AO MAR PELA SEGUNDA
VEZ
José Pedro Araújo
Passou-se mais de uma semana, e
nada mais aconteceu. Foram dias calmos, no princípio, com chuvaradas no fim da
tarde, mas algo me dizia que estava para acontecer algo que me tiraria daquela
normalidade. Nesses dias aproveitei para por a minha leitura em dia. E quase
devorei todo o livro do meu conterrâneo, Jorge Amado. Só não o fiz, porque
intercalei a sua leitura com o novo projeto para um barco, que ia rabiscando
com um pedaço de carvão em algumas folhas de papel amarelado que arranquei de
um dos livros já lidos. No final de alguns dias, já podia dormir mais
tranquilo, mesmo sabendo que o meu inimigo poderia me surpreender, pois devia
esperar que eu baixasse a guarda. Mas, nem isso me fez sair do meu normal. Não,
eu não estava desistindo de lutar. Talvez estivesse me acostumando a viver
naquela situação de constante perigo.
Tenho consciência de que reside
exatamente ai as grandes oportunidades de sermos pegos desprevenidos. Quando
somos tomados pela soberba e nos achamos superior ao nosso inimigo, o perigo é
imenso. Sabia disso. Mas, algo me dizia que o meu inimigo havia ficado
desapontado comigo. Pois eu poderia ter feito algo contra ele quando o peguei
pelas costas, mas não o fiz. E ele certamente estaria pesando isso. Por mais
cruel ou covarde que fosse.
Hoje comecei a construir o meu
novo barco. Resolvi desenvolver o meu projeto rabiscado e o fiz de forma acelerada.
Terá a forma de uma jangada. Ficará mais leve, mais fácil de fazer e não
precisará que me preocupe se fará água ou não. A lamentar apenas o fato de não
ter as ferramentas adequadas: um serrote, uma pua ou uma plaina, algo que me
permitisse deixá-lo com melhor acabamento. Mas, não havia de ser nada. Iria
ficar bom assim mesmo, com base no que fiz de errado no outro e que evitarei
fazer nele. Teria dois pisos de tábuas, um sobre o outro, e, separando os dois,
três longarinas postas no sentido longitudinal para fixar bem os dois tabuados e
permitir que a água passe pelo meio deles, diminuindo a resistência e
facilitando a navegação.
Enquanto trabalhava na construção
do barco observei que o tempo estava muito esquisito, com as águas um pouco
mais quentes do que o normal, apesar da umidade reinante ser muito alta. Havia
também uma espécie de calmaria muito acentuada, e como já disse acima, senti
que algo de ruim estaria para acontecer. Aumentei o ritmo dos trabalhos, de
modo que a minha nova nau estava ficando pronta rapidamente. Estava gostando do
que fazia, mas, intuitivamente, achava que precisa terminar logo com aquilo. De
outro modo, algo me dizia que o meu inimigo me observava, porquanto esperava
uma chance de me derrotar. Não tinha dúvidas disso. E ele também sabia o que eu
estava planejando.
Talvez fosse isso o que me
preocupava no momento. Ou seria aquele tempo parado e de brisa morna, feio e
desprovido de alegria, apesar de o sol brilhar tão intensamente? Tempo que mais
se parecia com um fruto amadurecido antes do tempo por meios inventados, mas
sem aquele gosto divino que têm quando ficam no ponto através dos seus próprios
meios? Não sei, talvez fosse isso. O que me desagradava é que eu já estava
acostumado à vivacidade do dia naquelas paragens desconhecidas até pouco tempo,
na luminosidade fulgurante daquele ambiente paradisíaco, no cantar alegre dos
pássaros que agora se achavam mudos.
Pronto, terminei. E fiz uma bela
obra diante dos meios de que dispunha. Arrematei tudo com um jiralzinho de
tábua corrida, elevado do piso da jangada cerca de oitenta centímetros.
