quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XVII)




UMA ATITUDE E UMA CONFISSÃO SURPREENDENTES 

José Pedro Araújo

Entremeando os momentos de profundo abatimento em que o meu paciente oriental ficava naquele dia, havia outros em que a energia lhe voltava ao corpo alquebrado. E nessas horas até conseguíamos dialogar um pouco. Foi quando notei que ele era até fluente no inglês, apesar de demorar sempre para pronunciar algumas palavras. Debitei isso na conta dos anos que deve ter passado sem conversar com ninguém. Depois, observei que ele tinha dificuldades para ouvir, mas o seu estado de surdez, apesar de acentuado, ainda não era total, algo que o impedisse de ouvir quando seu interlocutor falava mais alto.
 Ainda na parte da tarde, quando lhe disse que ia voltar para o meu barraco, ficou nervoso e me pediu que não fosse. Isso depois de ponderar que o meu barraco devia ter sido levado pelo furacão. Fato que confirmei. Então ele me pediu que ficasse, reforçando com um “por favor” quase ininteligível. E ciente da minha decisão, voltou a tirar um leve cochilo.  
Acho que cochilei ao pé da cama, pois estremeci quando senti a mão gelado do oriental pousar sobre a minha, e olhei rapidamente pare ele um pouco assustado. Mas logo mudei o que sentia ao verificar que o moribundo respirava com dificuldade, o peito arfando como se ele fizesse um brutal esforço para apanhar o ar pelas narinas e pela boca entreaberta. Foi quando, em voz baixa, desculpou-se pelos males que me havia causado.  Retirando o que lhe sobrava das forças vitais, em poucas palavras disse-me se sentir muito envergonhado pelo que me havia feito. Julgara-me – arfou debilmente - um inimigo americano que viera concluir o que havia deixado por terminar no dia em que abatera o seu avião.  Observei mesmo algumas lágrimas lhe escorrer pela face e depois se perderem na profusão de pelos brancos do seu bigode e da crescida barba.
Foi em um desses momentos em que travávamos um curto diálogo, que ele me confidenciou ser de origem japonesa. Disse-me ainda que estava na ilha há muito tempo, tempo que não saberia precisar com exatidão, apesar de ter vaga ideia da quantidade de anos. Declarou ter pertencido às forças armadas japonesas, desempenhando a função de piloto de caça da marinha imperial. De outra vez, nos breves intervalos entre um sono e outro, falou-me que seu avião havia sido abatido por um piloto de caça inimigo, talvez um americano, ou até mesmo um inglês. E que, como o seu avião caiu muito próximo da ilha, conseguira se salvar apesar das machucaduras, e desde então se escondia de seus inimigos, pois acreditava que seu país ainda estava em guerra contra aquelas nações.
Foi uma surpresa sem tamanho para mim. Achei inacreditável mesmo. Encontrar àquela altura da vida, depois de mais de meio século que a guerra havia terminado, alguém que ainda se escondesse por acreditar que a guerra ainda estava em curso era algo que fugia de tudo o que já havia visto ou ouvido. Eu nem era nascido ainda quando fora assinado o armistício que pôs fim aquela maldita guerra, e aquele pobre homem ali, perdido no meio daquele arquipélago, sempre as voltas com inimigos fictícios, com fantasmas saídos da sua cansada mente. Mas tudo era possível por ali. As coisas que me haviam acontecido nesses últimos tempos me forçavam a crer em tudo agora. Até mesmo em Mula-Sem-Cabeça, Saci Pererê, Sereias e Ninfas. Tudo mesmo. Só estava começando a duvidar se algum dia sairia daquela ilha, a julgar pelo tempo que o agora amigo oriental estava por ali.
Foi então a minha vez de lhe contar que aquela guerra já acabara há mais de cinquenta anos. E que, hoje, americanos e japoneses são grandes amigos e parceiros comerciais de grande vulto. Mais que isso: que os dois países se encontravam em posição de destaque no mundo moderno. Informei-lhe ainda que o Japão passara longo tempo sem suas forças de segurança, só voltando a contar com elas após a desocupação do seu território pelas forças armadas americanas poucos anos antes. Foi então que o vi chorar copiosamente, enquanto balbuciava a pergunta que mais lhe afligia: o seu país havia de fato perdido a guerra?
Acredito que ele já sabia a resposta. Perguntara por perguntar. Confirmei com um aceno, mas lhe disse que seu país já havia se recuperado integralmente dos efeitos daquela guerra. Pelo menos no que tange à parte estrutural, desenvolvimentista e econômica.  Que hoje o Japão era uma das principais nações do planeta, e o povo vivia um período de grande felicidade e prosperidade.
Após alguns minutos em que caiu em profunda prostração, indagou-me sobre o seu imperador, o Imperador Showa, como chamava Hirohito. Disse-lhe que ele continuou a reinar sobre o Japão, mas que já havia falecido. Em seu lugar, conclui, subira ao trono o seu filho, Akihito. Aquiesceu, mas queria ouvir mais de mim.
Passei horas contando-lhe como andava o mundo lá fora. E ele, após curtos períodos de consciência, novamente dormia, para depois acordar e me inquiri sobre tudo o que mais lhe interessava: o Japão, a guerra, o mundo, enfim. Calculou que estivesse agora com cerca de oitenta e três anos, a maior parte deles vividos naquela ilha perdida no fim mundo.
Estávamos assim, mas uma coisa me preocupava. A saúde do agora meu senhorio mostrava estar em processo acelerado de piora. Ele já não conseguia se firmar nos cotovelos para me encarar, do mesmo modo que a sua respiração apresentava-se mais ofegante, e ele agora sorvia o ar com brutal e crescente dificuldade. Mas já não via mais em seus olhos a chama da desconfiança, ou mesmo da intranquilidade.
Nesse segundo dia, já com a tarde se encaminhando para o fim, ouvi barulho de motores. Parecia o som de helicópteros. Ensaiei uma saída brusca para fora da gruta, mas o moribundo, que pensei estar imerso em sono profundo, segurou a minha mão com desusada energia e com voz quase imperativa pediu-me que ficasse. Ainda tentei resistir à ordem, mas ele segurou-me com as duas mãos e pediu-me novamente que não me fosse. Em seu rosto vi estampado um pavor tão velho quanto a sua estada por ali. E então quedei, sabendo que estava jogando fora, talvez, a última chance de sair da ilha.
 Tinha plena consciência de que aqueles helicópteros buscavam sobreviventes do furacão nas ilhas mais afastadas. E que, seguramente, não voltariam mais para procurar por ali. Mas não resisti ao que vi no rosto do oriental. Então, notei que ele ficou aliviado com a minha decisão, voltando a reclinar a cabeça no travesseiro de palha.
Já não conversávamos muito. Uma fraqueza avassaladora tomou conta do meu paciente, e até mesmo os acessos tosse, antes tão fortes e barulhentos, reduziram de intensidade, e agora se restringiam a um pigarro fraco e sem resultados.

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