quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XV)




ENFIM, O MEU INIMIGO
José Pedro Araújo
Sai em busca de esperança, então. Era só isso o que me restava fazer. Precisava resgatar algumas coisas que pudessem ter sobrado do desastre. A cabana havia sido desmontada e levada pela ventania. Dela só restou o lugar e as lembranças da rotina que começara a organizar ali. Só agora vejo que já dera início a um lar naquela rude cabana. E isso me afligiu demais.Até isto havia perdido.
Desolado olhei em volta. A minha rede de pesca - que sempre deixava atada a uma árvore para secar quando de volta da pescaria – estava ali, intacta. Meu armário restara aos pedaços, não servia mais para nada, posto ter ficado completamente triturado, como se tivessem passado uma compactadora sobre ele. Lençóis, roupas, livros, alguns utensílios, tudo fora levado pela ventania de volta ao mar. Só fiquei com a roupa do corpo novamente. E mesmo esta não estava em boas condições, mercê da surra que havia levado do furacão. Ou tufão; ou seja lá o que tenha sido. O certo é que me achava em maus lençóis, mesmo sem lençol algum. Algumas latas de conserva ficaram enterradas na lama, eram pesadas e pequenas para serem arrastadas pela cruel ventania. E ainda poderiam ser aproveitadas.
Embrenhei-me na mata para ver se podia contar com as árvores frutíferas, tão atacadas pelo temporal que eu achava pouco provável que tivesse restado alguma com frutos. Sobraram poucos, mas todos verdes, e embora judiados ainda permaneciam dependurados nos galhos. Ao passo que, no chão, podia recolher um bocado deles. Voltei ao começo. Alguns frutos, umas poucas latinhas de conserva e uma rede de pesca, eram tudo o que me restava. Teria que pensar rapidamente. Construir um novo barco, melhor dizendo, uma nova jangada, ou reconstruir o barraco, era coisas que eu tinha urgência de fazer. O que começar primeiro? Era uma decisão a ser tomada rapidamente. Sair fora ou ficar, eis os dois lados da questão.
O mato estava retorcido, acamado, especialmente as árvores menores e a vegetação rasteira. As espécies maiores, com raízes mais profundas, permaneceram quase todas de pé, salvo uma ou outra mais isolada que fora arrancada com violência.
Caminhando “ao Deus dará” quase cheguei ao outro lado da ilha, e quando dei por mim estava próximo à moradia do meu inimigo desconhecido. O entorno da sua caverna estava completamente devastado também, não sobrara quase nada de pé. Aproximei-me cautelosamente e vi algo que me chamou a atenção. Alguma coisa soterrada por alguns galhos de árvore amontoados no chão, já quase na entrada da dita caverna. Parecia o corpo de um homem caído sob a galharia. Parecia, não, era um vivente deitado de bruços por baixo dos ramos amontoados. E parecia morto, pois estava imóvel.
Aproximei-me e comecei a afastar os ramos cuidadosamente, mas não sem antes observar se alguém estava me espreitando da caverna que estava com a porta improvisada praticamente arrancada, escancarada mesmo, presa apenas por alguns arames que lhe davam sustentação. Não queria ser surpreendido com outra flechada. Não vi ninguém. Depois disso, conclui que o homem que estava sob os galhos era o meu inimigo, mas, mesmo assim, continuei a remover tudo o que havia sobre o corpo e logo constatei ser mesmo quem eu achava. Estava de borco, cara parcialmente enfiada na lama, e imóvel. Entretanto, ao tocá-lo notei que o corpo permanecia quente, não se achava enrijecido como acontece com quem já passou desta para melhor.
 Retirei os últimos galhos e desvirei o corpo com o maior cuidado. Vi um rosto de feições orientais, apesar dos olhos se acharem fechados, e uma longa barba branca a lhe chegar à altura do peito. A cabeleira também se apresentava quase completamente branca, a exceção ficava por conta de alguns poucos fios que ainda não haviam chegado a esse estágio. O meu inimigo era um velho, e com idade avançadíssima! Senti um leve sentimento de culpa por estar me digladiando com uma pessoa assim. Não tive tempo para mortificações, contudo, ou auto admoestação. Naquele instante, o mais importante era que ele respirava ainda. Com alguma dificuldade, mas respirava. E precisava de ajuda.
Não pensei duas vezes e corri até a entrada da gruta. Surpreendi-me com o que estava lá dentro. Parecia uma casa completamente arrumada, com vários móveis envelhecidos, estantes, cadeiras, um antigo fogão à lenha, uma cama meio desarrumada a um canto, e até mesmo uma cadeira para leitura se achava ali também. "O nosso homem desconhecido - pensei com meus botões – parece já está por aqui há muito tempo". Mais tarde pensaria nisso. Agora tinha algo mais importante a fazer.
