sexta-feira, 11 de março de 2016

Uma Rua de Portas Fechadas

Rua Grande (Magalhães de Almeida) - Acervo J. Wilson


                                                     José Pedro Araújo

             Caminhar pelas ruas da minha cidade é como retroagir no tempo. Andar sobre suas calçadas desniveladas, visualizar seu casario sem simetria e sem um padrão estético definido, é também um exercício até certo ponto prazeroso e que avoca velhas saudades, histórias que permaneceram escondidas, agarradas no meu íntimo com um sentimento de perda irreparável que nunca se acaba. Por vezes é ainda possível sentir o cheiro da terra molhada que exalava quando caiam sobre a cidade as primeiras chuvas de verão; ou da poeira vermelha que o vento brincalhão levantava no ar, construindo redemoinhos que se elevavam pelos ares levando de roldão tudo o que encontrava pela frente. Traz-me uma saudade dolorida a falta das crianças correndo pelas ruas nas tardes de chuva torrencial, ou a ausência dos papagaios colorindo no céu completamente azul nos belíssimos dias de maio.

Já não existem mais as velhas casas com suas paredes desnudas, exibindo o dorso vermelho dos tijolos fabricados nas próprias olarias da cidade. Em seu lugar, estão os prédios comerciais e suas fachadas pintadas e repintadas até se tornar em cor indefinível, e seus letreiros de feira livre, a anunciar a venda de algum produto.

            A cidade exala hoje o cheiro do futuro, dos novos tempos e dos costumes exóticos, trazidos de outros povos, por outras pessoas. As carroças, os animais de carga ou montaria, cederam lugar aos barulhentos automóveis e veículos de transporte que soltam no ar o fedor emanado de seus ventres mecânicos em ebulição, e o rangido de ferro velho ocupa o lugar do som mavioso que brotava do interior das residências, dos cânticos, dos choros, das palavras de admoestação, dos ralhados com os guris ou das declarações de amor. Em lugar do sorriso alegre das crianças ouve-se agora o som dos alto-falantes e suas mensagens nem sempre verdadeiras, gritadas a plenos pulmões por alguém que busca ser ouvido por outro alguém que passa logo ali, na calçada oposta. Até mesmo as gaiolas de outros tempos, com seus pássaros canoros encarcerados, sumiram das paredes frontais e, em seu lugar, surgiram as placas luminosas ou as caixas de som com seus enunciados comerciais.  

A rua Grande perdeu a condição de rua residencial para os grandes empórios, os mercadinhos, as clínicas médicas, os bancos e os hotéis. Somente aqui e acolá ainda é possível ver alguém resistindo ao assédio do poder econômico que luta ferozmente para obter o que considera apenas mais um ponto comercial estrategicamente bem colocado. Alguns, parcela ínfima desta resistência, permaneceram firmes e eliminaram apenas parte da moradia, abrindo um salão comercial ao lado do estreito corredor que lhe permite penetrar no interior da sua morada, escondendo-se das vistas dos antigos vizinhos.

As cadeiras, postas nas calçadas para deleite da brisa fresca nas tardes de verão, são hoje peças raras, quase não se vê. Somente umas poucas famílias ainda mantêm o prazeroso hábito de, banho tomado e roupa trocada, aguardarem a passagem dos amigos ou dos parentes para uma gostosa rodada de conversa.

            Mas o sentimento de maior impacto é causado pela ausência das pessoas, dos homens e das mulheres que construíram, à custa de muito suor e sacrifício, um lugar bom demais para organizar família, criar os filhos. Na caminhada que empreendo pela minha rua, sou capaz de dizer de cor e salteado qual família ocupava qual casa, mesmo atingido duramente pelo silêncio que magoa meus tímpanos e brota do interior de moradias tão conhecidas. Não ouço mais o som de suas vozes, mas as lembranças teimam a me acompanhar no meu passeio pelo espaço-temporal: “Bom dia, seu Justino! Como vai a vida, compadre Araújo? Olá, seu Sanfoneiro! Dona Zezé, como está se sentindo hoje? E você jovem Getúlio, tem notícias do compadre Honorato? Seu Othon, como estão os negócios?” Continuo subido a rua e ouço a voz da minha tia Lourdes chamando as crianças para a primeira refeição do dia, ouço o diálogo travado pelos irmãos Chico Barros, Zeca Barros e Sinhazinha, tudo acompanhado, detalhe a detalhe, pelo Neuton e pela Neusa Falcão. E na calçada seguinte os amigos Virgílio Feitosa, Ribamar Menezes, João Augusto, José Almeida e Nelson Sereno conversam amenidades, enquanto Dona Alvina Menezes recepciona mais um cliente que acaba de pedir-lhe pousada no seu hotel. Ainda não sai do primeiro quarteirão e as lembranças se avolumam em tal magnitude que é impossível prosseguir na minha caminhada. Avultam à minha memória reminiscências que pesam sobre mim como uma dor outonal e incurável. Mas, o que vejo agora, voltando ao tempo presente, são portas e janelas fechadas em razão da insegurança que tomou conta da cidade. Se no passado era possível penetrar em qualquer das residências até chegar à sua cozinha para um bom e fresco cafezinho, quem tentasse tal empreitada hoje seria barrado em todas as tentativas que viesse a fazer por uma encorpada porta de ferro. Mas, impossível mesmo seria encontrar algum morador em alguma dessas casas.

Retorno para casa, para a solidão que me aguarda, para me consumir com a saudade que sempre me traz de volta ao meu torrão natal, à minha rua.
                         

4 comentários:

  1. Que texto maravilhoso meu tio. Obrigado por me fazer voltar no tempo e relembrar momentos maravilhosos e que jamais voltarão.

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    1. Obrigado, Jefson. Minhas reminiscências são um artifício que uso e fazem a minha ligação diária com o meu Curador, já que não posso estar ai.

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  2. Marli Custódio Neto Lima16 de março de 2016 às 11:42

    Texto muito emocionante.Nossa! quando estava lendo o texto que olhei o nome de meu querido pai (sanfoneiro)não contive as lágrimas.Obrigado! por lembrar dele.Recordo quando amanhecia o dia ele cumprimentava seu Araújo assim: A paz do Senhor irmão.E seu Araújo se divertia.

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    1. Marli, este é o motivo de escrever coisas sobre o Curador aqui nesse espaço: me conectar com o meu passado. Papai o tratava por José, ria a valer das tiradas sempre alegres dele. Aliás, foi através dele que ouvi o nome de um município piauiense dos mais antigos e que eu achava esquisito: Jerumenha.Cheguei a pensar que ele fosse natural de lá, uma vez que brincava muito com isso. Um abraço.

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