quarta-feira, 31 de maio de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XXXII)




Deus do céu, estou a salvo!
(José Pedro Araújo)

Reavivei a minha fogueira, amontoei bastante material verde e voltei ao meu ponto de observação para esperar pela passagem dos navios. E dessa vez tive sorte. Avistei uma grande escuna navegando próxima à costa e desci a ladeira em desabalada carreira. Cheguei a tempo de acionar o meu fabricante de fumaça. A embarcação, que parecia de pesca, estava quase parada defronte ao ponto da ilha ao qual eu me encontrava. Parecia também que jogavam suas redes de pesca exatamente naquele momento. Para chamar a atenção, deixei a minha fogueira acesa o mais alto que pude e lancei galhos verdes sobre as chamas. Uma fumaça vigorosa e escura elevou-se aos céus e formou uma grande nuvem escura num ponto bem alto.
Fiquei em estado de atenção total. Meu coração batia acelerado e a minha respiração estava entrecortada, aguardando ser visto por aquelas pessoas embarcadas. E qual não foi a minha alegria quando vi que o barco apontou no rumo da praia. Corri aos saltos até a beira da água e comecei a gritar e a agitar os braços freneticamente. 
A embarcação foi aumentando de tamanho à medida que se aproximava e eu pude ver pessoas sobre a proa e com as atenções voltadas para onde eu me encontrava. Era de fato uma escuna de pescadores, grande e com dois mastros gigantes. E em um deles tremulava uma bandeira vistosa que se agitava nervosamente na ponta de um dos mastros. O pendão que podia ser visto em primeiro lugar, antes mesmo que o barco propriamente dito pudesse ser identificado, era azul e vermelho e um sol aparecia encravado em um triângulo de tecido branco. Aquela bandeira um tanto surrada e com cores esmaecidas, tremulava no alto do seu mastro central.
Esperei emocionado a sua aproximação. Não demorou muito e a embarcação já estava a menos de cinquenta metros de mim.
Agora os homens a bordo gesticulavam para mim com muita insistência. E quando dei por mim, senti que estivera estático nos últimos minutos, enquanto dois rios de lágrimas escorriam pela minha face ininterruptamente. Eu chorava pela quarta vez naquelas paragens. De incontida alegria. Ao olhar para as minhas mãos trêmulas notei que estava quase pelado, vestido apenas com uma cueca rota e furada em vários pontos, pois a minha calça se mantinha presa no alto do mastro que eu havia fincado no solo. Fiquei coberto de vergonha e tive enorme trabalho para fazê-la descer de lá.
Nem mesmo acabara de por as mãos nela, e já um pequeno escaler aportava na areia e dois homens corriam até onde eu me achava. Ainda demonstrando surpresa, chegaram a menos de quatro metros de mim e pararam. E puseram-se a gesticular nervosamente e a falar uma língua desconhecida para mim.  Um deles, porém, após esperar que eu me vestisse, passou a me interrogar em um inglês arrastado e pouco inteligível, mas que deu para saber o que ele queria. Perguntava-me o que eu fazia ali, sozinho, naquela ilha desabitada.
Os dois homens eram muito parecidos em tudo, notava-se apenas que o que me falara em inglês parecia ser mais jovem que o outro. Possuíam, ambos, estatura mediana, eram enxutos de carne e possuíam músculos bem desenvolvidos, mostrando que eram rijos e operantes, apesar da pequena estatura. Respondi às perguntas e fiz ver que não estava ali pela minha própria vontade. Falando pausadamente esclareci que era um náufrago e já estava na ilha há tantos dias que nem sabia precisar o quanto.
 Conversamos pouco tempo antes que me convidassem a embarcar. Mal tive tempo de apanhar alguns dos meus pertences, e já estava dentro do escaler. Só olhei para trás quando chegamos próximo à escuna que assim de perto me pareceu gigante. Subi por uma escada de cordas e fui içado para o interior da embarcação por dois homens fortes e vigorosos, mas como a mesma tez morena e olhos puxados dos seus dois companheiros embarcadiços.
Um homem já relativamente idoso me recebeu a bordo. Era o comandante daquela embarcação pesqueira e no momento seguinte me convidou para ir até a uma cabine minúscula que parecia ser a sua. E de fato era. Lá falei com ele pelas duas horas seguintes. O seu inglês também não era muito fluente, mas dava perfeitamente para entender. E onde isso não era possível, retornávamos pausadamente à frase até nos entendermos.
Nesse meio tempo contei toda a minha história para ele, os meus sofrimentos, as minhas angústias e as minhas desesperanças. Ele me ouvia emocionado e eu também estava. Estava me acostumando com aquele estado de espírito meio que sensível. Meus nervos me traiam a todo instante agora. E de repente um cansaço repentino se apoderou de mim e eu lhe disse que precisava descansar. Ele me conduziu a uma enxerga, que acredito ser a que ele utilizava para o seu próprio descanso, deitei-me e, num instante, adormeci.
Não posso precisar quanto tempo dormi. O que sei é que quando acordei já era noite fechada. A cabine escura e o balanço leve da escuna haviam embalado o meu sono. Assustei-me um pouco e logo olhei de lado procurando a tipoia que trazia atada feito uma mochila. Ela continha os meus poucos pertences. Entretanto, estava ali ao meu lado. Abri a estreita porta para entrar alguma claridade e vasculhei o seu interior para confirmar se tudo se encontrava no lugar em que eu havia deixado. Em verdade, quando digo tudo, refiro-me à minha latinha com os seis mil dólares que o meu antigo inimigo havia me surrupiado, uma blusa encardida, duas cuecas tão estragadas quanto à que usava, e que antes haviam sido calças femininas, o diário do meu inimigo nipônico, além de um talher velho e amassado e uma colher de ferro. Era tudo o que eu possuía.
Destampei a latinha-cofre, peguei os maços de notas, coloquei-os tudo dentro da cueca para proteger melhor. O restante das coisas, eu as deixei lá e amarrei bem.
Voltei a dormir. E dessa vez um sonho doce e alegre me embalou durante toda a noite. Sonhava que encontrava os meus, cobria de abraços os amigos e colegas de trabalho, tudo isso na minha velha e amada residência onde convivi com a minha família por mais de vinte e cinco anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário