quarta-feira, 1 de julho de 2015

REDE DE DORMIR - Simples e imune a esnobismos.

Rede indígena com fogueira sob ela
José Pedro Araújo


“Familiarizados com os objetos vistos todos os dias não os admiramos mais e nem sonhamos pesquisar-lhes as origens”. A frase é do filósofo romano Cícero, nascido 106 a.C. Justifico depois a posição dela no início da presente crônica sobre a rede de dormir. Tenho uma predileção toda especial por este utensílio que enfeita a minha casa em várias de suas dependências. A do quarto me acolhe todas as noites para o primeiro sono, e a da sala de visitas serve para assistir a TV e para minhas leituras cotidianas. Esta última é alvo de grande disputa quando meus filhos vêm me visitar. Não fica vazia hora nenhuma. Mesmo assim, como bem disse o filósofo na primeira frase deste enunciado, é um instrumento tão simples, tão corriqueiro na vida de um nordestino, que quase ninguém se interessa em fazer-lhe homenagem. Pesquisar sobre ela, nem se fala.

Foi a partir desse pensamento – e do enunciado do primeiro parágrafo - que me veio quando me deparei com um livro do insigne antropólogo, historiador e jornalista, Câmara Cascudo, denominado “Rede de Dormir – uma pesquisa etnográfica”, que me ocorreu escrever tal crônica. Ele inicia o prefácio do livro de 354 páginas com a frase acima cunhada por Cícero. Nada mais verdadeiro. As coisas simples que permeiam nossas vidas nunca são alvo de pesquisa ou, pelo menos, de uma simples crônica como esta. Isso acontece com a rede de dormir, mas também com as sandálias que calçamos diariamente, com a cadeira que nos sentamos a todo instante, ou o prato que dispomos para recepcionar o nosso alimento sagrado; mas também com a cadeira de balanço que usamos nas horas de maior relaxamento, etc, etc. Nunca nos perguntamos de onde vieram, quem foi o inventor ou como se tornaram tão inseparáveis nas nossas vidas. Mas, sobre isso, Cascudo ainda recorre ao filósofo e folclorista alemão Bruno Schier, para afirmar que os “objetos do cotidiano são tão valiosos quanto documentos como indicadores da ciência etnográfica”.

Câmara Cascudo não escolheu o tema sem está premido pela necessidade. Afirma ele que certa feita o diretor e proprietário dos Diários Associados, Assis Chateaubriand lhe pediu que pesquisasse sobre a importância da Mula (muar, animal) na civilização brasileira. Pesquisador nato, o folclorista saiu a campo e se deparou com uma grande barreira: a falta de informações sobre o importante muar. E em conversa com um amigo, surgiu a ideia de pesquisar sobre a rede de dormir, ao invés do burro. Pesquisador incansável sobre a cultura e os costumes brasileiros, como ele mesmo afirma “derramou cartas peguntadeiras pelo Brasil e por toda a América latina”, e pediu aos poetas versos sobre a rede de dormir. E com tamanha colaboração, a pesquisa não poderia ficar pobre com tanto ouro recebido”. (Modernos Descobrimentos – PUC Rio).

          A pesquisa gerou um livro com 354 páginas, como afirmei acima. Leitura saborosíssima, como tudo que Cascudo escreveu, traz informações sobre o uso da rede de dormir nos quatro cantos do país, e em outras partes do mundo também. De quebra, traz dados estatísticos sobre a sua fabricação e comercialização nos diversos estados brasileiros. Traz ainda poemas sobre a nossa “baladeira”, além de algumas frases importantes dirigidas a ela. Mas fala também do preconceito com que a rede foi tratada em determinadas épocas, sobretudo entre os mais abastados, que a consideravam “coisa para o uso de gente pequena, pobre”. E esse sentimento retrógrado e ilegítimo quase a fez sumir do nosso meio. Em São Paulo, por exemplo, era chamada maldosamente de “rede de defunto”, porque servia para transportar e sepultar pessoas da classe mais baixa no norte e no nordeste. O clima mais frio do sul e do sudeste também não ajudava muito. Dormir em redes com temperaturas abaixo dos 20º C, não é nem um pouco aconselhável. Por esta razão, o uso da rede não se popularizou muito no sul e sudeste, como nas demais regiões do país. Os indígenas se defendiam fazendo pequenas fogueiras sob ela para mantê-las aquecidas. Por isso também vingou por lá.

