segunda-feira, 4 de maio de 2015

Cine Canecão



                                                            
            Os habitantes de Presidente Dutra sempre se ressentiram da ausência de atividades de lazer, especialmente as crianças e jovens. Não possuímos um rio perene ou mesmo um lago que nos favoreça a prática da natação, onde as famílias possam levar seus filhos para a saudável prática de um dia de lazer ou um frugal piquenique na beira da água. E quem já foi jovem um dia sabe o quanto um rio caudaloso, com suas águas correndo a toda velocidade, atrai e nos convida a uma pescaria de anzol ou mesmo a um bom mergulho.

            Eu, menino sonhador e adepto de primeira hora do banho em águas correntes, sempre me senti tolhido no meu direito por não termos nenhuma aguada de porte, tendo que aguardar o período invernoso quando as chuvas elevavam em muitos metros o nível do riacho Firmino ou do Preguiça.

            Mas, como o título acima revela, não tenho a intenção de discorrer sobre água ou banho em riacho. Referi-me, nos parágrafos acima, a esta atividade apenas para mostrar o quanto nos faltava meios para uma diversão compatível com a nossa idade na Presidente Dutra da minha infância. Não tínhamos nem ao menos um ginásio poliesportivo para a prática de esportes com bola, tendo que recorrer aos terrenos de várzea ou aos vazios urbanos reservados à construção de praças para praticarmos o nosso inescapável futebol.

            Mas, eis que chega a nossa cidade um cidadão aficionado por cinema, chamado Ilnar Pacheco, funcionário público, acho que coletor. Veio de Barra do Corda, onde já possuía uma sala para projeção com o mesmo nome, para instalar em nossa cidade o Cine Canecão. Isso se deu lá para o final dos anos 60, quando o cinema também passava por transformações profundas movidas por cineastas do porte de Luccino Visconti e Fellini, na Itália, ou mesmo Gláuber Rocha, aqui no Brasil, em contraponto ao poderoso cinema holliwoodiano. É bem verdade que, antes, e de vez em quando, a cidade era despertada com a novidade do lançamento de um filme, sempre em preto-e-branco, no Cine Paroquial, onde, mesmo submetido a vários cortes das cenas de beijo, nos esbaldávamos com as histórias contadas na tela. Do mesmo modo, certa vez assistimos a um filme projetado ao ar livre em tela improvisada na quadra de futebol de salão do batalhão do exército sediado àquela época na cidade. Randolph Scott estava exuberante em seu cavalo branco. Babávamos ao ver o astro manejando suas duas pistolas com cabos de madrepérola com verdadeira maestria. Impossível esquecer aquela noite memorável. A meninada sentada no piso duro da quadra de cimento não perdia uma cena sequer. 
 
Arquivo Turma da Barra - interior do Cine Canecão


            Mas a chegada do Canecão entre nós trouxe-nos a tranquilidade do habitual em lugar do transitório. Toda a semana tinha filme diferente na tela. Tínhamos também uma máquina de projeção mais moderna e filmes bem mais atuais. Não os lançamentos, as fitas assistidas nas grandes capitais, mas, aqueles intermediários, com pouco mais de dois anos de lançamento nas melhores salas do país. Outra coisa importante trazida pelo empresário barracordense, foi um sistema de amplificadora de grande alcance, já que não possuíamos emissora de rádio, onde os maiores sucessos do momento eram tocados à larga. Samuel Barros, o projetista do cinema e disque-jóquei levava até aos rincões mais distantes, as vozes dos Feevers, Jerry Adriani, Wanderlei Cardoso, Roberto Carlos, Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, estrelas cintilantes da época. Ouvir a amplificadora tocar era deduzir de cara que teríamos filme novo na tela grande. Mas, mesmo quando já havíamos assistido ao filme na sessão anterior, os jovens se agrupavam na esquina do cinema, naquele tempo localizado na praça do mercado, para conversar amenidades e arriscar alguma paquera. Belos tempos, belos dias, como diria Roberto Carlos mais tarde, também relembrando seus tempos de juventude.

