Chico Acoram Araújo*
Certa feita estava eu, como de hábito, a fechar a janela de um dos quartos da
minha casa, logo após a fuga dos últimos raios solares daquele calorento dia do
mês de setembro. Contudo, através dessa janela que dava para o pequeno quintal
da casa, ainda se via alguns ralos clarões reluzentes no poente, ao longe,
entre as nuvens. Contemplei aquele cenário; um ar de felicidade e melancolia me
abateu. Ao sair, ouvi um inopinado ruflar de asas no forro do recinto. O
ambiente estava escuro. Deduzi que fosse algum inseto ou um pequeno
pássaro. Acendi imediatamente a lâmpada. De imediato, não vislumbrei o que
voava sobre minha cabeça, pois o bicho se deslocava, sem bater nas paredes, em
uma incrível velocidade. Só depois de um olhar atento, identifiquei que era um
Chiroptera, conhecido vulgarmente como morcego, ou andirá ou guandira como os
índios o denominavam em língua Tupi Guarani; o único mamífero que voa na face
da terra, e possuidor de um extraordinário sentido da ecolocalização, que não é
nada menos do que um biossonar ou orientação por ecos, que utiliza para
orientação, busca de alimentos e comunicação. Reabri a janela, pequei de uma
vassoura, pus o inusitado hóspede para fugir; desapareceu na noite já escura.
A presença daquele pequeno mamífero voador, possuidor de mão e asa, daí o nome
Chiroptera, de origem etimológica nos respectivos termos gregos cheir e
pterón, que significa mãos transformadas em asas, me fez viajar,
pelo túnel do tempo, para um determinado período de minha infância, na
periferia de Barras do Marataoan. Era final dos anos cinquenta. Com cinco ou
seis anos de idade, minha mãe cuidou logo de me colocar em uma escola. A única
existente no bairro funcionava em uma antiga capela; atualmente igreja da
Paróquia de Santa Luzia, no Bairro Boa Vista. A escola funcionava de forma
precária e improvisada. A sala de aula era o grande salão da capela. Os longos
bancos de madeira, onde os fiéis se sentavam nos dias de missa e novenas,
serviam de carteiras escolares para os alunos. Uma bondosa senhora, de nome que
não recordo agora, era a professora da escola; aliás, a única para ensinar
cerca de 30 ou 40 alunos que se dividiam em duas turmas, sendo a primeira dos
meninos iniciantes, e a segunda dos mais adiantados. O corredor que separava os
bancos da igreja era o divisor das duas salas de aulas. O material escolar da
criançada resumia-se em apenas um caderno de caligrafia e uma caneta-tinteiro.
Os poucos livros, provavelmente pertencentes à professora, eram utilizados de
forma coletiva. Hoje, creio que a metodologia pedagógica aplicada naquele
rudimentar estabelecimento de ensino era positiva, pois quando minha família
mudou-se para Teresina, em certo janeiro de 61, eu já sabia ler e escrever,
razão esta que me fez ser promovido para uma série imediatamente superior, ou
seja, para o “Primeiro Ano B” do Grupo Escolar João Costa, localizado na Rua
Jônatas Batista, ao lado do Estádio Lindolfo Monteiro, no centro da cidade.
Isso é uma outra história. Talvez, em outra oportunidade, poderei fazer uma
dissertação sobre o assunto.
No primeiro dia aula, ainda cedinho da manhã de uma provável segunda-feira,
acompanhado da minha saudosa mãe, entrei na escola, ou melhor, na capela, onde
já se encontravam a professora e mais alguns alunos. A mamãe bastante alegre me
apresentou à mencionada educadora. Todo acanhado, dirigi-me para uma
improvisada carteira escolar que ela apontara com um gesto de mão. Minha mãe me
observou, e sorriu; voltou para casa, feliz. Logo depois, as duas salas de
aula, separadas por uma parede invisível, estavam lotadas. A aula teve seu
início. Não prestei muita atenção ao que a professora falou no começo, pois
meus olhos estavam fixos no teto da capela. Boquiaberto, descobri vários
morcegos pendurados, de ponta-cabeça, nas ripas do telhado. Estavam quietos,
adormecidos. Voltei minha atenção para a professora. De vez por outra, olhava
para aqueles engraçados ratos voadores. Flagrei, algumas vezes, que eles
também nos observavam, com seu olhar de olhos cegos, brilhantes e misteriosos.
A capela, além de escola, também servia de dormitório diurno para aqueles
pequenos animais, saindo os mesmos apenas durante a noite para se alimentarem
de frutos, sementes, folhas, néctar, pólen e pequenos vertebrados. Acho que não
se importavam com a presença dos alunos. Eles faziam parte do cenário escolar;
tornaram-se indiferentes.
