Rede indígena com fogueira sob ela |
José Pedro Araújo
“Familiarizados
com os objetos vistos todos os dias não os admiramos mais e nem sonhamos
pesquisar-lhes as origens”. A frase é do filósofo romano Cícero, nascido 106
a.C. Justifico depois a posição dela no início da presente crônica sobre a rede
de dormir. Tenho uma predileção toda especial por este utensílio que enfeita a
minha casa em várias de suas dependências. A do quarto me acolhe todas as
noites para o primeiro sono, e a da sala de visitas serve para assistir a TV e
para minhas leituras cotidianas. Esta última é alvo de grande disputa quando
meus filhos vêm me visitar. Não fica vazia hora nenhuma. Mesmo assim, como bem
disse o filósofo na primeira frase deste enunciado, é um instrumento tão
simples, tão corriqueiro na vida de um nordestino, que quase ninguém se
interessa em fazer-lhe homenagem. Pesquisar sobre ela, nem se fala.
Foi a partir
desse pensamento – e do enunciado do primeiro parágrafo - que me veio quando me
deparei com um livro do insigne antropólogo, historiador e jornalista, Câmara
Cascudo, denominado “Rede de Dormir – uma pesquisa etnográfica”, que me ocorreu
escrever tal crônica. Ele inicia o prefácio do livro de 354 páginas com a frase
acima cunhada por Cícero. Nada mais verdadeiro. As coisas simples que permeiam
nossas vidas nunca são alvo de pesquisa ou, pelo menos, de uma simples crônica
como esta. Isso acontece com a rede de dormir, mas também com as sandálias que
calçamos diariamente, com a cadeira que nos sentamos a todo instante, ou o
prato que dispomos para recepcionar o nosso alimento sagrado; mas também com a
cadeira de balanço que usamos nas horas de maior relaxamento, etc, etc. Nunca
nos perguntamos de onde vieram, quem foi o inventor ou como se tornaram tão
inseparáveis nas nossas vidas. Mas, sobre isso, Cascudo ainda recorre ao filósofo
e folclorista alemão Bruno Schier, para afirmar que os “objetos do cotidiano
são tão valiosos quanto documentos como indicadores da ciência etnográfica”.
Câmara Cascudo
não escolheu o tema sem está premido pela necessidade. Afirma ele que certa
feita o diretor e proprietário dos Diários Associados, Assis Chateaubriand lhe
pediu que pesquisasse sobre a importância da Mula (muar, animal) na civilização
brasileira. Pesquisador nato, o folclorista saiu a campo e se deparou com uma
grande barreira: a falta de informações sobre o importante muar. E em conversa
com um amigo, surgiu a ideia de pesquisar sobre a rede de dormir, ao invés do
burro. Pesquisador incansável sobre a cultura e os costumes brasileiros, como
ele mesmo afirma “derramou cartas peguntadeiras pelo Brasil e por toda a
América latina”, e pediu aos poetas versos sobre a rede de dormir. E com
tamanha colaboração, a pesquisa não poderia ficar pobre com tanto ouro
recebido”. (Modernos Descobrimentos – PUC Rio).
A pesquisa
gerou um livro com 354 páginas, como afirmei acima. Leitura saborosíssima, como
tudo que Cascudo escreveu, traz informações sobre o uso da rede de dormir nos
quatro cantos do país, e em outras partes do mundo também. De quebra, traz
dados estatísticos sobre a sua fabricação e comercialização nos diversos
estados brasileiros. Traz ainda poemas sobre a nossa “baladeira”, além de algumas
frases importantes dirigidas a ela. Mas fala também do preconceito com que a
rede foi tratada em determinadas épocas, sobretudo entre os mais abastados, que
a consideravam “coisa para o uso de gente pequena, pobre”. E esse sentimento
retrógrado e ilegítimo quase a fez sumir do nosso meio. Em São Paulo, por
exemplo, era chamada maldosamente de “rede de defunto”, porque servia para transportar
e sepultar pessoas da classe mais baixa no norte e no nordeste. O clima mais
frio do sul e do sudeste também não ajudava muito. Dormir em redes com
temperaturas abaixo dos 20º C, não é nem um pouco aconselhável. Por esta razão,
o uso da rede não se popularizou muito no sul e sudeste, como nas demais
regiões do país. Os indígenas se defendiam fazendo pequenas fogueiras sob ela
para mantê-las aquecidas. Por isso também vingou por lá.
