ENFIM, O MEU INIMIGO
José Pedro Araújo
Sai em busca de esperança, então.
Era só isso o que me restava fazer. Precisava resgatar algumas coisas que
pudessem ter sobrado do desastre. A cabana havia sido desmontada e levada pela
ventania. Dela só restou o lugar e as lembranças da rotina que começara a
organizar ali. Só agora vejo que já dera início a um lar naquela rude cabana.
E isso me afligiu demais.Até isto havia perdido.
Desolado olhei em volta. A minha
rede de pesca - que sempre deixava atada a uma árvore para secar quando de
volta da pescaria – estava ali, intacta. Meu armário restara aos pedaços, não
servia mais para nada, posto ter ficado completamente triturado, como se
tivessem passado uma compactadora sobre ele. Lençóis, roupas, livros, alguns
utensílios, tudo fora levado pela ventania de volta ao mar. Só fiquei com a
roupa do corpo novamente. E mesmo esta não estava em boas condições, mercê da
surra que havia levado do furacão. Ou tufão; ou seja lá o que tenha sido. O
certo é que me achava em maus lençóis, mesmo sem lençol algum. Algumas latas
de conserva ficaram enterradas na lama, eram pesadas e pequenas para serem
arrastadas pela cruel ventania. E ainda poderiam ser aproveitadas.
Embrenhei-me na mata para ver se
podia contar com as árvores frutíferas, tão atacadas pelo temporal que eu
achava pouco provável que tivesse restado alguma com frutos. Sobraram poucos,
mas todos verdes, e embora judiados ainda permaneciam dependurados nos
galhos. Ao passo que, no chão, podia recolher um bocado deles. Voltei ao
começo. Alguns frutos, umas poucas latinhas de conserva e uma rede de pesca,
eram tudo o que me restava. Teria que pensar rapidamente. Construir um novo
barco, melhor dizendo, uma nova jangada, ou reconstruir o barraco, era coisas
que eu tinha urgência de fazer. O que começar primeiro? Era uma decisão a ser
tomada rapidamente. Sair fora ou ficar, eis os dois lados da questão.
O mato estava retorcido,
acamado, especialmente as árvores menores e a vegetação rasteira. As espécies
maiores, com raízes mais profundas, permaneceram quase todas de pé, salvo uma
ou outra mais isolada que fora arrancada com violência.
Caminhando “ao Deus dará” quase
cheguei ao outro lado da ilha, e quando dei por mim estava próximo à moradia do
meu inimigo desconhecido. O entorno da sua caverna estava completamente
devastado também, não sobrara quase nada de pé. Aproximei-me cautelosamente e
vi algo que me chamou a atenção. Alguma coisa soterrada por alguns galhos de árvore
amontoados no chão, já quase na entrada da dita caverna. Parecia o corpo de um
homem caído sob a galharia. Parecia, não, era um vivente deitado de bruços por
baixo dos ramos amontoados. E parecia morto, pois estava imóvel.
Aproximei-me e comecei a afastar
os ramos cuidadosamente, mas não sem antes observar se alguém estava me
espreitando da caverna que estava com a porta improvisada praticamente
arrancada, escancarada mesmo, presa apenas por alguns arames que lhe davam
sustentação. Não queria ser surpreendido com outra flechada. Não vi ninguém. Depois disso, conclui que o homem que estava sob os galhos era o
meu inimigo, mas, mesmo assim, continuei a remover tudo o que havia sobre o
corpo e logo constatei ser mesmo quem eu achava. Estava de borco, cara
parcialmente enfiada na lama, e imóvel. Entretanto, ao tocá-lo notei que o corpo
permanecia quente, não se achava enrijecido como acontece com quem já passou
desta para melhor.
Retirei os últimos galhos e desvirei o corpo
com o maior cuidado. Vi um rosto de feições orientais, apesar dos olhos se
acharem fechados, e uma longa barba branca a lhe chegar à altura do peito. A
cabeleira também se apresentava quase completamente branca, a exceção ficava por conta de
alguns poucos fios que ainda não haviam chegado a esse estágio. O meu inimigo
era um velho, e com idade avançadíssima! Senti um leve sentimento de culpa por
estar me digladiando com uma pessoa assim. Não tive tempo para mortificações,
contudo, ou auto admoestação. Naquele instante, o mais importante era que ele
respirava ainda. Com alguma dificuldade, mas respirava. E precisava de ajuda.
Não pensei duas vezes e corri até
a entrada da gruta. Surpreendi-me com o que estava lá dentro. Parecia uma casa
completamente arrumada, com vários móveis envelhecidos, estantes, cadeiras, um
antigo fogão à lenha, uma cama meio desarrumada a um canto, e até
mesmo uma cadeira para leitura se achava ali também. "O nosso homem desconhecido
- pensei com meus botões – parece já está por aqui há muito tempo". Mais tarde
pensaria nisso. Agora tinha algo mais importante a fazer.
