quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XVI)



OLHOS NOS OLHOS
José Pedro Araújo

A noite já ia alta quando o meu oriental começou a gemer baixinho, dando pinta de que abriria os olhos a qualquer momento. Mas ainda demorou um bom tempo para que eu chegasse à conclusão de que ele já havia voltado do seu desmaio. Ele não queria que eu soubesse disso. Desconfiei disso ao observar que a sua respiração já estava normalizada, e que até havia aproveitado a oportunidade para agasalhar-se melhor na sua enxerga se utilizando de um momento em que eu lhe virara as costas. Foi ai que resolvi armar para ele e simulei me afastar da cama para ir apanhar algo na estante, mas me virei rapidamente, e o flagrei procurando algo que esperava encontrar sob o seu travesseiro. Sabia o que ele procurava: tateava em busca de uma pequena adaga semi-curva que eu havia retirado de lá quando tentei arrumar o travesseiro para uma posição melhor.
O oriental agitou-se quando o surpreendi, e tentou se levantar, demonstrando todo o horror que sentia por me ver ali dentro da sua morada. Agitei as mãos pedindo-lhe calma e me aproximei procurando demonstrar toda a tranquilidade do mundo. Precisava passar essa ideia para ele. Mas não funcionou num primeiro momento. O individuo se agitou ante a minha aproximação e a fração da sua perna, ou o que sobrara dela, agora sem a muleta suporte, movimentou-se quando ele tentou se sentar na cama. Foi então que eu me lembrei de que lhe faltava a parte inferior dela, do joelho até o pé. 
Afastei-me e tentei acalmá-lo novamente gesticulando suavemente com as mãos. Nada. Então balbuciei algo em inglês, pedindo-lhe que se acalmasse. Tentei passar a ideia de que estava ali apenas para lhe ajudar. Parou e ficou a me olhar com aqueles olhinhos quase fechados e ainda surpresos. Observei também que ele entendeu algumas das palavras ditas por mim, mas não o conteúdo da frase completa. Repeti tudo, agora mais devagar. Somente aí consegui maior progresso.
As coisas pareciam tomar rumo. Então resolvi dizer-lhe que estava ali como amigo. Ele entendeu e pareceu acalmar-se um pouco. A sua testa estava repleta de suor, e debitei isso na conta do calor que fazia ali naquele instante. Falei-lhe que o havia encontrado desmaiado fora da gruta, e que o havia conduzido até a sua cama. Os olhos assustados do homem já estavam um pouco menos buliçosos, e foi ai que ele, quase soletrando, perguntou-me se eu era americano. Respondi-lhe que não, e vi que as suas pupilas acalmaram-se mais, diminuíram o diâmetro. Julguei mesmo ter visto nos seus lábios murchos o leve e quase imperceptível esboço de um sorriso. A animação se acentuou mais ainda quando afirmei ser brasileiro. Estava concluída a pacificação, apesar de identificar certa desconfiança ainda, e até receio, nos olhos do meu ex-inimigo. Tudo precisava de um tempo para normalizar completamente.
Ele não dormiu bem. Atacava-o uma febre alta e seguidas crises de tosse. Talvez tivesse contraído uma infecção respiratória ao permanecer muito tempo sob a chuva e em contato com a terra encharcada. E nesse caso, não sabia o que fazer. Não tinha nenhum antitérmico por ali e, depois, ele parecia estar naquela situação de semiconsciência, não atendendo mais aos meus chamados, nem respondendo às minhas indagações. Passei uma noite em claro.
Situação esdruxula, aquela. Aquele homem, que tentara me matar mais de uma vez, agora estava sob os meus cuidados, e eu estava realmente preocupado com a sua saúde. Somente madrugada alta ele conseguiu me pedir através de gestos que fosse procurar algo na estante próxima a outra que continha os livros. E depois, como não entendesse, começou a repetir: “medicine!”, “medicine!”.
Pedia que eu pegasse algum medicamento que guardava na estante. E ao me aproximar, vi um grande vidro com tampa, e dentro dele algumas cartelas de medicamento, daquelas que são usadas para proteger os comprimidos. Trouxe até ele o pote já sem a tampa, e logo ele pegou o que queria: uma pequena cartela com a inscrição em uma língua desconhecida para mim. Era o remédio que queria, pois ao retirar a drágea da embalagem, me devolveu o pote e fez o gesto de que queria um pouco de água.
Sol já aparecendo no nascente, o oriental voltou a dormir, agora mais calmamente. Com muito cuidado encostei a costa da mão esquerda na sua testa, e senti que a febre ainda estava alta, apesar de ter cedido um pouco. Mas a tosse o atormentava de quando em vez, com a mesma magnitude de antes.
Quando já estávamos no período em que o disco solar incandescente se posiciona quase a pino, ele acordou de vez. Mostrou-se mais tranquilo ao me avistar por ali. Seus olhos, semicerrados sempre, já não se mexiam intranquilos dentro do globo ocular. Mas ainda era possível ver aquele rápido olhar de desconfiança. Apenas rapidamente observava isso.
Conseguiu cozinhar algo parecido com uma sopa de peixe sem o arroz ou a farinha. Apenas pedaços de peixe com água e sal compunham aquele alimento por mim preparado. E ele comeu rapidamente não demonstrando qualquer reserva. No final, também comi o que sobrara na panela esfumaçada, e achei que havia ficado razoável. Estava ficando expert em fazer comida. Logo eu que nunca aprendera nem a fazer um café! A necessidade, meu amigo! A necessidade!
À tardinha a febre voltou novamente a ficar alta seguida por períodos de tosse violenta. Parecia que o comprimido que ele tomou começara a perder o efeito. Repeti a dose. Mas, à noite, não pude dormir novamente. Confesso que estava preocupado. Não confiava de todo no meu agora vizinho de gruta e também achava que a sua situação não era boa. Mas, em fim, entreguei tudo ao Criador e, já madrugada alta, adormeci profundamente. Quando acordei, quase o dia raiando, vi que o oriental estava mexendo-se na cama, e que respirava com dificuldades.  Fiz uma refeição frugal e preparei algo para ele também. Desta vez ele comeu com dificuldades. A respiração difícil dificultava a ingestão. Mas ele não evitava mais me olhar nos olhos. E o clima era muito mais amistoso do que jamais fora. 

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