Retornando-me dessa viagem de saudosas lembranças de criança lá do meu torrão
natal, meus pensamentos voltaram para o hóspede que minutos atrás tomou rumo
ignorado no breu daquela noite. Passei um bom tempo matutando porque muitas
pessoas têm concepções fantasiosas sobre os morcegos, que geram comportamentos
hostis e estimuladores de atitudes agressivas a esses animais tão importantes
para a natureza. Sabe-se que quando há uma grande colônia de morcegos em uma
região, estes facilitam o controle de peste, pois eles são predadores naturais
de insetos. Além disso, os morcegos são importantes na polinização, pois estes
ao visitar as flores para consumir néctar, acabam por transportar o pólen de
uma flor a outra da mesma espécie, ajudando assim a reprodução das plantas
visitadas. Da mesma forma, eles são responsáveis pela dispersão de sementes
durante o ato de pegarem os frutos de diferentes plantas para comerem e, ao
fazerem isso, ingerem ou carregam as sementes, dependendo do tamanho.
Quanto aos mitos e famas dos morcegos, fiz uma pesquisa na Internet onde
descobri algumas curiosidades sobre a nossa personagem agora em comento. Com relação
aos vampiros, os morcegos estão impregnados em nossas mentes, pois os vampiros
transformavam-se, às vezes, em morcegos, e saíam voando por aí, conforme
mostram os filmes do gênero. Isso porque a lenda dos vampiros é muito conhecida
e difundida em todo o mundo. O filme mais visto sobre vampiros foi aquele
baseado na lenda do Conde Drácula, um romance escrito em 1897 pelo autor
irlandês Bram Stoker. Daí muitos outros filmes foram produzidos e vistos no
mundo inteiro. Dizem que a associação dos morcegos com essa lenda deve-se a
três espécies de morcegos, sendo a mais conhecida a espécie do morcego-vampiro,
encontrado no México e América do Sul. Importante salientar, que esse tipo de
morcego não chupa, e sim lambe o sangue que sai da mordida desferida por ele. A
outra identificação dos morcegos com os vampiros é o fato de esses animais
terem hábitos crepuscular e noturno. Algumas espécies de morcegos gigantes são
encontradas na África, Oceania e Ásia, que chegam a dois metros de envergadura,
são conhecidas como “raposa-voadora”. Quanto ao mito de os morcegos serem cegos
deve resultar da imaginação de que estes usam exclusivamente a ecolocalização.
Pelo contrário, os morcegos têm uma visão excelente. A ecolocalização, ou o
sexto sentido, vamos assim dizer, é um recurso adicional que os morcegos
possuem.
Para finalizar, transcrevo a seguir uma interessante fábula criada pelo grego
Esopo que conta a história envolvendo a nossa personagem desta crônica: o
enigmático morcego. A princípio, imaginei não existir nenhuma fábula com o
protagonista aqui evidenciado. Antes, porém, creio ser oportuno dizer quem foi
Esopo. Segundo a enciclopédia Wikipédia, ele foi escritor da Grécia Antiga a
quem são atribuídas várias fábulas populares. A ele se atribui a paternidade
das fábulas como gênero literário. As suas fábulas serviram como base para
recriações de outros escritores ao longo dos séculos, como Fedro e La Fontaine.
O fabulista grego teria nascido no final do século VII a.C. ou no início do
século VI. O local de seu nascimento é incerto.
Eis a
história do fabulista grego Esopo:
O Morcego e a Doninha
Um morcego desajeitado caiu acidentalmente no ninho de uma Doninha, que,
com um bote certeiro o capturou.
Atemorizado, o morcego pediu que esta lhe poupasse a vida, mas a Doninha
não queria lhe dar ouvidos.
“Você é um rato, ela disse, “e eu sou por natureza inimiga dos
ratos. Cada rato que pego, evidentemente, me serve de jantar, essa é a lei.”
“Mas, a senhora veja bem, eu definitivamente, não sou um rato!”tentou explicar
o infeliz Morcego. “Veja minhas asas. Você já viu um rato que é capaz de voar?
Claro que sou apenas um tipo de pássaro, de uma variedade, podemos afirmar, um
tanto exótica. Por favor, me deixe ir embora!”.
A Doninha, olhando melhor para sua vítima, concordou que ele não era um
rato e o deixou ir embora. Mas, alguns dias depois, o mesmo atrapalhado
Morcego, cegamente, caiu outra vez no ninho de outra Doninha.
Ocorre que Esta Doninha era inimiga declarada de todos os pássaros, e
logo que o tinha em suas garras, preparou-se para abocanhá-lo.
“Você é um pássaro,” ela disse, “por isso mesmo o comerei!” “O que?”
Exclamou o Morcego, “eu, um pássaro! Isso é quase um insulto. Todos os pássaros
possuem penas! Cadê minhas penas, você é capaz de vê-las? Claro que não sou
nada além de um simples rato. Tenho até um lema que é: Abaixo todos os Gatos!”
E o Morcego teve sua vida poupada pela segunda vez.
Moral da história:
1. Sábio é aquele que é flexível, que
sabe analisar a situação e agir de acordo com as circunstâncias.
2. O sábio aprende a tirar do problema
uma solução incapaz de criar outros problemas ...
*Chico Acoram Araújo
é contador, funcionário público federal, poeta bissexto, contista, cronista e
futebolista aposentado.
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