sexta-feira, 17 de julho de 2015

Caçador de Palavras

by Vitrine Mania
José Pedro Araújo


Na tentativa de passar para o papel o texto de uma crônica que me martela o juízo já há muitos dias, deparo-me com um sem número de dificuldades que me impedem de registrar o teor que eu imaginei. As palavras teimam em não fluir da forma que vieram em minha mente momentos atrás, escondem-se, ficam indisponíveis; tento novamente retomar o fio da meada, agora no sentido inverso, nada acontece. Diligencio novamente, e dessa vez consigo captar algumas palavras soltas que não tem a mesma clareza que eu gostaria, para que o texto pudesse fluir com leveza. Tudo bem, depois procurarei substituí-las por outras de fonética mais agradável. Volto à caça de novas palavras para terminar o meu raciocínio e me deparo novamente com o mesmo problema do inicio: palavras escapam sorrateiramente, escondem-se nos desvãos da memória, submergem no profundo lago do esquecimento, como se tivessem medo de aflorar, vir à tona. Insisto. Tento novamente apanhar aquelas mais conhecidas, de uso quase popular e vou montando vagarosamente o meu texto que, mesmo não possuindo ainda a placidez e a aparência simpática que eu gostaria que ele tivesse, já consigo me satisfazer com o inicio da forma que gostaria de lhe dar. Está mais palatável, tem mais sonoridade ao ser pronunciado, até já começa a agradar aos meus ouvidos. E assim vou avançando vagarosamente rumo ao meu texto alvo, apanhando as palavras com muito cuidado, com pinças de extrema maciez. Reorganizo as frases. É verdade que algumas delas ainda são apanhadas com dificuldade, porém de forma indolor e sem arranhões. Armo-lhe armadilhas em lugares da memória por onde sei que fatalmente irão passar e, em seguida, zás: capturo uma até com certa facilidade. Ajusto-a ao texto, no lugar que mais me parece o ideal. Ela concorda comigo que ali estará muito mais confortável do que estava anteriormente quando se achava vagando sem sentido no meu cérebro. Agora o texto está perdendo a aridez e dele brota uma sonoridade de cântico lírico; a sua rigidez foi substituída pelo sentido retilíneo, com caminhar amoldado e congruente. Volto a procurar novas palavras no meu subconsciente e vou encontrando no caminho algumas outras que até já se apresentam como voluntárias. É bem verdade que a maioria ainda se esconde, foge rapidamente quando quase me estou assenhorando delas. Insisto mais, vou à caça sem esmorecimento e pego uma antes que ela vire a esquina de um local escuro e de difícil acesso, uma reentrância para onde vão as menos utilizadas durante toda a vida. Opa! Ela esperneia e tenta se soltar. Seguro-a com firmeza, mas sem machucá-la; preciso dela bem disposta, saudável, para compor o meu texto. Tenho que achar a posição correta para ela antes que me escape e fuja para sempre em meio ao esquecimento. Terminada a tarefa, passo a procurar outras desertoras que também me escapam rapidamente e por um bom tempo não consigo encontrá-las. Sem problemas. Volto mais tarde para tentar achá-las, e desta vez tenho mais sorte: uma linda palavra que estava descansando tranquilamente em um belo e verde gramado, à beira de um laguinho sonolento e muito azul, não ofereceu resistência e concorda em me seguir com muita docilidade. Disse-me até que estava muito satisfeita em compor comigo e que não o fizera antes porque não fora procurada. E assim vou seguindo até encontrar um pequeno grupo de palavras que, apesar de belas, sentiam-se rejeitadas, e por isso, desanimadas, reclamando que quase não são mais procuradas, que foram trocadas por outras mais na moda. Uso-as e o texto fica super belo, robusto e, surpresa: moderno.  Estou ganhando velocidade no meu mister, já discorro com fluidez. Como capturador de palavras, capitão-do-mato da escrita, já posso dizer que estou bem melhor, quase me sinto um nobre e excelente caçador. Prossigo animado e dou com um grupo robusto, populoso, que pulam à minha frente, oferecem-se sem nenhum pudor, pedem insistentemente para que eu as carregue comigo. São barulhentas e de sonoridade escrachada; são mesmo volúveis, posso sentir. Estaco indeciso. Indagam-me porque tenho tantas dúvidas em levá-las; não entendem a minha indecisão, se são as mais procuradas na atualidade; elas povoam as crônicas, as poesias, os textos políticos e até mesmo os de auto-ajuda. Tentado, mas resoluto, sigo em frente sem olhar para trás, dobrando a primeira esquina e tomando um atalho para voltar. Já quase chegando ao começo da trilha me deparo com outro numeroso e barulhento grupo de palavras. Parece-se com um mercado persa, pela movimentação e pelo barulho que observo. Aproximo-me do ruidoso grupo e, qual não é a minha surpresa: trata-se de um ajuntamento especial formado por palavras mutiladas, algumas tão amputadas que permaneceram somente com as suas iniciais. Agarro a mais próxima e lhe pergunto o porquê de tudo aquilo. Qual a razão de estarem tão alegres, se, afinal, encontram-se naquela situação. Ela me olha com um sorriso de deboche nos lábios, como a me perguntar de que planeta eu sai. Mas, com um muxoxo de resignação, me responde que estão assim para poderem ser utilizadas pela nova tecnologia utilizada nas comunicações, uma tal de internet. Desiludido, procuro a saída e resolvo parar por ali. Estou me considerando o mais arcaico dos homens por não achar beleza nas tais palavras amputadas. Quero e devo continuar me utilizando das palavras inteiras, não despedaçadas. Sigo na companhia dos caretas, dos retrógrados, dos pouco-lidos. Somos anônimos, mas somos felizes em poder brincar com a sonoridade límpida das palavras inteiras, mesmo daquelas pouco usadas que, apesar de esquecidas, continuam tão belas quanto antes.

2 comentários:

  1. Chico Acoram Araújo17 de julho de 2015 às 19:00

    Dr. Araújo, gostei muito do texto; é diferente, é poético e cheio de metáforas. Você brincou com as palavras. Parabéns.

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    1. Resultado de um momento de total falta de criatividade, meu amigo. Dai comecei a brincar com as palavras, e deu nisso.

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