quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XII)



AGORA É GUERRA!
José Pedro Araújo

 Passaram-se dois dias sem novidades. O fracasso da minha iniciativa náutica me deixou abatido, mas o que mais tomava conta dos meus pensamentos era o meu inimigo ilhéu. Estava lutando contra alguém que não admitia a minha presença naquele lugar, nem consentia em estabelecer um diálogo comigo para acertarmos as bases da nossa convivência. E ainda por cima era manco, um deficiente! Lutar com alguém assim não me trazia nenhum orgulho, se é que algum tipo de disputa me fazia algum bem. E como tratar com isso? Como encontrar um meio de me safar desse odioso inimigo sem feri-lo ou sair ferido?

Uma coisa eu não podia negar: era engenhoso o meu adversário, e sabia muito sobre tática de guerra e de defesa. E provara isso ao não deixar qualquer rastro que me orientasse qual o caminho que tomou para chegar ao meu barraco, além das inúmeras armadilhas que montou para se proteger dos inimigos.

A manhã seguinte amanheceu com um sol tão bonito e luminoso que sai para procurar alguma coisa para comer. E me afastei muito do meu barraco, internando-me na mata. A uns oitocentos ou mil metros de distância da minha base vi uma coisa que me chamou a atenção: a vegetação rasteira estava pisada, e apresentava pequenas depressões no solo, do mesmo tipo que vira em volta da minha cabana. Segui em frente, acompanhando os vestígios, e obtive comprovação para as minhas suspeitas: o meu inimigo havia chegado ao meu barraco por aquele caminho.

Decidi seguir mais para ver até onde isso ia dá. Após andar por cerca de mais meia hora observei que chegava próximo ao outro lado da ilha. Já era até possível ouvir o barulho do mar ao quebrar na areia. Voltei com o objetivo firmado de organizar algo para surpreender o meu opositor.

Uma coisa que ainda não contei foi que, ao arrumar novamente a minha estante de livros, vi que faltavam alguns deles. Principalmente alguns títulos em inglês, além do meu Ensaio Sobre A Cegueira, do laureado escritor português José Saramago. Os outros, apesar de terem ficado pelo chão, estavam do mesmo jeito que eu os deixara, permaneciam intactos. Qual o interesse dele? Não saberia responder. Estou certo, contudo, que uma hora as coisas se aclararão.

Passei dias de calmaria. Isso quanto à minha guerra contra o inimigo invisível. Por que, quanto ao meu espírito, esse estava em conflito permanente. Travava uma luta comigo mesmo sobre a necessidade imperiosa que eu tinha de manter contato com os meus. Não estava em questão nem mesmo o meu emprego, a essas horas já posto em estado de vacância.

Resolvi fazer uma caminhada pela praia para imaginar um barco menos pesado, e mais ágil, que pudesse me levar para o meu destino já programado. E estava assim, caminhando lentamente pela areia, quando algo me chamou a atenção dentro da água. E ao me aproximar mais, vi alguns pedaços de algo que poderia ser um avião, ou um helicóptero, que nesse instante estavam sendo arremessados pelas ondas no se bate e rebate constante.  Entrei na água até a altura do peito e constatei serem, de fato, partes da fuselagem de uma aeronave. Talvez fizesse parte da mesma que se acidentou com o homem que havia enterrado dias atrás. Levei o que parecia ser a porta da aeronave para o meu barraco. Poderia me servir para algo.

Estava impressionado com uma maletinha que flutuava na água também e, logo que cheguei, tentei abri-la. Foi uma tarefa difícil. Possuía um sistema de fechadura com um mecanismo que pedia uma senha para abri-la. Nem tentei girar os pequenos rolamentos para tentar achar a combinação certa. Peguei um dos meus tacapes e arrebentei o mecanismo com um só golpe. Levantei a sua tampa e me certifiquei que só continha documentos. Nada de valor continha aquela simpática maletinha. Pelo menos para mim. De todo modo não me decepcionei. Não precisa de dinheiro ou coisa de valor ali naquele isolamento em que me achava. Mas, sabem de uma coisa: esperava, sim, encontrar algo de valor naquela pequena coisa. Fiz um gesto de desagrado, estava inda instável emocionalmente.