A propósito
disto, certa vez fui convidado por um amigo para passar alguns dias na fazenda
da sua família. Estávamos no início de julho, no período das férias, por isso
aceitei o convite de bom grado. A fazenda ficava na Sapucaia, região muito
conhecida dos presidutrenses, e para lá nos dirigimos munidos de grande
expectativa pela possibilidade de uma boa temporada no campo. As opções para
brincadeiras eram muitas, desde o banho de açude, a pescaria, a caçada, as
frutas fresca de vários tipos, é um leque interminável de opções. Ao chegarmos,
logo vimos que não éramos os únicos convidados. Alguns outros amigos da família
já estavam lá e, como era de se esperar, foram tratados com maior cortesia do
que a meninada. Ficou determinado que nós iriamos dormir na casa de farinha. Casa
de farinha, como se sabe, não possui paredes. Somente telhado. A noite chegou,
e com ela a temperatura desabou. Não sei se por esquecimento, mas recebemos a
rede sem o lençol para nos cobrir. Cansado das brincadeiras do dia, desmaiei
logo que cai na rede. Até dormi bem nas primeiras horas, mas, logo, um vento
frio e impertinente começou a bater na minha rede, deixando-a fria como uma
barra de gelo. E isso não foi nada. Madrugada chegando, sem que eu conseguisse
dormir, veio sorrateiro o tal da “cruviana”. Cruviana é aquele ventinho da
madrugada que açoita-nos com chicote de gelo e empurra a caboclada para perto
do fogo. Foi o que fizemos: passamos o resto da noite procurando gravetos para
atiçar o fogo que alguns trabalhadores haviam acendido. Eles também não
conseguiram dormir mais. Dia seguinte, não esperei nem pelo café da manhã.
Tomei o caminho de volta para casa. Acho que nunca passei tanto frio na minha
vida. Nem quando fomos apanhados em 2013 por uma nevasca perto de Colônia, na
Alemanha.
Cascudo afirma
que o cronista da nau capitânia de Cabral, Pero Vaz de Caminha, registrou na
sua famosa carta a el-Rei, a presença da rede de dormir entre os índios. Foi
ele também quem lhe estabeleceu o nome: Rede. Os nativos a tratavam por INI.
Foi, por isso, chamado de padrinho da rede de dormir. A rede, portanto, tem sua
origem relacionada com os indígenas, que, dependendo da região, fabricavam-na com
diversos materiais: fibras, algodão, cipós, entre outros. Mas foi o português
emigrado quem melhorou a sua fabricação, incluindo nela a varanda e muitos outros
adornos.
Câmara Cascudo
ainda enumera algumas superstições com relação ao uso da rede:
- A rede de defunto será enterrada com ele se a moléstia for contagiosa. Não sendo, aproveitam-na, lavando-a ao sol com sete águas e expondo-a ao coradouro durante três dias.
- Defumada com alecrim ou galho de arruda seca, deve ser armada para adulto homem usá-la. Não deitar-se imediatamente, mas sentando-se e embalando-se algum tempo. Deitando-se, obedece ao exemplo do morto e segui-lo-á ao cemitério.
- Mulher é “parte fraca” e criança não se defende do poderoso e mudo apelo do defunto. Tem de esperar que um homem se deite primeiro. Antes, é tabu.
- Rede com os cordões embaraçados ou torcidos provoca “nó nas tripas” em menino novo.
- Ninguém se deve deitar ao longo da rede e sim ligeiramente transversal senão “está chamando caixão de defunto”. Quem adormecer de bruços deve ser despertado para readormecer “direito”. Perigo de não mais acordar.
- Rede com todas as varandas para dentro “atrasa o dono”.
- Rede que homem dorme não dorme menino, senão pega a “reima” (gênio, temperamento, modos, hábitos, maneiras típicas).
- Em rede de moça, só moça se deita.
- Os catimbozeiros afirmam que muamba “não pega” em rede por causa do balanço. O movimento oscilatório anula as “forças” do feitiço.
- Rede de “mestre” (do Catimbó) tem jurema nas “bonecas” para fechar o sono, guardando, defendendo.
- Quem fuma deitado provoca asma.
- Rede de ébrio contagia o vício.
- Quem cair de rede beba água em goles vagarosos e em número ímpar.
- Rede emprestada traz vício.
- Rede de menino novo não se torce porque dá cólicas na criança.
- Trocando a rede de armador devem revirá-la.
- Para dissipar o pesadelo basta bater no punho da rede três vezes.
- Para adormecer menino chorão, impele-se a rede com o quadril. (Câmara Cascudo)
Bem, o aviso foi dado. Principalmente a você que usa e
abusa da sua.
Não conseguiu
encontrar pesquisas recentes sobre o uso da rede de dormir. Mas, acredito que
ela teve resgatada a sua importância. Aqueles que viravam as costas para ela
mal conseguia aumentar os ganhos, hoje recorrem à bichinha sem o menor
constrangimento. Nem que seja somente para uma ligeira pestana na hora da sesta,
ou para por em dia a sua leitura. Já consigo visualizar algumas redes coloridas
nas sacadas dos prédios luxuosos que se espalham pela cidade, ou no alpendre
das ricas casas de alguns amigos meus.
Eu, de minha
parte, nunca desprezo a minha companheira de todas as horas. Antes, e pelo
contrário, dou-lhe dez em termos de conforto e companheirismo. Transporto
facilmente a minha rede nas minhas viagens, seja a serviço, seja a lazer. Ela
já possui o meu formato, o meu cheiro, a minha amizade. Eis a sua maior
vantagem em relação à cama. Bendito seja o inventor da rede de dormir!
Para dissipar pesadelo, prenda uma das borlas em uma caixa de fósforos elá se vai o pesadelo.
ResponderExcluirNão existe coisa mais incômoda que uma rede com os punhos desregulados com diferenças no mamucabo. É noite mal dormida com certeza.
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