quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Diário de um Náufrago(Capítulo II)


Foto meramente ilustrativa by Google



José Pedro Araújo


UM PRESENTE FEMININO


Local escolhido nos primeiros dias, tratei de construir a minha choupana, pois vi que algumas nuvens estavam se formando a leste e logo teríamos chuvas em profusão. O barraco deveria se constituir de apenas um ambiente, mas, pensando melhor, construí um pequeno alpendre na frente e improvisei uma cadeira espreguiçadeira com tábuas que fui recolhendo na praia. O tempo que eu levei para deixar o meu lar relativamente habitável, eu contei bem: foram nove dias de trabalho intenso. Até sobrou material para forrar o chão arenoso.

Depois, improvisei também uma cama com todo o tipo de material mais confortável que eu fui encontrando, e no terceiro dia, após o término da minha moradia, achei uma coisa na praia que muito me alegrou: uma mala de couro fechadinha. Abri-a com dificuldades, pois o fecho estava preso com um cadeado e, surpresa, tratava-se de uma mala feminina. Muitos vestidos de luxuoso acabamento, calças de índigo, lingerie, alguns perfumes, bijuterias, cintos finíssimos e, lá no fundo, dois lençóis de linho muito perfumados. Estava tudo umedecido, mas mesmo assim em ótimo estado. Improvisei o meu primeiro varal utilizando alguns cipós que encontrei ali por perto e pus tudo para secar.

Depois de limpa e seca, a mala recebeu também as minhas roupas, pois passei a andar somente de cueca. O problema é que, de tanto lavá-la e por para secar, já estava perdendo a força do seu elástico, ficando frouxa. Mais alguns dias e eu teria que andar completamente pelado, porque, as roupas eu somente as usava quando partia para desbravar o território. 
Meio encabulado, vi que algumas das roupas de baixo poderiam me servir, especialmente algumas peças tipo calçola, mais folgadas, não aquelas em estilo asa delta. A mala parecia ter pertencido a uma mulher de boa compleição física, um tanto gorda até, e isso, para sorte minha, vinha a calhar. E como não havia ninguém por ali para me observar, utilizei-me logo de uma calça de lycra que me serviu muito bem, como uma boa e confortável cueca. Deixei para usar as cor-de-rosa somente depois que perdesse o constrangimento.

A quem havia pertencido àquela mala? Pertencera a alguém vítima de algum naufrágio? Bem, não havia como saber, e também não havia riscos de receber alguma reprimenda pelo seu uso indevido.

E assim correram os meus dias neste local. Parecia que era eu o seu único habitante. Não vi marcas de pés na areia, ou de patas de animais, ou de qualquer outro bicho de tamanho maior. Até fiquei um pouco aflito no início, com medo de aborígines. E se fossem belicosos, antropófagos? Mas, nada. Nenhum vivente por ali. Só os passarinhos que me indicaram novas frutas comestíveis. Certo dia, inspecionando um dos lados da ilha, observei que um incêndio estava começando. Pareceu-me espontâneo, pois, mesmo esperando uns bons minutos, não vi ninguém aparecer. Corri então para apagá-lo. Temia que se propagasse para os lados da minha casa e destruísse tudo. Mas, logo vi que o vento estava contrário e não demorou o foco se apagou ao consumir o mato rasteiro que terminava na areia da praia.

No afã de debelar o incêndio, quase perdi a chance que me era oferecida. Num átimo, lembrei-me que poderia aproveitar o fogo e peguei uma acha maior com a brasa bem viva e consegui atiçá-lo. Levei o archote para o local em que instalei a minha base e fiz uma pequena fogueira. Teria que alimentá-la continuamente e não deixar que se apagasse. Depois veria como utilizar o fogo para preparar alguma comida com proteína animal, pois já estava me alimentando somente de frutos há uma boa quantidade de dias, e isso, com certeza, não era o suficiente para me manter saudável. A minha pira passou a ser alimentada constantemente, e nunca mais se apagou. Nunca é um termo muito determinante, que define eternidade. Portanto, por um bom tempo, pelo menos.