A propósito disto, certa vez fui convidado por um amigo para passar alguns dias na fazenda da sua família. Estávamos no início de julho, no período das férias, por isso aceitei o convite de bom grado. A fazenda ficava na Sapucaia, região muito conhecida dos presidutrenses, e para lá nos dirigimos munidos de grande expectativa pela possibilidade de uma boa temporada no campo. As opções para brincadeiras eram muitas, desde o banho de açude, a pescaria, a caçada, as frutas fresca de vários tipos, é um leque interminável de opções. Ao chegarmos, logo vimos que não éramos os únicos convidados. Alguns outros amigos da família já estavam lá e, como era de se esperar, foram tratados com maior cortesia do que a meninada. Ficou determinado que nós iriamos dormir na casa de farinha. Casa de farinha, como se sabe, não possui paredes. Somente telhado. A noite chegou, e com ela a temperatura desabou. Não sei se por esquecimento, mas recebemos a rede sem o lençol para nos cobrir. Cansado das brincadeiras do dia, desmaiei logo que cai na rede. Até dormi bem nas primeiras horas, mas, logo, um vento frio e impertinente começou a bater na minha rede, deixando-a fria como uma barra de gelo. E isso não foi nada. Madrugada chegando, sem que eu conseguisse dormir, veio sorrateiro o tal da “cruviana”. Cruviana é aquele ventinho da madrugada que açoita-nos com chicote de gelo e empurra a caboclada para perto do fogo. Foi o que fizemos: passamos o resto da noite procurando gravetos para atiçar o fogo que alguns trabalhadores haviam acendido. Eles também não conseguiram dormir mais. Dia seguinte, não esperei nem pelo café da manhã. Tomei o caminho de volta para casa. Acho que nunca passei tanto frio na minha vida. Nem quando fomos apanhados em 2013 por uma nevasca perto de Colônia, na Alemanha.

Cascudo afirma que o cronista da nau capitânia de Cabral, Pero Vaz de Caminha, registrou na sua famosa carta a el-Rei, a presença da rede de dormir entre os índios. Foi ele também quem lhe estabeleceu o nome: Rede. Os nativos a tratavam por INI. Foi, por isso, chamado de padrinho da rede de dormir. A rede, portanto, tem sua origem relacionada com os indígenas, que, dependendo da região, fabricavam-na com diversos materiais: fibras, algodão, cipós, entre outros. Mas foi o português emigrado quem melhorou a sua fabricação, incluindo nela a varanda e muitos outros adornos.

Câmara Cascudo ainda enumera algumas superstições com relação ao uso da rede:

  • A rede de defunto será enterrada com ele se a moléstia for contagiosa. Não sendo, aproveitam-na, lavando-a ao sol com sete águas e expondo-a ao coradouro durante três dias.

  • Defumada com alecrim ou galho de arruda seca, deve ser armada para adulto homem usá-la. Não deitar-se imediatamente, mas sentando-se e embalando-se algum tempo. Deitando-se, obedece ao exemplo do morto e segui-lo-á ao cemitério.

  • Mulher é “parte fraca” e criança não se defende do poderoso e mudo apelo do defunto. Tem de esperar que um homem se deite primeiro. Antes, é tabu.

  • Rede com os cordões embaraçados ou torcidos provoca “nó nas tripas” em menino novo.

  • Ninguém se deve deitar ao longo da rede e sim ligeiramente transversal senão “está chamando caixão de defunto”. Quem adormecer de bruços deve ser despertado para readormecer “direito”. Perigo de não mais acordar.

  • Rede com todas as varandas para dentro “atrasa o dono”.

  • Rede que homem dorme não dorme menino, senão pega a “reima” (gênio, temperamento, modos, hábitos, maneiras típicas).

  • Em rede de moça, só moça se deita.

  • Os catimbozeiros afirmam que muamba “não pega” em rede por causa do balanço. O movimento oscilatório anula as “forças” do feitiço.

  • Rede de “mestre” (do Catimbó) tem jurema nas “bonecas” para fechar o sono, guardando, defendendo.

  • Quem fuma deitado provoca asma.

  • Rede de ébrio contagia o vício.

  • Quem cair de rede beba água em goles vagarosos e em número ímpar.

  • Rede emprestada traz vício.

  • Rede de menino novo não se torce porque dá cólicas na criança.
  • Trocando a rede de armador devem revirá-la.

  • Para dissipar o pesadelo basta bater no punho da rede três vezes.

  • Para adormecer menino chorão, impele-se a rede com o quadril. (Câmara Cascudo)



Bem, o aviso foi dado. Principalmente a você que usa e abusa da sua.

Não conseguiu encontrar pesquisas recentes sobre o uso da rede de dormir. Mas, acredito que ela teve resgatada a sua importância. Aqueles que viravam as costas para ela mal conseguia aumentar os ganhos, hoje recorrem à bichinha sem o menor constrangimento. Nem que seja somente para uma ligeira pestana na hora da sesta, ou para por em dia a sua leitura. Já consigo visualizar algumas redes coloridas nas sacadas dos prédios luxuosos que se espalham pela cidade, ou no alpendre das ricas casas de alguns amigos meus.

Eu, de minha parte, nunca desprezo a minha companheira de todas as horas. Antes, e pelo contrário, dou-lhe dez em termos de conforto e companheirismo. Transporto facilmente a minha rede nas minhas viagens, seja a serviço, seja a lazer. Ela já possui o meu formato, o meu cheiro, a minha amizade. Eis a sua maior vantagem em relação à cama. Bendito seja o inventor da rede de dormir!
 

2 comentários:

  1. Para dissipar pesadelo, prenda uma das borlas em uma caixa de fósforos elá se vai o pesadelo.

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  2. Não existe coisa mais incômoda que uma rede com os punhos desregulados com diferenças no mamucabo. É noite mal dormida com certeza.

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