Rua Grande (Magalhães de Almeida) - Acervo J. Wilson |
José Pedro Araújo
Caminhar pelas ruas da minha cidade é como
retroagir no tempo. Andar sobre suas calçadas desniveladas, visualizar seu
casario sem simetria e sem um padrão estético definido, é também um exercício
até certo ponto prazeroso e que avoca velhas saudades, histórias que
permaneceram escondidas, agarradas no meu íntimo com um sentimento de perda
irreparável que nunca se acaba. Por vezes é ainda possível sentir o cheiro da
terra molhada que exalava quando caiam sobre a cidade as primeiras chuvas de
verão; ou da poeira vermelha que o vento brincalhão levantava no ar,
construindo redemoinhos que se elevavam pelos ares levando de roldão tudo o que
encontrava pela frente. Traz-me uma saudade dolorida a falta das crianças
correndo pelas ruas nas tardes de chuva torrencial, ou a ausência dos papagaios
colorindo no céu completamente azul nos belíssimos dias de maio.
Já não existem
mais as velhas casas com suas paredes desnudas, exibindo o dorso vermelho dos
tijolos fabricados nas próprias olarias da cidade. Em seu lugar, estão os
prédios comerciais e suas fachadas pintadas e repintadas até se tornar em cor
indefinível, e seus letreiros de feira livre, a anunciar a venda de algum
produto.
A
cidade exala hoje o cheiro do futuro, dos novos tempos e dos costumes exóticos,
trazidos de outros povos, por outras pessoas. As carroças, os animais de carga
ou montaria, cederam lugar aos barulhentos automóveis e veículos de transporte
que soltam no ar o fedor emanado de seus ventres mecânicos em ebulição, e o rangido de ferro velho ocupa o lugar do som mavioso que brotava do interior das
residências, dos cânticos, dos choros, das palavras de admoestação, dos ralhados
com os guris ou das declarações de amor. Em lugar do sorriso alegre das
crianças ouve-se agora o som dos alto-falantes e suas mensagens nem sempre
verdadeiras, gritadas a plenos pulmões por alguém que busca ser ouvido por
outro alguém que passa logo ali, na calçada oposta. Até mesmo as gaiolas de
outros tempos, com seus pássaros canoros encarcerados, sumiram das paredes
frontais e, em seu lugar, surgiram as placas luminosas ou as caixas de som com
seus enunciados comerciais.
A rua Grande
perdeu a condição de rua residencial para os grandes empórios, os mercadinhos,
as clínicas médicas, os bancos e os hotéis. Somente aqui e acolá ainda é
possível ver alguém resistindo ao assédio do poder econômico que luta
ferozmente para obter o que considera apenas mais um ponto comercial
estrategicamente bem colocado. Alguns, parcela ínfima desta resistência, permaneceram
firmes e eliminaram apenas parte da moradia, abrindo um salão comercial ao lado
do estreito corredor que lhe permite penetrar no interior da sua morada, escondendo-se
das vistas dos antigos vizinhos.
As cadeiras,
postas nas calçadas para deleite da brisa fresca nas tardes de verão, são hoje
peças raras, quase não se vê. Somente umas poucas famílias ainda mantêm o
prazeroso hábito de, banho tomado e roupa trocada, aguardarem a passagem dos
amigos ou dos parentes para uma gostosa rodada de conversa.
Mas
o sentimento de maior impacto é causado pela ausência das pessoas, dos homens e
das mulheres que construíram, à custa de muito suor e sacrifício, um lugar bom
demais para organizar família, criar os filhos. Na caminhada que empreendo pela
minha rua, sou capaz de dizer de cor e salteado qual família ocupava qual casa,
mesmo atingido duramente pelo silêncio que magoa meus tímpanos e brota do
interior de moradias tão conhecidas. Não ouço mais o som de suas vozes, mas as
lembranças teimam a me acompanhar no meu passeio pelo espaço-temporal: “Bom
dia, seu Justino! Como vai a vida, compadre Araújo? Olá, seu Sanfoneiro! Dona
Zezé, como está se sentindo hoje? E você jovem Getúlio, tem notícias do
compadre Honorato? Seu Othon, como estão os negócios?” Continuo subido a rua e
ouço a voz da minha tia Lourdes chamando as crianças para a primeira refeição
do dia, ouço o diálogo travado pelos irmãos Chico Barros, Zeca Barros e
Sinhazinha, tudo acompanhado, detalhe a detalhe, pelo Neuton e pela Neusa Falcão. E na
calçada seguinte os amigos Virgílio Feitosa, Ribamar Menezes, João Augusto,
José Almeida e Nelson Sereno conversam amenidades, enquanto Dona Alvina Menezes
recepciona mais um cliente que acaba de pedir-lhe pousada no seu hotel. Ainda
não sai do primeiro quarteirão e as lembranças se avolumam em tal magnitude que
é impossível prosseguir na minha caminhada. Avultam à minha memória reminiscências
que pesam sobre mim como uma dor outonal e incurável. Mas, o que vejo agora,
voltando ao tempo presente, são portas e janelas fechadas em razão da
insegurança que tomou conta da cidade. Se no passado era possível penetrar em
qualquer das residências até chegar à sua cozinha para um bom e fresco
cafezinho, quem tentasse tal empreitada hoje seria barrado em todas as
tentativas que viesse a fazer por uma encorpada porta de ferro. Mas, impossível
mesmo seria encontrar algum morador em alguma dessas casas.
Retorno para
casa, para a solidão que me aguarda, para me consumir com a saudade que sempre
me traz de volta ao meu torrão natal, à minha rua.
Que texto maravilhoso meu tio. Obrigado por me fazer voltar no tempo e relembrar momentos maravilhosos e que jamais voltarão.
ResponderExcluirObrigado, Jefson. Minhas reminiscências são um artifício que uso e fazem a minha ligação diária com o meu Curador, já que não posso estar ai.
ExcluirTexto muito emocionante.Nossa! quando estava lendo o texto que olhei o nome de meu querido pai (sanfoneiro)não contive as lágrimas.Obrigado! por lembrar dele.Recordo quando amanhecia o dia ele cumprimentava seu Araújo assim: A paz do Senhor irmão.E seu Araújo se divertia.
ResponderExcluirMarli, este é o motivo de escrever coisas sobre o Curador aqui nesse espaço: me conectar com o meu passado. Papai o tratava por José, ria a valer das tiradas sempre alegres dele. Aliás, foi através dele que ouvi o nome de um município piauiense dos mais antigos e que eu achava esquisito: Jerumenha.Cheguei a pensar que ele fosse natural de lá, uma vez que brincava muito com isso. Um abraço.
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