Ver Gigliola Cinquetti sofrendo as agruras de um amor quase impossível enquanto cantava a música Dio, como te amo, ou o durão John Wayne empunhar seu inseparável rifle Winchester para abater mais um facínora, como em Rastro de Ódio, enchia-nos do inominável e absoluto poder que a tela grande produz sobre nós. Certa vez, já trabalhando em uma pequena cidade de nome Lago Verde, me chamou a atenção um veiculo de som, desses volantes, convidando a população a assistir a projeção de um filme imperdível, nas palavras do exaltado locutor. Como na cidade não existia nenhum salão adequado ao mister, o dono da companhia alugou as dependências de um pequeno salão para a projeção. Compareci animado ao local munido de um tamborete, pois no lugar não existiam bancos ou cadeiras. Pouco apropriado para a realização de eventos dessa natureza, o salão possuía uma série de colunas de madeira espalhadas em toda a sua extensão. E da melhor posição que consegui, me vi atrapalhado por uma fileira delas cortando a tela bem ao meio e me deixando com a sensação de que os personagens haviam sido partidos longitudinalmente. 

Mas, o que me incomodou mesmo, foi que a fita, muito velha, e em preto-e-branco, projetada por uma velha máquina em um pano estendido sobre uma parede de taipa com muitas ondulações, quebrava sistematicamente. Quando a luz era acesa, contudo, observava o estado de excitação em que plateia estava. Parecia maravilhada diante da performance que o engraçado Mazzaropi desempenhava. Na frente, já próximo a tela, muitas crianças se achavam sentadas no chão, quietas como nunca ficavam, aguardando mais uma estripulia do velho ator para, ai sim, soltar suas gargantas de inigualável prazer.  Saí da minha compenetração e me juntei aos meus companheiros de cinema. O prazer que me trazia aquela película não era menor do que o que eles sentiam.

O cinema é algo tão mágico, que tanto faz ocorrer em um local como aquele, desprovido de qualquer conforto ou de um equipamento moderno de projeção, derrama do mesmo modo sobre nós a dramaticidade de uma cena mais forte ou a ternura de um amor selado com um beijo. E envolve-nos como se fizéssemos parte da trama. Pode ser projetado em um local ao ar livre, em uma noite escura para facilitar o contraste, ou em uma sala com poltronas de alto luxo, sempre traz consigo o mesmo prazer ou a admiração quando a fita é boa.

Velho e querido Cine Canecão, que me levava todos os meus trocados, frutos de duras batalhas para consegui-los de meu pai ou de minha mãe. Não por pão-durismo, mas porque os tempos eram de dificuldades para uma numerosa família do interior do Maranhão.

Velho e querido cinema, introdutor da moda para as moças, que copiavam os vestidos usados por suas atrizes prediletas, e para os rapazes que se baseavam em artistas do porte de um James Dean, o rebelde-sem-causa com suas camisas de manga curta com duas dobras, deixando à mostra os braços musculosos, ou quando vestia sua jaqueta colorida e apresentava o cabelo engomado tal qual apareceu no filme Juventude Transviada.

O velho Cine Canecão sempre será para mim o marco de um tempo feliz que não volta mais, como o velho Cinema Paradiso foi para o menino Totó, no filme italiano. 
O site Turma da Barra traz alvissareira informação de que o filho do antigo proprietário do Cine Canecão reabrirá as portas daquela casa em Barra do Corda, agora com tecnologia digital. Quem sabe a sua índole empresarial não o estimule a reabrir a filial de Presidente Dutra também! Qiém sabe!

2 comentários:

  1. Caro JP, sua crônica me fez recordar os cines Nazarareth, em Campo Maior, e o Éden, em Parnaíba.
    Sobre o primeiro escrevi texto de caráter memorialístico e sentimental, que publiquei na internet, logo depois do falecimento de Giuliano Gemma, grande astro do chamado faroeste macarrônico.

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  2. Paulo de Jesus
    Eh caro JP esse tempo tambem vivi, logo depois de Samuel assumi os projetores do cinema canecao, esse texto so me traz lembrancas daquela epoca boa que nao voltao jamais

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