sábado, 5 de março de 2016

O Coronel e o Amarelo



José Pedro Araújo

                Sertão do Piauí, década de setenta. O coronel Silvestre, no que pese os tempos correntes, administrava as suas terras, a sua região, e a sua vida, enfim, como se ainda vivesse no passado remoto, quando tudo era permitido aos donos de vastas terras. Na comunidade de São Nicolau a sua palavra era uma ordem. Ninguém se metia a besta com ele, sob pena de sofrer terríveis consequências. Era assim na vida quotidiana, mas principalmente na política, suas ordens eram sempre lei. Mesmo que mandasse votar em um sabugo, ninguém tinha nada a ver com isso e todos o obedeciam. A sua autoridade era tão grande na região em torno das suas terras, que ele levava esse respeito a todos os lares, e não havia casa na povoação que não houvesse uma criança a lhe chamar de padrinho. Isso também era lei. E lei era para ser respeitada, ora se era!

                À boca pequena comentava-se que ele era, na verdade, mais que padrinho, era pai da maioria dos nascidos por aquelas bandas. E verdade seja dita, o homem era um demônio no quesito e dava em cima de mocinha ainda brincando de boneca, mulher casada, viúvas, qualquer coisa que vestisse uma saia. Era falar fino, menear as cadeiras, e lá estava o velho reprodutor a lhe assediar. E por essa razão, as histórias que corriam chão por ali não se deviam à criatividade popular, mas tinham um fundo de verdade. Isso, naturalmente, causava terrível desconforto no seio da sua família, especialmente na sua esposa, mulher recatada e dedicada, que lhe cobravam ciúmes vez por outra. E tanto fez que a mulher deixou até de frequentar a fazenda, tão desgostosa ficava ao dá de cara com algum moleque com as feições de seu marido. E pensam que achou ruim? Nada! Passou até a usar a casa sede como coito.  

                Mas, mesmo sem pisar mais nas terras da sua fazenda, a esposa queixosa sabia de tudo o que por lá ocorria, notícias levadas por uma das empregadas que, dizem, enciumada porque nunca mais era procurada pelo safado do coronel, passou a dedurá-lo. E talvez até mesmo com certo exagero, pois se fosse verdade tudo que ela passava adiante, toda vez que ia à cidade onde a esposa vilipendiada residia, o homem estava no auge da sua forma. E isso, além de causar-lhe imenso desgosto, a deixava predisposta aos assédios da família que cobravam dela uma posição mais firme. Tudo isso depois de saberem que o velho dera para agradar as mocinhas que caiam sob o seu jugo, com roupas novas, cada vez mais caras e em maior quantidade. E como a quantidade de meninas também só aumentava, as despesas com esses itens, passou a desfalcar terrivelmente o cabedal do velho salafrário. Foi por isso que os filhos passaram a pressionar a mãe para uma tomada de posição. E ela, mesmo a contragosto, teve que adotar uma postura mais decidida, o que acabou por afastar o coronel da sua casa na cidade. Preferia ficar na fazenda até mesmo nos finais de semana.

                A consequência disso, foi que passaram-se a ouvir histórias cabeludas sobre as atividades de alcova do velho fazendeiro. Também, não tinha arrasta-pé na região que ele não marcasse presença. E era nesses pagodes que tomava ciência de alguma mocinha que estava a desabrochar. E entre essas, algumas estavam pisando pela primeira vez em um terreiro de dança. Foi a gota d’água: houve a cisão definitiva do casal Silvestre de Brito. E nesse quesito o velho coronel levou desvantagem: abriu mão da maior parte do patrimônio em favor da esposa conspurcada e dos filhos interesseiros. Dizem os mais experientes nesses assuntos, que o homem quase sempre sai perdendo nessas partilhas de bens, uma vez que se acham fragilizados por está saindo de casa. E como a consciência, por mais cauterizada que esteja, o atormenta, faz ele deixar quase tudo para a família abandonada. Assim se deu com o velho safado.

                No que pese afirmarem na cidade que ele era, em verdade, “vaqueiro do banco”, uma vez que trabalhava sempre com empréstimos bancários, ele ficou ainda com um bom patrimônio e ainda mantinha a autoridade que só a ele pertencia, e que ninguém podia lhe tomar. E como não precisava mais prestar contas a ninguém, caiu totalmente na bandalheira. Isso ele pode verificar quando começou a notar que as coisas não iam bem.

Já que o patrão não dava muita importância ao trabalho diário, cansado que chegava das festas, os empregados e agregados também relaxaram com as suas atribuições, e até o ato de ordenhar as vacas estava sendo negligenciado. Ao ponto de faltar leite para o café da manhã. O queijo de ótima qualidade, que era uma marca da fazenda desde sempre, há muito já havia sumido da sua mesa. Mas a falta do leite para misturar com café da manhã, isso foi demais. E ele pensou que já estava passando da hora de tomar uma providência.

