Gravura de origem desconhecida |
José Pedro Araújo
A notícia corria chão e virava o mote
das conversas nos botequins, nas esquinas e nas ruas da cidade modorrenta. Um
velho e fumarento caminhão International acabara de chegar trazendo a trupe de
artistas juntamente com toda a estrutura do Circo, noticiavam algumas pessoas
com ar de imensa satisfação estampada no olhar. Acontecia assim na nossa velha
e querida aldeia sertaneja do Curador quando um Circo, por mambembe que fosse,
chegava à cidade pequenina dos idos da minha infância. A comunidade se agitava
e as ruas enchiam-se de gente para observar a passagem do grupo empoeirado,
rostos cansados, que acabava de chegar da vizinha Dom Pedro, onde estivera
instalado nos dias anteriores.
Empoleirado na janela da minha casa,
meus olhos curiosos tentavam adivinhar quais seriam as principais estrelas do
espetáculo que se iniciaria já no próximo final de semana, dali a dois dias:
aquele mais animado, sorriso aberto, gesticulando muito, deveria ser o palhaço,
enquanto que o rapaz de porte atlético e postura convencida, deveria ser o
trapezista principal, não restava dúvidas; já a mocinha com cara de enfado,
lenço colorido cobrindo a cabeça para proteger os cabelos da poeira vermelha
seria, sem medo de erro, a principal atração feminina, aquela que se
apresentaria em trajes sumaríssimos e excesso de lantejoulas, purpurina e
miçangas enfeitando a alegre vestimenta que deixava à mostra as belas e
torneadas pernas de vedete. Estavam todos aboletados em um velho e enferrujado
Jeep Willys que abria o cortejo da alegria e seguia lentamente para a velha
Praça do Mercado.
A chegada de um Circo na cidade era
motivo de alegria e regozijo para a garotada nestes sertões faltos de tudo,
especialmente de atividades de lazer. Instalados no lugar se sempre, atraiam
gente de todas as idades para assistirem ao espetáculo que começava,
invariavelmente, às sete da noite. E com o propósito de observar de perto a
novidade, de todas as ruas, becos e vielas, famílias inteiras acorriam ao local
para admirar o frenético vai-e-vem do pessoal encarregado de proceder aos
últimos ajustes para deixar o Circo pronto para dar inicio ao primeiro
espetáculo daquela turnê na cidade.
Na maioria das vezes, tratavam-se de
pequenos Circos mambembes, empanadas de chita ruim, um único trapézio onde um
aprendiz de trapezista fazia algumas estripulias simples, para desgosto
daquelas pessoas que já haviam assistido a espetáculos bem mais elaborados. E
nesses casos, quem salvava a noite era mesmo o palhaço, garantindo a alegria
com uma performance engraçada e seu jeito estabanado de se apresentar. Enquanto
isto, no palco pobre erguido em frente ao picadeiro, protegida por uma cortina
desbotada, uma velha vitrola emite em alto e fanhoso som uma música
característica das apresentações de palhaços. A emoção estampada no rosto da plateia
era o atestado de aprovação ou desaprovação do espetáculo.
Vez por outra, aparecia também algum circo
com melhor estrutura, lona colorida e bem conservada, trazendo uma trupe bem
maior e até mesmo alguns animais exóticos. Esses já possuíam os três trapézios,
além de trapezistas de maior gabarito. Chegavam em uma frota de caminhões mais
novos e arrastavam atrás de si vários trailers para acomodação dos artistas do
espetáculo. Esse tipo de Circo era raro. Mas, fomos brindados algumas vezes com
alguns deles, para delicia dos aficionados.
Depois disto, de observar o circo
instalado, era hora de correr atrás do ingresso para assistir a apresentação de
logo mais a noite. Como o dinheiro estava sempre em falta, só tínhamos duas
possibilidades de adentrar ao recinto do Circo: a primeira delas era ofertada
pelo palhaço que saia pelas ruas da cidade conclamando o pessoal a assistir ao
espetáculo de logo mais à noite. Atrás dele a meninada ia repetindo os
conhecidos refrãos: “Hoje tem espetáculo? – gritava o palhaço – “Tem sim,
senhor”! – replicava a meninada. “Às sete horas da noite”? – continuava – “Tem
sim, senhor”! – “Hoje tem marmelada”? “Tem sim, senhor”! “O brilho do Sol
esconde a Lua”! “Olha o palhaço no meio da rua”!, repetia a criançada em
procissão. E assim seguia-se pelas ruas da cidade. O término da propaganda era
exatamente na frente do Circo, local também da partida. Nesse momento eram
distribuídos três ou quatro ingresso, o que causava um tumulto enorme no meio
da criançada. E não foram poucas as vezes em que a disputa das mais de vinte
crianças pelos poucos ingressos terminava em tapas e empurrões.
Perdida essa primeira oportunidade,
restava a última chance de se entrar no recinto circense: “varar” o Circo, como
chamávamos a invasão pura e simples, e sem pagamento. Esta, porém, não era uma
tarefa fácil de se fazer. Escaldado com as costumeiras invasões da moçada, os
donos do Circo tentavam evitar esse procedimento de todas as formas, colocando
vigias no entorno da lona. Cercas de arame farpado com muitos fios, era a forma
mais comum de proteção, mas que, na maioria das vezes, não evitava que um ou
outro menino mais atrevido conseguisse penetrar no recinto para assistir ao
espetáculo, coração aos pulos e olhos esbugalhados de admiração.
Uma forma eficiente de penetrar no
recinto foi por mim posta em prática, com grande grau de acerto: deslocava uma
das tábuas da grade de madeira que ficava próxima ao guichê – tarefa realizada
cedo. E uma vez despregada, era posta novamente no lugar, e ficava somente
encostada. Depois, já noite, aproveitando-me da hora de maior tumulto na fila
para aquisição de ingresso, afastava rapidamente a tábua e entrava-se
agilmente, voltando a peça de madeira ao seu local sem que ninguém
testemunhasse. Estava consumada a ação. Algumas vezes, contudo, algum desalmado
que se encontrava na fila, nos dedurava para os vigias. Ai era uma correria
para nos escondermos no meio da multidão, coisa que nem sempre funcionava a
contento.
De qualquer maneira, o Circo sempre
era motivo de animação nas remotas comunidades sertanejas, como de resto
acontecia em todos os recantos desse imenso país desde o século XIX, quando
vieram para cá as primeiras companhias circenses trazidas por Ciganos expulsos
de seus países de origem na Europa. Mas, além da alegria, eles traziam também
alguns problemas para as famílias dessas comunidades interioranas. Não foram
poucas as vezes em que esses saltimbancos levaram consigo, às escondidas,
algumas moças da cidade, embevecidas e atraídas pelo charme dos espetáculos
circenses e pela possibilidade de conhecerem novas terras. Velhos tempos! Belos
dias!
Nenhum comentário:
Postar um comentário