Voltei rapidamente e conseguiu
tomar o homem desacordado nos braços. E ele me pareceu muito pequeno e magro,
tinha quase o peso de uma criança de doze anos. Sem dificuldades levei-o até a
sua cama, neste instante revirada, como se alguém tivesse repuxado os lençóis
que a cobria para melhor arrumá-los, mas deixara a tarefa inconclusa.
Depositei-o lá e ele permaneceu tão imóvel como quando o encontrei.
Rasguei um dos lençóis e fui até um velho filtro de barro que se mantinha intacto e apoiado à parede do fundo
da gruta, abri a torneira e uma água fria e limpa encharcou o tecido. Voltei
até onde o moribundo estava e comecei o processo de limpeza do seu rosto,
removendo toda sujeira que lhe impregnava até dar por concluída a limpeza.
Depois de algum tempo observei que havia um grande hematoma na sua cabeça, e
talvez tenha sido esta a razão de está ali completamente apagado. Comecei então
o processo de remoção das roupas enlameadas que ele vestia, e senti um asco muito forte ao
aspirar aquele odor de corpo que há muito tempo não via um pedação de sabão.
Isso e um cheiro eterno de coisa velha, quase embolorada. Mas continuei,
deixando-o somente com a roupa de baixo. Havia muitas cicatrizes espalhadas
pelo seu peito e braços, todas saradas com se já estivessem ali há séculos.
Voltei-me e vi que havia brasas
vivas no velho fogão. Procurei acender uma candeia de vidro que estava caída ao
chão, mas que ainda mantinha dentro o combustível necessário. Então a acendi
com pequeno esforço, soprando a brasa até que ela ficasse viva e emitisse uma
tênue faísca. Estava resolvida a questão do fogo, pensei. Mesmo que o meu
inimigo me pusesse para correr quando acordasse - e se acordasse - levaria comigo
uma tocha acesa.
Fiz tudo o que podia pelo homem.
Agora era aguardar a reação dele. E como demorasse a começar isso, passei horas
bisbilhotando tudo o que havia na caverna. E havia muitas coisas. Objetos
coletados nas areias da praia, deduzi. Tudo arremessado das embarcações que
trafegavam por aquelas águas. Ou por querer, posto que para eles mostrassem-se
inservíveis, ou por naufrágio do transporte marítimo a que pertenciam. Parei em
frente a uma estante de livros, e fiquei observando a quantidade deles. Em
todas as línguas, em todos os ramos da literatura. E lá estavam os que o
salafrário me roubara. Por que se jogam tantos livros ao mar, perguntei-me mais
uma vez?
Mais uma olhada para o alto e vi
despretensiosamente colocada sobre a última prateleira, a minha latinha-cofre.
Aquela em que guardava o dinheiro que havia encontrado nos bolsos do cadáver
encontrado nas areias. Apanhei-a e vi que o conteúdo ainda estava lá, como eu
havia deixado. Devolvi a latinha, contudo, ao local em que a encontrei. Depois
veria o que fazer com ela. No momento, de nada me serviria.
Aproveite que nada mais havia
para fazer e passei a preparar algo para comer. A despensa do meu inimigo, um
velho armário de metal, estava repleta de coisas. Latas de conserva, peixe
seco, frutos do mar, ovos de tartaruga, entre outras coisas, tudo em
quantidades que dava para uns bons dias de alimentação. Preparei alguns ovos,
usando um pouco de um óleo que eu julguei ser comestível. De fato era, senti
isso ao cheirar o recipiente para comprovar a minha suspeita. Depois de pronto,
comi tudo com muita ânsia. Somente agora me lembrava de que estivera o dia
inteiro sem me alimentar. E aqueles ovos quentinhos vieram a calhar. Pena que
não tivesse por ali um pedaço de pão seco, ou um pouco de farinha de qualquer
coisa para completar o banquete.
As frutas que encontrei dentro de
uma fruteira improvisada e colocada sobre a mesa tosca - em uma espécie de cuia de
madeira - eram do tipo que eu já conhecia, e que agora vou nominar. Aprendi os
nomes de cada uma muito tempo depois. A de polpa amarela e muito saborosa, era
chamada de Bael. A que possuía a casca semelhante a uma pele de cobra,
chamava-se Salak. E havia ainda aquela cuja casca espessa e dura se
parecia com a de um bacuri, conhecida como Santol. Todas muito saborosas,
inigualáveis. As outras eram nossas velhas conhecidas, como já afirmei. A
carambola e a fruta-pão. A fruta pão, muito abundante, passei a cozinhar com
frequência. Adicionando-se um pouco de sal na água, tinha gosto de macaxeira.
Passou a ser a base da minha alimentação.
Bem alimentado, voltei a atenção
para o meu moribundo inimigo ainda inerte.
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