Central dos anos 80 posando para fotografia no Estádio Adrian Berrospi |
José Pedro Araújo
Trato aqui dos jogos disputados
lá pelos idos anos sessenta quando as partidas eram disputadas no velho estádio
Honorato Gomes (hoje Adrian Berrospi). Modesto campo de futebol que ostentava o
nome de “estádio”, cercado de talos de babaçu, bem aparadinhos, juntinhos e em
pé para não deixar brechas, em intermináveis cercas de faxina. Era o nosso alçapão
no qual, aos domingos, sempre tínhamos time visitante para enfrentar o Central.
Nos dias de hoje, fatalmente o chamaríamos de Arena, mesmo não havendo cadeiras
para sentar, ou até mesmo arquibancadas, cobertura, essas coisas próprias dos
bons estádios de futebol. Assistiam-se aos jogos de pé, disputando espaço na
beira do gramado uns com os outros, a cotoveladas.
O campo em si já era uma
peculiaridade nossa, pois situado de leste para oeste, possuía uma inclinação
um pouco acentuada, ficando a trave ocidental em um ponto muito mais
elevado do que outra. E a grama não era
a Esmeralda, plantada em estádios utilizados na Copa do Mundo de 2014, era o
nosso resistente Capim-de-Burro, perfeitamente adaptado ao nosso meio. Tão
adaptado que nem usávamos o artifício da irrigação para mantê-lo sempre
verdinho. Também não possuíamos aquelas máquinas corta-grama para apará-lo. O
trabalho era feito pelos jumentos vadios que circulavam aos montes pela região.
E a demarcação das suas linhas era feita com cinza. Isso, antes que o estádio
fosse cercado. Porque depois disso, o trabalho de aparar a grama era feito
pelos desportistas que se utilizavam do instrumento mais conhecido na região: a
roçadeira manual. E ficava tudo bem, apesar dos muitos claros que se formavam
ao longo das chamadas quatro-linhas. A bola corria macia, e isso era o que
importava. Um quique da bola aqui, outro lá; uma matada de canela, ou uma
escapulida da gorduchinha, quem se importava!
Outra peculiaridade: não se
tirava o par-ou-ímpar para a escolha do lado do campo e de quem sairia jogando.
O Central sempre jogava o primeiro tempo na descida, deixando ao adversário a
única opção de começar o jogo de baixo para cima, subindo a quase ladeira. E
isso se mostrava uma tarefa cruciante. Antes que findasse o primeiro tempo do
jogo os jogadores do time visitante já estavam com a língua de fora, estafados.
E no segundo tempo, cansados ao extremo, nem mesmo o fato de jogarem na descida
era suficiente para trazer de volta a vitalidade perdida. E ainda tinha outra
particularidade. Devido à falta de costume de jogar em terreno inclinado, os
chutes dados na bola sempre encobriam o travessão, tamanha era a inclinação do
terreno.
Outra coisa que eu nunca entendi,
era porque o nosso estádio ficava ao lado do cemitério da cidade. E isso me
levou a perguntar ao meu pai, certo dia, se era para enterrar os jogadores que
morriam em campo. Nem vou relatar a resposta aqui nesse espaço. Sempre fui uma
pessoa boba. E aos bobos estão reservadas algumas respostas duras.
Pois bem, como nunca tinha
dinheiro para pagar as entradas para assistir às partidas, muitas vezes subia
nas árvores que existiam dentro do Cemitério para poder ver o espetáculo que se
desenrolava logo ao lado. Mas achar um lugar ali também não era tarefa fácil. A
disputa era tão acirrada que tínhamos que chegar cedo para encontrar um lugar
bem posicionado. E assim, passávamos horas esperando a partida começar sem
descer da árvore.
Certo domingo, o adversário era a
seleção de Barra do Corda. E esse jogo me chamou a atenção mais que os demais
em razão da propaganda que se fez ao longo de várias semanas. Era o “Match of
the Century”. Bom, já que era isso, não
deixei meus pais em paz até conseguir o dinheiro para a entrada. E acompanhei
tudo antes do prélio começar. Desde a chegada do caminhão com os jogadores
barra-cordenses, até o almoço havido na pensão da dona Maria Antônia, na
esquina da Magalhães de Almeida com a travessa Nelson Sereno, não perdi um
lance. Fiquei por ali ouvindo as conversas dos craques adversários até um pouco
antes da saída deles para o estádio. E o que ouvi deles, suas fanfarronices, me
deixou aflito: diziam ganhar a partida de goleada. Facilmente. E já no estádio,
minhas preocupações somente aumentaram quando vi adentrar ao gramado o time
adversário.
Os jogadores me pareceram muito
mais vigorosos do que os nossos. Vestindo uma equipagem composta de camisas
alvirrubras, listras vermelhas e brancas, alternadas e na vertical, com calções
brancos, tudo novinho em folha, os craques adentraram ao gramado e começaram a
brincar com a bola, a fazer firulas, matar no peito e rolar para o colega ao
lado, tudo na maior intimidade com a pelota. Ai foi a gota d´água. Temi pela
sorte do nosso humilde Central frente a adversários tão confiantes e fortes.
Olhava para os nossos craques com
suas surradas camisas e calções encardidos, e já ficava com pena da lavada que
iriam levar. Mas ai a partida teve início do jeito que sempre começava, com os
visitantes “subindo a ladeira”. Vi também que a intimidade dos barra-cordenses
com a bola não era tamanha assim. O lateral e o ponta direita, por exemplo, que
corriam rente à torcida que ficava do lado da sombra, mostraram-se uns
autênticos pernas-de-pau e logo caíram nas graças da torcida. No sentido
pejorativo, é claro. E à medida que as brincadeiras se sucediam, seu pequeno
futebol ficava menor ainda. Enquanto o isso, o Central ia marcando gol em cima
de gol, enchendo a rede do nosso performático adversário.
Devo dizer que fui um tanto injusto
com os nossos craques. Não confiei na sua competência tão largamente já
demonstrada nos jogos realizados dentro e fora de casa. Afinal, o nosso
craque maior, Chiquinho do Zé Pintor, era um centroavante de faro apuradíssimo
para o gol. Com seus petardos indefensáveis, ia derrubando a meta adversária
logo no primeiro tempo, e ampliando o placar ao lado do meia-atacante Bolfão. Os
dois recebendo bolas açucaradas do meia-armador Albino. Por outro lado, o
scratch barra-cordense via suas forças diminuírem a cada minuto que passava e
já não conseguia mais atormentar o nosso goleiro como nos minutos iniciais da
partida. O segundo tempo foi somente para confirmar a vitória e ampliar o
placar conseguido na primeira metade do jogo. Caia no Honorato Gomes mais uma
vítima do nosso inclinado campo de futebol de então.
Lembro-me do resultado da partida
como se ela tivesse acontecido hoje: 10 x 1. Os jogadores adversários que
chegaram aqui contando tanta vantagem, voltaram para a sua terra mais
humilhados que os brasileiros após sofrerem os 7 x 1 para a Alemanha. Outra
lembrança que trago comigo daquelas tardes encantadoras de futebol era que as
chuvas não nos davam trégua no inverno e caíam com intensidade logo na hora dos
jogos. E nessas horas a maior parte da torcida procurava se abrigar nas casas
humildes situadas na rua ao lado do campo de jogo. Casas humildes, mas,
hospitaleiras, pois recebiam dezenas e dezenas de pessoas, a maioria
desconhecidas. E ainda nos serviam água quando pedíamos. Quem pratica
atos tão bondosos nos dias de hoje? Somente no velho e bom Curador se podia ver
tanta generosidade.
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