Precisava dele para acondicionar as coisas que levaria comigo na travessia. E
terminado a obra, não fiz como da outra vez, não a mantive encostada por dias
até que me decidisse partir. Ao contrário, passei a praticar com ela por horas
a fio. Precisava melhorar a minha condição de remador, aprender a manobrar a
minha criação, exercitar os meus braços, praticar, praticar, praticar e...
praticar mais, para me aprimorar no ofício. E o fiz por muitos dias até achar
que estava no ponto. Treinei até mesmo debaixo de chuva, sob o sol mortiço
daqueles dias infindos, sob calor intenso e naquela água morna, meio choca. E,
nesse meio tempo, aquelas condições climáticas que já noticiei somente
pioraram. E as minhas preocupações aumentaram na mesma proporção também. Acho
que me baseava naquela máxima que diz que tempo parado demais, tempo de completa
calmaria, antecede a tempestades.
E foi nessas condições que me
lancei ao mar pela segunda vez. Como a navegabilidade da minha nau era melhor
que a da anterior, demorei-me pouco tempo até chegar ao velho navio ancorado na
areia da praia. E o contornei sem maiores problemas, passando-lhe ao largo.
Também foi fácil fazer a jangada embicar para o lado que eu precisava ao chegar
à ponta da ilha, avançando com velocidade para o ponto de travessia que eu
havia escolhido como o ideal. Ao chegar nesse ponto já ia observando
detidamente a costa para não ser surpreendido pelo meu inimigo, e deixei a arma
de fogo atada ao pequeno mastro que sustinha o meu jirau, presa apenas por um
laço facilmente desatável. Mas não vi nada. O que observei foi a mudança brusca
das condições de navegabilidade.
Vi foi o aparecimento do vento
que andava meio escasso, mas que começou a soprar com força, agitando a água e
fazendo a minha embarcação balançar com intensidade crescente. Ao mesmo tempo,
nuvens pesadas surgiram como por encanto e grossas bagas de chuva começaram a despencar
do céu provocando ligeiras perfurações na
água do mar no ponto que caiam, provocando um tchum, tchum incessante e
barulhento. Até pareciam pequenas pedras atiradas de alturas inimagináveis, tal
o barulho que provocavam ao se chocarem com o líquido salgado.
Não tardou e o tempo já estava
imprestável à navegação. Não era mais uma chuva o que caia sobre mim, era uma
tromba d’água, e o vento, tão sumido naqueles últimos dias, passou a me açoitar
doidamente tirando o controle de navegação e ameaçando me levar para mar alto.
Ou para lugar pior: o fundo do oceano.
Foi nessa hora que eu entendi que
o mar não estava para peixe ou, mais precisamente, para a navegação. Tive que
abortar a ideia e abandonar a minha segunda embarcação. A essa altura a
ventania chegou a quase me arrancar de sobre a jangada e foi nessa hora que eu resolvi que não dava para continuar e saltei na água
revolta. Ondas grandes e movimentadas quase me engoliram. Menos mal que o vento soprava no sentido da
faixa de areia e empurrava as ondas para lá. Mesmo assim, vi-me engolfado pela água
tormentosa e, a muito custo, nadei até a praia e corri à procura de abrigo. Não
tive tempo de salvar nada, nenhum dos meus pertences, preocupava-me apenas com
a possibilidade de perecer naquele mar revolto. Perdi tudo que havia juntado
naqueles dias, e só não perdi toda a roupa porque estava vestido com a minha indumentária
especial, aquela preparada para a minha partida e que era a mesma que eu havia
trazido comigo. O resto foi tudo para o beleléu. Comida, arma, mala com outras
coisas, inclusive alguns livros que pensava em usar caso o meu estágio em outra
ilha fosse prolongado. O mar havia tomado de volta o que era seu. Estava pobre
novamente, e lutando para sobreviver contra o que parecia ser uma tempestade
tropical ou, na pior das hipóteses, um furacão.
O bicho vai pegar para o nosso pobre náufrago. O manco misterioso agora está em vantagem.
ResponderExcluirGostei do capítulo. Muita emoção.
É meu amigo Acoram, em rio que tem piranha, jacaré nada de costas, já dizia os mais experientes. O nosso náufrago está doido pra se se mandar!
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