Meus nervos é que estavam para arrebentar numa crise de descontrole iminente. Indagava-me o porquê de a providência estar fazendo aquilo comigo? Estava me testando? Por que aquele afã de encontrar coisas valiosas se não podia comprar um ansiolítico para amainar o meu nervosismo sem igual? Fui caminhar para organizar as ideias. Era tudo o que poderia fazer por ali. E era uma benção, pois não precisava atravessar rua nenhuma, tomar carro nenhuma para caminhar tranquilamente pela praia. Tranquilamente, eu disse?

Fui à guerra no dia seguinte. Madrugada ainda viva, lá estava eu nas proximidades da casa do meu inimigo. Fiz o trajeto por dentro da mata, pelo mesmo caminho que ele fizera para chegar à minha choupana. E este dava em um dos lados da entrada da sua toca. Esperei até que o dia começasse a raiar e o surpreendi novamente quando saia para despejar fora os dejetos do seu penico. Foi o que vi, pois estava mais perto dele agora. Por sua vez, apesar da escuridão ainda ser muito forte, observei que o meu oponente era um homem já idoso, cabelos brancos, e que apoiava a metade da perna esquerda sobre um complemento de madeira. Tinha, portanto, uma perna de pau, e por isso caminhava claudicante e deixava marcas esquisitas no solo por onde passava. Não pude ver o seu rosto, pois estava de costas para mim. 

Apesar de estar perto o suficiente para atingi-lo com um tiro, sem a possibilidade de erro, não o fiz. Deixei que voltasse para o interior da sua gruta e, a seguir, o interpelei com um grito. Uma porta fechada bruscamente na entrada da gruta foi a sua resposta. E um silêncio pesado caiu sobre nós. Até mesmo os pássaros que começavam a cantar anunciando a alvorada, calaram-se como se previssem uma tempestade. Tempestade que não veio, diga-se. Pois somente eu falei, gritei, pedi nas duas línguas que conhecia para falar com o meu oponente, mas ele não me respondeu. Fiquei cerca de dez minutos tentando uma conversação que não aconteceu. Também não me dispus a entrar na sua toca. Com certeza estaria cheia de armadilhas, e eu corria sério risco de não sair da lá com as minhas próprias pernas. Fui-me embora. Havia perdido a oportunidade de resolver a questão e não sabia se teria outra chance igual.

Poderia ter pegado o homem desprevenido quando estava desatento e somente com um vaso nas mãos, recipiente útil para colher dejetos, mas, inofensivo em uma luta. E também era frágil, bem menor que eu, e me pareceu ser bem entrado nos anos, pois o seu corpo permanecia encurvado enquanto caminhava. Quanto à outra opção, não me arrependo de não ter usado: a minha arma de fogo não foi utilizada dessa vez.

Voltei desanimado para casa, mas com a alma aliviada por não ter recorrido à violência contra o meu pobre inimigo.

2 comentários:

  1. Mestre,
    vivemos numa terra e numa época triste em que pouca importância é dada aos livros.
    Um dos maiores orgulhos do nosso vate maior - o grande Da Costa e Silva - é que assaltaram um livraria no Recife apenas para surripiarem um livro de sua autoria.
    O nosso náufrago "diarista" deve ter ficado estarrecido de um ladrão lhe ter levado alguns livros. O Lula até se ufana de não os ter lido...
    A menos que a subtração tenha sido apenas para acender fogo com os alfarrábios...

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    1. Parece que os dois únicos habitantes da ilha primavam pela leitura como um dos seus passatempos. O que já depõe favoravelmente aos dois, convenhamos. Certa vez extraviei uma Bíblia e fiquei feliz com isso, torcendo para que quem a levou se dedicasse a sua leitura.

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