EXÉQUIAS PARA UM
HERÓI JAPONÊS
José Pedro Araújo
Já noite alta, tempo em que havia
me encostado para também dormir, notei que o doente me chamava; mais me acenava
do que propriamente me dirigia palavras. E então, ao achegar-me a ele, apontou
para a prateleira cheia de livros. Só entendi o que ele pedia, quando, com
imensas dificuldades, soprou a palavra “diário”.
Levantei-me a passei a procurar
um livro com essa designação estampada na lombada. Voltei-me para ele que, num
demorado e sofrido esforço, repetiu a palavra “diário”, e depois “meu diário”.
Compreendi tudo. Ele devia ter escrito seu próprio diário e agora me pedia que
o pegasse para ele. Depois desse esclarecimento eu encontrei um velho caderno
capa dura, muito amarelado, mas ainda em bom estado. Abri para confirma o
resultado da minha procura, e vi que estava escrito em japonês, portanto,
ilegível para mim. Virei algumas páginas com um sentimento de revolta a toldar
o meu espírito, e logo a frente, três páginas depois da primeira, observei um
título escrito na língua de Shakespeare: “Diário de Um Náufrago”. E logo
abaixo, e nas dezenas de páginas subsequentes, um texto bem coordenado e
alinhado, escrito meticulosamente com uma espécie de grafite. Apresentava-se
bem legível, de fácil leitura mesmo.
Voltei com o achado, mas já encontrei
o meu amigo japonês imerso em sono profundo. Sentei-me junto a ele, achegando-me
à claridade da lamparina que mantinha acesa todo o tempo para iluminar o
ambiente. Pensei em aproveitar o momento que ele dormia para dar uma olhada no
material que tinha em mãos. Mas, mal havia aberto o diário, algo me chamou a
atenção: não ouvia mais o som da sua respiração ruidosa de outros tempos. E
isso me fez me achegar mais perto dele para observá-lo. Estava inerte. Parado. Semblante
sereno. Apanhei o lampião e levei-o para perto do seu rosto e notei que ele já
não mais estava comigo. Pelo menos em espírito. Desesperei-me. Chorei pela
segunda vez durante o período em que me encontro aqui. Meu amigo partira.
Estava novamente sozinho e abandonado naquela imensidão de ambientes
desconhecidos e isolados.
Passei o resto da noite velando o
meu defunto oriental. Preparei o corpo, lavei-o, cobri com lençol branco, e
sobre o seu rosto, coloquei um lenço branco que encontrei entre suas coisas, ou
um pequeno pedaço de pano branco, não sei ao certo, e mantive a vigília pelo
restante da noite. Tentei adotar um ritual parecido com o que se fazia na sua
pátria. Isso li certa vez em um livro sobre assuntos gerais, coisas que pensei
nunca precisar saber. Como não tinha um paletó preto para usar na ocasião,
vesti-me com uma camisa escura e de tecido grosso que encontrei junto com
algumas outras roupas, e mesmo com a minha calça suja e rasgada em diversos pontos,
achei-me covenientemente apropriado para a ocasião, diante das minhas
carências.
Tive ímpetos de não me separar
dele, pois temia aquela solidão avassaladora que viria com a ausência daquele
amigo de tão poucas horas. Mas um odor característico dos corpos humanos em
decomposição alertou-me para o que estava por vir. E foi só ai que eu parti
para a última etapa do funeral do meu amigo japonês: preparei uma fogueira,
fora da gruta, para a cremação. Conhecia o hábito dos japoneses nesse campo também.
E sabia que eles davam preferencia à cremação dos corpos dos falecidos, apesar
de realizarem sepultamentos também.
Envolto e corpo com o lençol
branco, levei-o para fora e o depositei sobre uma grade de metal que encontrei
por ali, e, com muito custo, coloquei-o sobre uma pilha de madeira seca que
apanhei dentro da caverna. Precisava dar início à etapa final, mesmo achando
aquilo tudo muito estranho. E então acendi a pira. O fogo não demorou a se
alastrar na lenha seca, enquanto eu me retirei para o interior da gruta. Não
tive condições de ficar lá fora. Mas de dentro ouvia o pipocar das coisas que
entravam em combustão. E também não suportei isto. Tapei os ouvidos e cai em
prostração profunda.
Não sei quanto tempo levou até a
consumação daquele ato. Não tinha como saber. Estava em profundo transe, e o
estado de catatonia em que me encontrava não me permitiu saber. Só sei que já
era noite quando sai da gruta. A escuridão cobria tudo com seu manto negro que
precisei me socorrer da lamparina para clarear o ambiente. Tomei um susto. O
fogo havia se apagado após queimar a lenha, mas o processo de cremação estava
incompleto. Outro choque. Muito mais duro do que tudo o que havia enfrentado até
ali. Mas não vou aqui transportar para os leitores a cena macabra que fui
obrigado a presenciar e nem muito menos relatar com minúcias o trabalho que
tive para concluir aquela operação fúnebre. Esse sentimento, aquelas imagens,
vou guardar para mim. E sei que será difícil me livrar daquela visão mórbida
enquanto vida eu tiver.
A última etapa do processo foi a
de juntar as cinzas e guardar em um vidro com tampa rosqueada e levar tudo para
o interior da caverna. Faria companhia a mim enquanto vivesse por ali. Era, em última
análise, o meu amigo japonês que se achava dentro daquele pequeno recipiente.
O dia seguinte foi gasto para
reordenar as ideias. Senti um vazio enorme na minha vida já tão complicada, e
caminhei por horas pela praia. Agora estava completamente sozinho naquela ilha
desconhecida e deserta. Não tinha mais dúvidas sobre isto. E isso não me
alegrou. Ao contrário, trouxe-me uma tremenda solidão. Nem mais um inimigo a
incitar as minhas emoções eu possuía. Agora era a pasmaceira total. O
isolamento eterno.
A fome me fez voltar para a
gruta. Já devia estar com muitas horas sem comer nada, somente sorvendo
infelicidade e desesperança.
Entrei pela caverna adentro e já me
dirigia para o velho fogão à lenha quando me deparei com o caderno-diário
jogado sobre a cama. Desisti de preparar algo no fogão, apanhei algumas frutas
e, com o caderno em mãos, fui para fora para aproveitar a claridade do dia.
Sentei-me sobre uma espécie de banco de madeira construído pelo meu amigo, com
certeza para contemplar a passagem do tempo que andava lento por ali, e me
aprontei para ler o que estava dito naquele diário maçudo.
Incrível como ele possuía uma
letra rebuscada, e um tino de organização próprio dos da sua raça milenar.
Qualquer pessoa teria dificuldades para escrever naquele caderno de folhas
amareladas e enrugadas. Não ele. Sua escrita era firme e linear, redonda e
desenhada como uma letra feminina, e não oferecia quaisquer dificuldades para a
leitura. De outro modo, possuía uma capacidade enorme de organizar também as
ideias e transportar tudo para o papel. Recostei-me à parede de pedra e passei
a ler com interesse até mesmo as vírgulas deixadas pelo meu amigo defunto.
Ao abrir melhor o caderno para
facilitar a leitura, senti na ponta dos dedos que alguma coisa fazia volume,
uma elevação. Abri na página e vi que havia um lápis quase completamente gasto,
com uma borracha também já no fim, atado por uma linha de pesca e amarrado no
aramado que encadernava aquele volume. Certamente, fora com aquele grafite que
o meu amigo oriental escreveu aquele volumoso texto. Ou talvez aquele lápis tenha
sido um dos que ele utilizou para registrar tudo o que queria naquele caderno.
Passei a ler imediatamente o que lá continha.
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