O MAR ME PRESENTOU
NOVAMENTE
José Pedro Araújo
Em um desses dias de total
ensimesmamento, andava pela praia quando dei de cara com uma caixa de madeira
bem trabalhada semi-enterrada na areia. Pelo estado dela, parecia já estar por
ali há muito tempo, pois os fechos se apresentavam muito enferrujados, o que me
forçou a quebrá-los para abri-la. Surpresa. Dentro da caixa comprida estava uma
carabina que me pareceu muito bonita. Mas era antiga, daquelas prontas para um
único tiro de cada vez. Junto dela, bem protegidos, uma caixa com uma boa
quantidade de projéteis. Torci para ainda estarem em condições de serem usados.
Fui tomado por uma alegria sem precedentes. Talvez a maior em todos os meus
dias nesta ilha. Felizmente havia um manual de orientação de como montar o
equipamento, pois eu nunca havia, até aquele momento, colocado as mãos em um
objeto desses. E foi fácil montá-lo. Como também usá-lo. E, para a minha maior satisfação,
ver que os projéteis estavam aptos ao pleno uso ainda. Em verdade, alguns
poucos deles. A maioria não detonou quando tentei. Mesmo assim, em caso de um
conflito armado contra o meu oponente agora... Bem, nem é bom pensar nisto.
É certo que não sou um Robson Crusoé, personagem
criado pelo inglês Daniel Dafoe, aquele que teve que inventar quase tudo para
prover a sua sobrevivência na sua ilha deserta, pois os tempos são outros hoje,
e o mar está cheio de embarcações que transportam toda a sorte de mercadoria
que, algumas vezes, caem no mar por algum motivo. E o mar, como já disso, não
gosta de ficar com coisas estranhas que lhe são jogadas e cospe tudo nas
praias. Sobretudo as coisas que flutuam. Lança muitas coisas ruins, porcarias
mesmo, mas, de vez em quando, premia às pessoas com algo de bom também. Não é
só punição.
Uma coisa que muito me frustrou
foi que quase não ouvia o ronco dos motores dos aviões por ali. E quando isso
acontecia, eles passavam tão altos que não era possível vê-los. Mas, mesmo
assim resolvi riscar na areia o tal pedido de socorro, o SOS. Desenhei letras
grandes, de mais de três ou quadro metros cada uma, para o caso de alguém passar
sobrevoando a área e olhar para baixo. Tive que refazer o pedido muitas vezes,
pois, ora era apagado pela chuva, ora pelo vento que encobria tudo com areia nova
e o fazia sumir. Não gerou nenhum efeito, mas, mesmo assim, continuei com a
prática. Era a minha esperança, uma das poucas, e por isso precisava manter o
pedido de socorro sempre visível.
Minhas cuecas(?) também já
estavam em péssimo estado, e logo teria que andar nu pela praia, o que não me
agradava. Passou a ser uma das minhas preocupações maiores a procura de roupas
pelas praias. Se tinha de tudo na areia, por que não haveria roupas também? E
logo a minha preocupação se transformou em fixação, o que me levou a procurar todos
os dias por coisas que o mar traz e deixa pela praia.
Certo dia caminhava somente para
dar cumprimento ao meu expediente, espingarda às costas, preparado para
qualquer ocorrência, quando avistei uma revoada de pássaros. Eram de uma
espécie denominada gaivotas-rapineiras. E logo descobri o motivo de tal
festança. Havia algo caído sobre a areia, um corpo, foi o que descobri logo de
imediato. E um corpo humano, isso identifiquei depois de me aproximar mais.
Confesso que fiquei em estado de choque. Nunca havia presenciado uma cena
assim, naturalmente, e ver uma criatura ser literalmente devorada por pássaros,
não era o que eu gostaria de presenciar naquela manhã. Ou em qualquer outra da
minha atribulada vida.
Mas, enfim, era um corpo humano,
de homem, e não estava ali há muito tempo, pois apenas parte do rosto, os olhos,
principalmente, já haviam sido objeto de repastos das aves. Também ainda não
estava em estado de putrefação, o que me levou a intuir que o mar o depositara
ali momentos antes que eu o encontrasse.
Cheio de escrúpulos me aproximei
do cadáver, ocasião em que os abutres levantaram voo a contragosto, soltando
estridentes gritos de protesto, e ficaram a sobrevoar o local como a esperar
pela minha partida. O homem morto vestia-se decentemente, e possuía quase a
mesma compleição física que eu, pelo que pude ver em decorrência de o corpo se
achar em posição decúbito lateral, mas com as pernas um pouco dobradas em
direção às nádegas. Ao verificar melhor o corpo, apesar de já não contar com os
olhos na cavidade ocular, depreendi que tinha feições orientais, ideia
corroborada pelo rosto arredondado e pelos cabelos escuros e lisos. E logo uma
ideia me ocorreu: vou sepultar o pobre homem, a despeito do estado de
beligerância que identificava naquelas aves que continuavam sobrevoando o
local. E assim procurei fazer, sem perda de tempo.
De posse de um pedaço de madeira
que possivelmente adviera de alguma embarcação, cavei uma cova rasa, um pouco
fora da linha de maré. Conclusão fácil ao observar a pequena elevação que a
água sempre deixa na areia, marcando o ponto até aonde vai quando em seus
movimentos de maré alta. Depois, sofri um pouco para arrastar o corpo até lá,
fato que me fez suar bastante e que me deixou muito cansado. Era uma coisa para
corrigir também, anotei mentalmente.
E foi nesse trajeto, quando
removia o corpo do infeliz náufrago, que pensei em lhe pedir por empréstimo suas
vestimentas, vez que se achavam em ótima situação, e ele não iria mais precisar
delas. E lá chegando comecei a desvestir o cadáver, e ai tive outra surpresa: o
homem trazia um cinto oculto, preso na altura da cintura. Retirei-o e vi que
continha alguns bons maços de cédulas. Eram dólares americanos. Não levava
nenhuma carteira consigo, mas deixava a impressão que uma tinha estado em um
deles - pois se achava desabotoado – mas agora devia está em algum lugar na
água.
Ainda trazia um fino cordão de
outro atado ao pescoço, com uma pequena medalha na qual estavam cunhadas as
iniciais J.W. E um anel no dedo anular, grande, vistoso, e com uma pedra
vermelha incrustada, provavelmente um rubi. As roupas - e o dinheiro - ficaram
comigo. Quanto ao pequeno colar, atei-o em uma pequena cruz de madeira que eu
finque no solo junto ao pobre túmulo. E o anel ficou no dedo intumescido do
morto.
Não preciso dizer que a cueca de
seda, comprida, quase um calção, achei que me seria bem mais útil, e levei
junto com o restante das roupas para a minha choupana para lavar tudo em muitas
águas. Precisava retirar o cheiro comum
de cadáver que elas continham.
Antes de partir, fiz uma oração
contrita em favor do morto, pedindo pela sua família, tão aflita quanto a minha
naquela hora. Sobre mim, um céu límpido, de um azul quase escuro, com filetes
de nuvens espalhadas como fiapos de algodão. Mas, nada dos pássaros. Haviam
desistido para procurar outros meios de se alimentar. Mostraram-se muito mais
práticos do que o ser humano: não quebravam a cabeça com algo que já
consideravam perdido. Voltei com o
produto do meu achado e a me perguntar: mas, afinal, pra que dinheiro?
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