by Vitrine Mania |
José Pedro Araújo
Na tentativa de passar
para o papel o texto de uma crônica que me martela o juízo já há muitos dias, deparo-me
com um sem número de dificuldades que me impedem de registrar o teor que eu
imaginei. As palavras teimam em não fluir da forma que vieram em minha mente
momentos atrás, escondem-se, ficam indisponíveis; tento novamente retomar o fio
da meada, agora no sentido inverso, nada acontece. Diligencio novamente, e dessa vez
consigo captar algumas palavras soltas que não tem a mesma clareza que eu
gostaria, para que o texto pudesse fluir com leveza. Tudo bem, depois
procurarei substituí-las por outras de fonética mais agradável. Volto à
caça de novas palavras para terminar o meu raciocínio e me deparo
novamente com o mesmo problema do inicio: palavras escapam sorrateiramente,
escondem-se nos desvãos da memória, submergem no profundo lago do esquecimento,
como se tivessem medo de aflorar, vir à tona. Insisto. Tento novamente apanhar
aquelas mais conhecidas, de uso quase popular e vou montando vagarosamente o
meu texto que, mesmo não possuindo ainda a placidez e a aparência simpática
que eu gostaria que ele tivesse, já consigo me satisfazer com o inicio da
forma que gostaria de lhe dar. Está mais palatável, tem mais sonoridade ao ser
pronunciado, até já começa a agradar aos meus ouvidos. E assim vou avançando
vagarosamente rumo ao meu texto alvo, apanhando as palavras com muito cuidado, com
pinças de extrema maciez. Reorganizo as frases. É verdade que algumas delas ainda
são apanhadas com dificuldade, porém de forma indolor e sem arranhões. Armo-lhe
armadilhas em lugares da memória por onde sei que fatalmente irão passar e, em
seguida, zás: capturo uma até com certa facilidade. Ajusto-a ao texto, no lugar
que mais me parece o ideal. Ela concorda comigo que ali estará muito mais
confortável do que estava anteriormente quando se achava vagando sem sentido no
meu cérebro. Agora o texto está perdendo a aridez e dele brota uma sonoridade
de cântico lírico; a sua rigidez foi substituída pelo sentido retilíneo, com
caminhar amoldado e congruente. Volto a procurar novas palavras no meu
subconsciente e vou encontrando no caminho algumas outras que até já se apresentam
como voluntárias. É bem verdade que a maioria ainda se esconde, foge
rapidamente quando quase me estou assenhorando delas. Insisto mais, vou à caça
sem esmorecimento e pego uma antes que ela vire a esquina de um local escuro e
de difícil acesso, uma reentrância para onde vão as menos utilizadas
durante toda a vida. Opa! Ela esperneia e tenta se soltar. Seguro-a com
firmeza, mas sem machucá-la; preciso dela bem disposta, saudável, para compor o
meu texto. Tenho que achar a posição correta para ela antes que me escape e fuja
para sempre em meio ao esquecimento. Terminada a tarefa, passo a procurar
outras desertoras que também me escapam rapidamente e por um bom tempo não
consigo encontrá-las. Sem problemas. Volto mais tarde para tentar achá-las, e
desta vez tenho mais sorte: uma linda palavra que estava descansando
tranquilamente em um belo e verde gramado, à beira de um laguinho sonolento e
muito azul, não ofereceu resistência e concorda em me seguir com muita
docilidade. Disse-me até que estava muito satisfeita em compor comigo e que não
o fizera antes porque não fora procurada. E assim vou seguindo até encontrar um
pequeno grupo de palavras que, apesar de belas, sentiam-se rejeitadas, e por
isso, desanimadas, reclamando que quase não são mais procuradas, que foram
trocadas por outras mais na moda. Uso-as e o texto fica super belo, robusto e,
surpresa: moderno. Estou ganhando
velocidade no meu mister, já discorro com fluidez. Como capturador de palavras,
capitão-do-mato da escrita, já posso dizer que estou bem melhor, quase me sinto
um nobre e excelente caçador. Prossigo animado e dou com um grupo robusto,
populoso, que pulam à minha frente, oferecem-se sem nenhum pudor, pedem
insistentemente para que eu as carregue comigo. São barulhentas e de sonoridade
escrachada; são mesmo volúveis, posso sentir. Estaco indeciso. Indagam-me
porque tenho tantas dúvidas em levá-las; não entendem a minha indecisão, se são
as mais procuradas na atualidade; elas povoam as crônicas, as poesias, os
textos políticos e até mesmo os de auto-ajuda. Tentado, mas resoluto, sigo em
frente sem olhar para trás, dobrando a primeira esquina e tomando um atalho
para voltar. Já quase chegando ao começo da trilha me deparo com outro numeroso
e barulhento grupo de palavras. Parece-se com um mercado persa, pela
movimentação e pelo barulho que observo. Aproximo-me do ruidoso grupo e, qual
não é a minha surpresa: trata-se de um ajuntamento especial formado por palavras
mutiladas, algumas tão amputadas que permaneceram somente com as suas iniciais.
Agarro a mais próxima e lhe pergunto o porquê de tudo aquilo. Qual a razão de
estarem tão alegres, se, afinal, encontram-se naquela situação. Ela me olha com
um sorriso de deboche nos lábios, como a me perguntar de que planeta eu sai. Mas,
com um muxoxo de resignação, me responde que estão assim para poderem ser
utilizadas pela nova tecnologia utilizada nas comunicações, uma tal de
internet. Desiludido, procuro a saída e resolvo parar por ali. Estou me considerando
o mais arcaico dos homens por não achar beleza nas tais palavras amputadas. Quero
e devo continuar me utilizando das palavras inteiras, não despedaçadas. Sigo na companhia dos caretas,
dos retrógrados, dos pouco-lidos. Somos anônimos, mas somos felizes em poder
brincar com a sonoridade límpida das palavras inteiras, mesmo daquelas pouco
usadas que, apesar de esquecidas, continuam tão belas quanto antes.
Dr. Araújo, gostei muito do texto; é diferente, é poético e cheio de metáforas. Você brincou com as palavras. Parabéns.
ResponderExcluirResultado de um momento de total falta de criatividade, meu amigo. Dai comecei a brincar com as palavras, e deu nisso.
ExcluirUm estilo diferente de escrever. Ao iniciar a leitura esperava apenas uma introdução do que viria.
ResponderExcluirQue maravilha! Grande criatividade, caro amigo.
Muito obrigado, amigo. O pequeno escriba se alimenta é com a satisfação dos seus leitores. Espero que procure o nosso blog para ler outros textos.
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