe, mas um acidente proporcional ao que ocorreu com Algodões I pode ser evitado”. E concluiu: “no Brasil já houve rompimentos em reservatórios em Minas Gerais e na Paraíba, por exemplo. Toda obra tem um desgaste natural, é preciso um monitoramento constantes dessas áreas. Com água não se brinca, porque a intensidade e a força dela podem ser muito maiores que o esperado”.  
            Quando cuidamos do problema da barragem do rio Piracuruca, não temos por objetivo provocar uma histeria coletiva na população, mas tão somente alertar as autoridades para um problema real, que pode ocorrer caso não se tomem as precauções que são obrigatórias em casos como esses. Quem não conhece a falta de empenho dos nossos órgãos e dos nossos gestores para cumprir com as suas responsabilidades mais comezinhas. Depois vem a público falar em acidente natural, que um conjunto de fatores contribuiu para o desastre. O que falta em relação às nossas barragens é um sistema de monitoramento eficiente e efetivo. Em Piracuruca não existe, por exemplo, um sistema de alarme para ser utilizado em razão de algum colapso ou possibilidade de ocorrência de um.  E é um sistema simples e barato de ser instalado. Notem: depois do colapso de Algodões I, afirmou-se que a barragem do Piracuruca corria riscos. E agora, como estamos? Passados 25 anos da construção da barragem, não se implantaram projetos de irrigação, não houve a perenização do rio Piracuruca, que nunca esteve com suas águas tão baixas. A barragem serve atualmente aos sítios e chácaras de recreio.
            Fechemos a porta antes que ela seja arrombada! Logo chegará a temporada das chuvas. Vamos acreditar nas previsões climáticas ou vamos adotar as providências que a prudência requer?
           

2 comentários:

  1. Francisco Carlos Araújo28 de novembro de 2015 às 18:28

    Dr. Araújo,

    Esse importante depoimento traz a lume os perigos iminentes e ocultos das barragens, especialmente as do Estado do Piauí. É muito preocupante. Sobre essa sua preocupação, aliás muito legítima, sou de opinião que este documento deveria repercutir no plenário da Assembléia Legislativa do Estado. Vamos encaminhá-lo a algum deputado para fazer leitura na tribuna?

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    1. Meu amigo,
      parece estranho, este final de semana estive em Piracuruca e vi que haviam liberado água para a manutenção do rio que se achava com tão pouca água que a barraginha construída quase sob a ponte ao lado da Prainha se mostrava desnuda, totalmente exposta. Quanto ao envio da matéria à Assembleia Legislativa, deixo por conta dos meus pouquíssimos leitores. Tenho pouca esperança que alguém dê importância ao assunto. Agora, se o colapso acontecer...

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