Deus do céu, estou a salvo!
(José Pedro Araújo)
Reavivei a minha fogueira, amontoei bastante material verde e
voltei ao meu ponto de observação para esperar pela passagem dos navios. E
dessa vez tive sorte. Avistei uma grande escuna navegando próxima à costa e
desci a ladeira em desabalada carreira. Cheguei a tempo de acionar o meu
fabricante de fumaça. A embarcação, que parecia de pesca, estava quase parada
defronte ao ponto da ilha ao qual eu me encontrava. Parecia também que jogavam
suas redes de pesca exatamente naquele momento. Para chamar a atenção, deixei a
minha fogueira acesa o mais alto que pude e lancei galhos verdes sobre as
chamas. Uma fumaça vigorosa e escura elevou-se aos céus e formou uma grande
nuvem escura num ponto bem alto.
Fiquei em estado de atenção total. Meu coração batia
acelerado e a minha respiração estava entrecortada, aguardando ser visto por
aquelas pessoas embarcadas. E qual não foi a minha alegria quando vi que o
barco apontou no rumo da praia. Corri aos saltos até a beira da água e comecei
a gritar e a agitar os braços freneticamente.
A embarcação foi aumentando de tamanho à medida que se
aproximava e eu pude ver pessoas sobre a proa e com as atenções voltadas para
onde eu me encontrava. Era de fato uma escuna de pescadores, grande e com dois
mastros gigantes. E em um deles tremulava uma bandeira vistosa que se agitava
nervosamente na ponta de um dos mastros. O pendão que podia ser visto em
primeiro lugar, antes mesmo que o barco propriamente dito pudesse ser
identificado, era azul e vermelho e um sol aparecia encravado em um triângulo
de tecido branco. Aquela bandeira um tanto surrada e com cores esmaecidas,
tremulava no alto do seu mastro central.
Esperei emocionado a sua aproximação. Não demorou muito e a
embarcação já estava a menos de cinquenta metros de mim.
Agora os homens a bordo gesticulavam para mim com muita
insistência. E quando dei por mim, senti que estivera estático nos últimos
minutos, enquanto dois rios de lágrimas escorriam pela minha face
ininterruptamente. Eu chorava pela quarta vez naquelas paragens. De incontida
alegria. Ao olhar para as minhas mãos trêmulas notei que estava quase pelado,
vestido apenas com uma cueca rota e furada em vários pontos, pois a minha calça
se mantinha presa no alto do mastro que eu havia fincado no solo. Fiquei
coberto de vergonha e tive enorme trabalho para fazê-la descer de lá.
Nem mesmo acabara de por as mãos nela, e já um pequeno escaler
aportava na areia e dois homens corriam até onde eu me achava. Ainda
demonstrando surpresa, chegaram a menos de quatro metros de mim e pararam. E
puseram-se a gesticular nervosamente e a falar uma língua desconhecida para
mim. Um deles, porém, após esperar que
eu me vestisse, passou a me interrogar em um inglês arrastado e pouco
inteligível, mas que deu para saber o que ele queria. Perguntava-me o que eu
fazia ali, sozinho, naquela ilha desabitada.
Os dois homens eram muito parecidos em tudo, notava-se apenas
que o que me falara em inglês parecia ser mais jovem que o outro. Possuíam,
ambos, estatura mediana, eram enxutos de carne e possuíam músculos bem desenvolvidos,
mostrando que eram rijos e operantes, apesar da pequena estatura. Respondi às
perguntas e fiz ver que não estava ali pela minha própria vontade. Falando
pausadamente esclareci que era um náufrago e já estava na ilha há tantos dias
que nem sabia precisar o quanto.
Conversamos pouco
tempo antes que me convidassem a embarcar. Mal tive tempo de apanhar alguns dos
meus pertences, e já estava dentro do escaler. Só olhei para trás quando
chegamos próximo à escuna que assim de perto me pareceu gigante. Subi por uma
escada de cordas e fui içado para o interior da embarcação por dois homens fortes
e vigorosos, mas como a mesma tez morena e olhos puxados dos seus dois
companheiros embarcadiços.
Um homem já relativamente idoso me recebeu a bordo. Era o comandante
daquela embarcação pesqueira e no momento seguinte me convidou para ir até a
uma cabine minúscula que parecia ser a sua. E de fato era. Lá falei com ele
pelas duas horas seguintes. O seu inglês também não era muito fluente, mas dava
perfeitamente para entender. E onde isso não era possível, retornávamos
pausadamente à frase até nos entendermos.
Nesse meio tempo contei toda a minha história para ele, os
meus sofrimentos, as minhas angústias e as minhas desesperanças. Ele me ouvia
emocionado e eu também estava. Estava me acostumando com aquele estado de
espírito meio que sensível. Meus nervos me traiam a todo instante agora. E de
repente um cansaço repentino se apoderou de mim e eu lhe disse que precisava
descansar. Ele me conduziu a uma enxerga, que acredito ser a que ele utilizava
para o seu próprio descanso, deitei-me e, num instante, adormeci.
Não posso precisar quanto tempo dormi. O que sei é que quando
acordei já era noite fechada. A cabine escura e o balanço leve da escuna haviam
embalado o meu sono. Assustei-me um pouco e logo olhei de lado procurando a
tipoia que trazia atada feito uma mochila. Ela continha os meus poucos
pertences. Entretanto, estava ali ao meu lado. Abri a estreita porta para
entrar alguma claridade e vasculhei o seu interior para confirmar se tudo se
encontrava no lugar em que eu havia deixado. Em verdade, quando digo tudo,
refiro-me à minha latinha com os seis mil dólares que o meu antigo inimigo
havia me surrupiado, uma blusa encardida, duas cuecas tão estragadas quanto à
que usava, e que antes haviam sido calças femininas, o diário do meu inimigo
nipônico, além de um talher velho e amassado e uma colher de ferro. Era tudo o
que eu possuía.
Destampei a latinha-cofre, peguei os maços de notas,
coloquei-os tudo dentro da cueca para proteger melhor. O restante das coisas, eu
as deixei lá e amarrei bem.
Voltei a dormir. E dessa vez um sonho doce e alegre me
embalou durante toda a noite. Sonhava que encontrava os meus, cobria de abraços
os amigos e colegas de trabalho, tudo isso na minha velha e amada residência
onde convivi com a minha família por mais de vinte e cinco anos.
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