Voltei rapidamente e conseguiu tomar o homem desacordado nos braços. E ele me pareceu muito pequeno e magro, tinha quase o peso de uma criança de doze anos. Sem dificuldades levei-o até a sua cama, neste instante revirada, como se alguém tivesse repuxado os lençóis que a cobria para melhor arrumá-los, mas deixara a tarefa inconclusa. Depositei-o lá e ele permaneceu tão imóvel como quando o encontrei.
Rasguei um dos lençóis e fui até um velho filtro de barro que se mantinha intacto e apoiado à parede do fundo da gruta, abri a torneira e uma água fria e limpa encharcou o tecido. Voltei até onde o moribundo estava e comecei o processo de limpeza do seu rosto, removendo toda sujeira que lhe impregnava até dar por concluída a limpeza. Depois de algum tempo observei que havia um grande hematoma na sua cabeça, e talvez tenha sido esta a razão de está ali completamente apagado. Comecei então o processo de remoção das roupas enlameadas que ele vestia, e senti um asco muito forte ao aspirar aquele odor de corpo que há muito tempo não via um pedação de sabão. Isso e um cheiro eterno de coisa velha, quase embolorada. Mas continuei, deixando-o somente com a roupa de baixo. Havia muitas cicatrizes espalhadas pelo seu peito e braços, todas saradas com se já estivessem ali há séculos.
Voltei-me e vi que havia brasas vivas no velho fogão. Procurei acender uma candeia de vidro que estava caída ao chão, mas que ainda mantinha dentro o combustível necessário. Então a acendi com pequeno esforço, soprando a brasa até que ela ficasse viva e emitisse uma tênue faísca. Estava resolvida a questão do fogo, pensei. Mesmo que o meu inimigo me pusesse para correr quando acordasse - e se acordasse - levaria comigo uma tocha acesa.
Fiz tudo o que podia pelo homem. Agora era aguardar a reação dele. E como demorasse a começar isso, passei horas bisbilhotando tudo o que havia na caverna. E havia muitas coisas. Objetos coletados nas areias da praia, deduzi. Tudo arremessado das embarcações que trafegavam por aquelas águas. Ou por querer, posto que para eles mostrassem-se inservíveis, ou por naufrágio do transporte marítimo a que pertenciam. Parei em frente a uma estante de livros, e fiquei observando a quantidade deles. Em todas as línguas, em todos os ramos da literatura. E lá estavam os que o salafrário me roubara. Por que se jogam tantos livros ao mar, perguntei-me mais uma vez?
Mais uma olhada para o alto e vi despretensiosamente colocada sobre a última prateleira, a minha latinha-cofre. Aquela em que guardava o dinheiro que havia encontrado nos bolsos do cadáver encontrado nas areias. Apanhei-a e vi que o conteúdo ainda estava lá, como eu havia deixado. Devolvi a latinha, contudo, ao local em que a encontrei. Depois veria o que fazer com ela. No momento, de nada me serviria.
Aproveite que nada mais havia para fazer e passei a preparar algo para comer. A despensa do meu inimigo, um velho armário de metal, estava repleta de coisas. Latas de conserva, peixe seco, frutos do mar, ovos de tartaruga, entre outras coisas, tudo em quantidades que dava para uns bons dias de alimentação. Preparei alguns ovos, usando um pouco de um óleo que eu julguei ser comestível. De fato era, senti isso ao cheirar o recipiente para comprovar a minha suspeita. Depois de pronto, comi tudo com muita ânsia. Somente agora me lembrava de que estivera o dia inteiro sem me alimentar. E aqueles ovos quentinhos vieram a calhar. Pena que não tivesse por ali um pedaço de pão seco, ou um pouco de farinha de qualquer coisa para completar o banquete.
As frutas que encontrei dentro de uma fruteira improvisada e colocada sobre a mesa tosca - em uma espécie de cuia de madeira - eram do tipo que eu já conhecia, e que agora vou nominar. Aprendi os nomes de cada uma muito tempo depois. A de polpa amarela e muito saborosa, era chamada de Bael. A que possuía a casca semelhante a uma pele de cobra, chamava-se Salak. E havia ainda aquela cuja casca espessa e dura se parecia com a de um bacuri, conhecida como Santol. Todas muito saborosas, inigualáveis. As outras eram nossas velhas conhecidas, como já afirmei. A carambola e a fruta-pão. A fruta pão, muito abundante, passei a cozinhar com frequência. Adicionando-se um pouco de sal na água, tinha gosto de macaxeira. Passou a ser a base da minha alimentação.
Bem alimentado, voltei a atenção para o meu moribundo inimigo ainda inerte.

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