quarta-feira, 17 de maio de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XXX)




Missão cumprida. Cheguei!

(José Pedro Araújo)

O vento ruidoso, e a chuva que lhe acompanhava, desapareceu assim como haviam chegado. Depois disso, somente o quebrar sereno de pequenas maretas sobre as areias brancas e brilhantes daquela prainha estreita, mas salvadora, apresentava-se faceiramente para mim. Resolvi permanecer o resto do dia por ali mesmo e tentar recuperar a vela da minha jangada. Mas logo vi que seria uma tarefa impossível. Em frangalhos, o que restava dela não servia para mais nada. Pelo menos para compor uma vela inteira. Tornaram-se dois farrapos desfiados. Conclui que o restante da minha viagem teria que ser feito a remo mesmo, no muque. Foi ai que senti que meus braços estavam doloridos demais pelo esforço excessivo que havia feito com o remo para me manter longe do paredão. E quedei desanimado sobre a areia fofa. Mas, demorei pouco tempo assim.
Algum tempo depois abri o baú da minha jangada, e lá de dentro retirei uma lata fechada com um pouco da ração que eu levava comigo. Tudo que eu havia colocado dentro dele encontrava-se molhado, e não fosse algumas latas com tampa que havia inserido lá, teria perdido parte do que trazia. Comi umas tiras de peixe seco e algumas frutas e me dei por satisfeito. Precisava economizar o meu farnel, pois não sabia quanto tempo ficaria por ali. Comi, descansei à sombra de uma árvore, e meditei, enquanto a jangadinha permanecia fundeada naquele píer improvisado para onde eu a arrastara.
À tarde, já mais descansado, sai a passear pela ilha. Era pequena e somente possuía aquela minúscula praia, pelo menos daquele lado. O resto era mata fechada. Vi algumas árvores frutíferas que já conhecia, mas água que era bom, não encontrei. Deste modo, tinha também que economizar o pouco do líquido precioso que me restava nas garrafas. Nesse momento, decidi que não deveria ficar naquela ilhota sem recursos. No que pese o receio que eu tinha de encontrar novo temporal pela frente, mesmo assim intui que ali não deveria permanecer mais do que aquele restante de dia. Não haveria como sobreviver sem água.
Dormi sobre uma espécie de colchão de areia que fiz distante da linha de maré. Felizmente havia trazido os dois velhos lençóis do meu amigo japonês, e o sol que fez no restante do dia foi suficiente para deixá-los enxutos, após estendê-los sobre umas ramagens baixas. Passei uma noite como se estivesse acampado. Dormia em alguns momentos, mas em outros um medo do que teria ainda de enfrentar me assaltava e me levava a ficar de olhos apenas fechados por bons períodos. Noite longa. Mas, como depois de uma noite de desassossego vem sempre outro dia – que poderia ser pior ou melhor - o que me estava destinado chegou finalmente. Lindo, vento ciciante, e nesse momento uma esperança brotou intensa, calmante, no meu ser. Acreditei que daria. Parecia até que todas as forças estavam a meu favor nesse dia. Foi o que senti. Foi o que precisei intuir. E foi o que me trouxe esperança.
Mastiguei alguma coisa para aplacar a fome que me roía o estomago e depois empurrei a jangada para a água. Precisava aproveitar aquele momento de mar calmo para me distanciar dali e retomar a minha rota para o leste. Mas, sobretudo, tinha que aproveitar bem aquele momento de profundo otimismo que se apoderara de mim.
Remei por quase três horas ininterruptamente e só consegui imprimir uma velocidade que não deveria ter a terça parte da que a vela fazia com que o barquinho navegasse. Mas me dei por satisfeito, pois observei que uma grande calmaria havia chegado e transformado o mar em uma superfície lisa e plana, própria para o uso do remo. A vela, casa ainda a possuísse, não se mostraria tão eficiente então. Remava e descansava. E tornava a remar, pois precisava aproveitar o tempo bom para ganhar terreno. Ou melhor, ganhar distância. E foi assim que avistei uma ilha imensa à minha frente. A visão daquela fração de terra que sabia ser o meu destino – algo pelo menos me dizia que sim – me fez redobrar o ânimo e não demorei mais do que meia hora para aportar em uma praia larga e de ondas baixinhas e sossegadas.
Pulei na areia e arrastei a jangada para fora da água com uma energia que não esperava ter depois de tantas horas ao remo. E parei para observar tudo em volta. Nessa Ilha havia de tudo o que sabíamos sobre esses pequenos pedaços de terra cercados de água por todos os lados: praias, lindas paisagens e... coqueiros. Muitos coqueiros, altos e envergados pelos ventos constantes. Senti-me em casa. Não via nada por ali que atestasse a presença de humanos, mas o aspecto daquela ilha eleita pelo meu amigo defunto me acalmou e alegrou por demais. Sim, porque uma certeza tomou conta de mim: era esse o ponto escolhido pelo japonês para se estabelecer. Avistei um aglomerado de pequenas árvores à distancia - pelo menos a quarenta metros - e me dirigi para lá. Precisava retomar as forças e decidir o que fazer depois. E foi isso que eu fiz.