Pensam que ele se propôs a largar as farras, campear a mulherada? Não mesmo! Foi atrás de um gerente para os seus negócios agropecuários. E tinha que ser alguém de fora. Experiente e voluntarioso. Os cabras dali de perto só queriam a sua desgraça – conjeturou -, almejavam a sua caveira.

                Terminou por arrumar, por informação de um amigo, alguém com os predicados de que precisava. Tratava-se de um homem bem moço ainda, branco, meio sarará, um Amarelo, como se diz no nordeste. Gostou do cabra, sobretudo depois que botou os olhos na sua jovem esposa. Essa sim, uma mulher que excedia em atributos. Fornida de carnes, olhos vivos, pestanas longas e baixas, ativa e de boa conversa, ao sorrir deixava ver uma carreira de dentes alvos e bem enfileirados. Uma simpatia, a jovem mulher! E o velho Silvestre não se conteve, contratou o amarelo e o pôs, juntamente com a mulher, para gerenciar os negócios da fazenda. O tempo passou, o vaqueiro se mostrou realmente uma ótima aquisição, posto que era cuidadoso com as coisas do patrão, logo passou a ser peça importante, sobretudo porque ainda se mostrava espirituoso e sustentava uma boa conversa. Mas a mulher passou a ser a peça mais importante da dupla. Sem filhos, ótima forma, ainda fazia um café mágico, e o velho libertino caiu de amores por ela.

                Por dever de ofício, devo afirmar que a mulher até resistiu aos assédios do velho mulherengo, mas assim sem muita garra, quase aceitando os ataques sofridos. E isso só estimulou o patrão. Ele então passou a ser visita frequente à casa do gerente. E este, satisfeito com os adjutórios que o coronel lhe levava, e que fazia com que a sua despensa estivesse sempre cheia de boas coisas, recebia essas visitas cada vez mais frequentes com boa aceitação. A mulher também. Mas, o coronel passou a ver o empregado como um estorvo que devia ser afastado, e sempre lhe mandava fazer alguma coisa longe da casa. Era ele sair e o velho partir para o ataque. Ela aceitava o jogo, mas se fazia de difícil, soltando gargalhadas que enfeitiçavam o velho e o estimulava cada vez mais. Por fim, o coronel logrou êxito. Isso aconteceu em um dia em que ele havia enviado o vaqueiro à cidade para comprar alguns medicamentos que estavam faltando na pequena farmácia pecuária que mantinha em casa.

                E ai foi aquela coisa, água de morro abaixo, fogo de morro acima, ninguém segura. O fazendeiro passou a enviar o vaqueiro para executar tarefas cada vez mais distantes, até mandou certa vez que viajasse até a capital para resolver algumas coisas por ele. Essa tarefa lhe demandaria cerca de dois dias fora de casa. Mas o patrão era boa gente, sempre lhe deixava que sobrasse algum dinheiro e o autorizava a gastá-lo consigo mesmo. Ele gostava disso. E ao invés de passar dois dias, passou três. O último em proveito próprio. Foi conhecer alguns locais procurados por homens que procuram fugir da solidão na cidade grande.

                Nada disso, contudo, acontecia fora das vistas dos maledicentes, dos fofoqueiros, que passaram a espalhar na comunidade o que acontecia entre as quatro paredes da casa do gerente. E isso chegou, naturalmente, aos ouvidos do marido corneado, uma vez que sempre há alguém, sob o pretexto de cumprir o papel de amigo fiel, a lhe passar a má notícia. A bem da verdade, esses indivíduos fazem isso mais por mal do que por bem. Querem ver a reação do marido ultrajado, animam-se com o seu sofrimento. E ficam tristes, decepcionados, quando a reação não vem à altura do fato narrado.

Foi isso que aconteceu.

E lá pelas tantas, enquanto o pé do balcão já estava tomado pelos cascos vazios de cerveja, o colega de farra, estimulado pelo álcool que lhe corria abundante pelas veias, atacou:

                - Como você pode receber uma notícia dessas com tanta calma? É por isso que já estão te chamando pelas ruas da vila de ‘corno manso’! – despejou com raiva.

                - Eu! Corno? – surpreendeu-se o Amarelo – Corno é o meu patrão que mantém a minha despensa sempre abastecida, compra presentes caros; perfumes, roupas, além de outras coisas mais, para a mulher que dorme comigo. E ela, com peso na consciência, e achando que não percebo nada, se desdobra em carinhos para comigo. Tem sido mais mulher do que nunca! Ele que é corno!

                Falou isso em alto e bom som, já tocado pelo álcool. Foi ouvido pelo dono do bar e pelos demais fregueses. E logo a notícia correu como vento geral, rápida e em todas as direções. Por fim, chegou aos ouvidos do velho crápula, que não gostou nada de ser chamado de corno. E diante disso, despachou o empregado, demitiu-o. Mas ficou com a sua mulher. Morreu o marido falastrão, o Amarelo, pela boca!

Nenhum comentário:

Postar um comentário