Fotografia ilustrativa |
O ambiente era um dos
mais aprazíveis do Recife, o bairro de Dois Irmãos. Naquele ambiente
interiorano, situa-se a Universidade Federal Rural de Pernambuco, um belíssimo
projeto arquitetônico construído em meio a um complexo de árvores frutíferas para
abrigar uma das mais conceituadas universidades do nordeste, bem próximo ao
Zoobotânico do Recife. Juntinho ainda do belo Apipucos de Gilberto Freire. O período
a que me refiro é a década de setenta, época em que estudava naquela unidade
federal de ensino superior. Morador do campus, durante a semana me alimentava
no próprio restaurante universitário. A comida era farta e de boa qualidade e o
restaurante tinha como único senão o fato de fechar nos finais de semana e
feriados. Assim, contrariando o que sempre se afirma, não gostávamos muito
desses períodos sem aula, quando o velho restaurante cerrava as portas. Quando
tínhamos algum dinheiro, ainda dava para quebrar o galho na Cantina do João, onde
era possível saborear um belo prato de macarrão com um vistoso e saboroso ovo
estrelado e encavalado sobre o monte de massa. Em contrapartida, se a grana
estivesse curtíssima, como sempre acontecia, recorríamos a uma mercearia que
ficava logo à entrada do campus.
Confesso que sou
daqueles que acredita que o tempo tem o poder de agir como uma espécie de
esponja que vai apagando as lembranças ruins da nossa mente e deixa somente a
parte boa da nossa “aventura humana na terra”. Somente isso explica o fato de
estar hoje considerando aquele ambiente funesto e nauseabundo como mercearia.
Na verdade, era o que convencionamos chamar de bodega ou birosca, um autêntico
mosqueiro, na acepção da palavra. A bodega ficava situada bem na beira da via
pública, no começo de uma curva bem acentuada. Logo à primeira vista era
possível se depreender o que encontraríamos no seu interior. A parede frontal
do comércio estava sempre suja, e parecia está há muitos anos sem uma demão de
tinta. Parte daquela sujeira era causada pelas rodas dos veículos que transitavam
por ali e costumavam espirrar a água da sarjeta diretamente nela, enlameando-a
e deixando-a como se fosse uma aquarela mal-acabada. Mas a impressão primeira era
bastante piorada quando se entrava no local. A sujeira e a desarrumação no seu
interior suplantavam em muito o que se via no lado de fora.
Quem atendia à
clientela era um homem moreno e de meia idade, barriga proeminente e estufada,
à mostra pela abertura da camisa completamente escancarada, posto que nem um
único botão se mantivesse abotoado. No ambiente completamente sob a penumbra,
no que pese ainda estarmos com o sol alto, o que se via era um homem de aspecto
muito sujo, o suor escorrendo em cascata pela testa e fronte e os cabelos
encaracolados sempre em completo desalinho. No interior do comércio a situação
era de completa desarrumação, como já informamos, com as mercadorias empilhadas
pelo chão ou encostadas na parede. Algumas prateleiras toscas e mal-arranjadas
serviam como depositário de uma infinidade de caixas e vários outros produtos arrumados
sem nenhuma lógica, jogados ao léu como se fora algo imprestável. Sobre o tampo
do extenso balcão já beirando à ruína, espalhavam-se um amontoado de papéis de
embrulho, rolos de fumo-de-corda, latas de biscoito já completamente
enferrujadas, alpercatas de couro, lamparinas amarradas em pencas, e poeira,
muita poeira encobrindo tudo. E no centro de tudo aquilo, encostado ao velho
balcão, o proprietário olhava para o cliente com aquele olhar de peixe morto, a
preguiça e o péssimo humor avultando à tristeza do ambiente.
Atrás dele,
empilhados em um caixote decrépito de madeira, estava o produto que costumeiramente
vínhamos comprar: bandejas de pão-doce. Pão doce, porque era mais barato e mais
palatável, estando ainda macio naquele instante, no que pese ter sido fabricado
nos dias anteriores. Mas o pior era observar aquele enxame de moscas esvoaçando
sobre eles, atraídas pelo doce que os encobria. Era algo repugnante, mas
tínhamos a nossa forma de defesa também. Para desgosto do quitandeiro, pedíamos
que ele retirasse os pães que estavam embaixo da pilha. E ele, mesmo a
conta-gosto, metia a mão suja, unhas carregadas de escórias, na parte de baixo
da pilha de pães e retirava de lá a quantidade que queríamos, embrulhava no
papel sujo e riscado que ele mantinha sobre o balcão e nos entregava, após o
devido pagamento realizado. Pronto. Saiamos correndo do local para apagar da
mente aquela imagem repugnante que saltava aos olhos e assim poder comer o
nosso frugal jantar.
Mas, tudo tem limite.
Uma coisa que eu nunca consegui fazer foi tomar o refresco que o merceeiro
vendia e que conservava na velha geladeira, de um dia para o outro, dentro de
uma panela velha e amassada. Era preferível comprar os saquinhos de Ki-Suco e
fazermos o refresco nós mesmos.
Quando me encontro à
mesa da sala de jantar, rodeado pela filharada que reclama da qualidade da
comida cheirosa e bem apetitosa feita pela nossa secretária, evoca à minha
mente a imagem que nem o tempo conseguiu minimizar daquela mercearia imunda e
mal-cheirosa lá no Recife. É certo que todos precisam passar por experiências
como aquela para poder dar valor às coisas que conseguimos ganhar; ao pão de
cada dia que nunca nos têm faltado. Agradeço a Deus todos os dias pela mesa
farta, assim também pela experiência vivida. Somente as vicissitudes da vida e
os maus momentos têm o dom de fortalecer o nosso ânimo e temperar a nossa força
de vontade na busca de uma posição melhor. Salve, portanto, a mercearia mais
suja do mundo. Eleita porque, nas minhas andanças Brasil afora, e um pouco pelo
resto do mundo também, nunca mais me deparei com um lugar terrível como aquele.
Caro JP, essa bodega tão suja me trouxe à mente estes versos de Osvald de Andrade:
ResponderExcluirNo baile da Corte
Foi o Conde d'Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí
No caso presente, salvo algum desarranjo intestinal, escapamos milagrosamente. Se a memória tem um apagador para as coisas ruins, ainda não funcionou comigo.
ExcluirDiante de sua ressalva figurando as antipatias de nossos filhos em n querer comida A e B. Meu pai sempre diz: Isso é pouca fome!!!!
ResponderExcluirIsso também, meu amigo! Pouca fome e muito dengo!
Excluir