Estava assim já a mais de uma hora, pelos meus cálculos, quando resolvi investigar aquele pedaço de terra. Pelos meus cálculos também, achei que ainda teria umas quatro horas antes que a noite chegasse e eu precisasse me estabelecer junto ao meu barco para dormir. Sem me importar com o sentido a tomar, caminhei para a minha direita e fui beirando a praia sempre observando tudo em volta. Aqui e acolá um grupo de pássaros levantava voo quando eu me aproximava. Do mesmo modo, alguns maçaricos corriam alvoraçados pela areia, e até algumas gaivotas cinzentas e pequenas planavam sobre mim, como se me acompanhassem como escudeiras. Ou como uma possível presa. Lembrei-me do cadáver do oriental que tive que sepultar nas areias daquela ilha deserta que acabava de abandonar depois de muitos dias lá. 
Depois de caminhar por cerca de uma hora e meia, calculada, resolvi voltar para a minha base. O que observei no trajeto era que ainda teria muito chão pela frente, e que talvez precisasse de um tempo muito maior para chegar até ao contorno daquele paraíso. Ainda era dia quando avistei a minha embarcação na areia, no ponto em que a havia deixado. Preparei-me para mais uma noite ao relento. Menos mal que não ameaçava chover. E por isso, e também pelo cansaço de um dia de esforços extremos, passei uma noite bem calma naquela nova paragem. 
No dia seguinte, segui o caminho oposto ao que fizera no anterior e caminhei por cerca de duas horas até chegar ao contorno da ilha. As praias por mim visitadas até então, pareciam a mesma coisa, apresentavam feição sempre plana e com uma faixa de areia mais ou menos regular. A mesma configuração plana também podia ver mais para o interior da ilha. E somente nesse ponto em que esse lado da ilha parecia terminar foi que avistei um pequeno outeiro a pouco mais de trezentos metros, mais para o seu interior. Bordejei a praia e logo me vi do outro lado da linda ilhota. E o mais esperançoso: defronte a ela, uma vastidão de água, e nenhuma outra ilha, aparecia no horizonte. E se era mar aberto, poderia ser também uma rota de navegação. E isso me alegrou a tal ponto que nem parei para descansar, mesmo já sentindo o esforço desprendido até ali e uma fome intensa.
Caminhei por mais meia hora e me alegrei com o que ia encontrando pelo caminho. Muitas palmeiras cheias de cachos de cocos que poderiam muito bem ser devorados sem que ninguém viesse depois a reclamar a sua propriedade. Parei sob a sombra de um deles e sentei sobre um montículo de areia fofa e agradável. Minhas pernas agradeceram e eu logo cuidei de desamarrar o pequeno farnel que eu trazia atado como uma mochila às minhas costas. Fiz ali a minha alimentação frugal e acalmei momentaneamente o meu estômago que reclamava ferozmente. Para complementar o banquete, apanhei alguns cocos espalhados pela areia e tomei a água de dois deles. Era pouca, mas muito doce, um luxo depois de muitos dias sem algo assim.
Ao terminar de comer fiquei observando tudo em frente. Um mar de águas limpas e esverdeadas mostrava-se até perder-se de vista, um reforço à esperança que havia perdido. E eu chorei pela terceira vez depois que cai do navio que me levava em uma viagem de férias. Um choro de esperança, de alegria, de otimismo nascente.
Não me demorei muito assim. Precisava voltar para pegar as minhas coisas, e também a minha jangada. E corri como nunca para chegar lá.  Um energia extra havia se apoderado de mim. O sol ainda estava bem alto quando avistei a minha embarcaçãozinha e a alegria sofreu um acréscimo. Cheguei, e logo já estava decidido a permanecer mais uma noite ali. No dia seguinte eu apanharia o que quisesse e retornaria para o outro lado da ilha. E assim fiz. Dormi uma noite tranquila e reparadora. A caminha preparada do dia anterior me fez bem, tirei a dormida quase de um sono só sobre a areia que eu havia amontoado.

2 comentários:

  1. Chico Acoram Araújo17 de maio de 2017 às 10:51

    Dr. Araújo,

    É parece que agora vem uma bonança para o nosso infeliz náufrago, após uma longa tempestade. Estou torcendo muito para um final feliz. Mas, não duvido muito que o nobre autor desse prazeroso romance ainda crie algumas peripécias com esse interessante personagem sem nome.

    Um abraço.

    Chico Acoram

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  2. Parece que os dias de ruindade com o nosso infeliz personagem se aproximam do fim, meu amigo Acoram.

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