Mas, e quando vierem as chuvas? Precisava encontrar um jeito de resolver isto também.

Dias depois, andando pela praia em busca de novidades, encontrei uma grande rede de pesca semienterrada na areia. Vi que era boa, que o nylon estava relativamente novo e forte, e passei a pescar alguns peixes com ela, fazendo alguns arrastões na parte rasa do mar. Meu suprimento de peixe passou a ser constante. Faltava o sal, porém. Nunca me acostumei a comer sem sal. Então recorri a uma técnica simples que havia lido em algum livro num passado remoto. Bem, isso me lembrei depois. Pois na época a ideia me saiu como se fosse uma criatividade minha.

Apanhei algumas garrafas pet, produto abundante nas praias da ilha, enchi-as com água do mar, coei em um pedaço da anágua que encontrei na mala, joguei tudo em uma lata que eu havia transformado em panela e levei ao fogo. O que restou no fundo do recipiente eram cristais de sal marinho de boa qualidade. Passei a fazer uso dele. Que me perdoe a dona da mala por ter rasgado uma das suas peças mais vistosas e bem trabalhadas. Mas, não tive outra opção e nem teria um destino melhor para ela do que o que lhe dei. 

Como devem está se perguntando como solucionei o problema da água potável, vou logo responder. Passei os primeiros dias somente com o suco das minhas frutas, mas a minha garganta já reclamava por algo mais fresco, um H2O em sua pureza total. A previdência estava a meu favor, todavia, pois logo no início do quinto ou sexto dia fui em direção ao local em que via grande revoada de pássaros e me deparei com uma nascente de águas cristalinas e doces. O olho d’água formava um laguinho limpo e rodeado de arbustos floridos, e estava bem abrigado entre as árvores. A água encontrada estava tão limpa que se podia ver o fundo branquinho dele, feito de areia brilhante. Passei a tomar meus banhos ali também.

Meus problemas estavam praticamente resolvidos, pois passei a encontrar muita coisa comestível pelas praias, desde latas de conservas mais recentes, com data de validade legível e dentro dos prazos, até mesmo alguns barris de óleo que passei a utilizar em lamparinas rudimentares feitas com latinhas de cerveja. Os pavios eram feito de tecido que o mar também me havia presenteado. E que depois de desfiado, virava um bom pavio.

Assim, comida, água, fogo, nada me era mais difícil de achar. O mar, também tem a sua lógica, e costuma devolver para a terra tudo o que de estranho lhe é jogado. Era assim que nas praias se encontrava de tudo, desde comida em conserva, óleo diesel em barril, livros, revistas, até móveis que, aparentemente, não serviam mais, mas que para mim estavam perfeitos. No meu barraco já contava com estante para os livros, mala, como já falei, utilitários para uma cozinha quase completa, eu tinha tudo o que um náufrago precisa para viver por alguns dias. Bom, como nunca aprendi a cozinhar, assava os peixes em braseiros. Nada mais que isso.

É bem verdade que possuía tudo para passar alguns dias, mas o meu tempo estava se prolongando muito por ali. E, apesar de intuir que a ilha ficava em uma rota muito utilizada pela marinha mercante, nunca vi uma embarcação passando ao largo. E logo descobri o por quê. No entorno da ilha haviam muitos arrecifes, um extenso parcel que quase aflorava, o que tornava impraticável a navegação por ali. Passei a me perguntar como fazer para sair daquele lugar. O meu tempo era gasto com longas caminhadas pela orla, desbravamento do interior da ilha e, também, com muita leitura. Até mesmo à noite passava horas lendo com o auxílio das candeias que eu havia feito artesanalmente.


2 comentários:

  1. Muito bom! Vamos em frente.Essa ilha é um paraīso. Até Quarta-feira com mais fabuloso capítulo.

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    1. Verdade, Acoram. Embora no paraíso também apareçam problemas!

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