José Pedro Araújo
Os “recuerdos” aqui são de um
período que me trouxe muitas alegrias, daí está sempre rememorando aqueles
dias. Refiro-me ao meu tempo no Ginásio Presidente Dutra. Como já expus também,
o prédio em que funcionava o velho GPD ficava na esquina da Praça do Mercado, e
de frente para a mercearia do Machadinho. Naqueles tempos não tínhamos no
Curador as tais lanchonetes com banquinhos altos, paredes revestidas com
azulejos e, muito menos, os tais sanduiches x-tudo, invenção americana que se
espalhou pelo Brasil com rapidez e que, parece, veio para ficar, assim como o
hábito de se comer pizza ao modo italiano. Tínhamos que nos virar para conseguir
algo para saborear no horário do recreio. E nos virávamos bem, como veremos a
seguir.
Em frente ao colégio, como já
afirmei, ficava o Bar e Mercearia do Machadinho, com um grande estoque de
bebidas, mas nada para um frugal lanche, a não ser balas. Ai surgiu um sujeito
que não me recordo o nome, que começou a vender laranjas na calçada da
mercearia. E a procura passou a ser intensa, pois o dito homem descascava as
laranjas com a maestria de um mágico, Fazia isso com uma faquinha muito amolada
e muito gasta de tanto ser afiada. De um saco repleto até a boca, ele retirava
laranjas com a casaca tão amarelinha que mais parecia gema de ovo. E como eram
doces! Por preços módicos, conseguíamos chupar umas três ou quatro delas em
substituição aos lanches mais elaborados. Grande era a aflição para
conseguirmos comprá-las antes que a campainha nos chamasse de volta para sala
de aula, tal a quantidade clientes em volta do homem. Grande também era a
gritaria, portanto. Quero uma, quero duas, quero três! Cheguei primeiro, moço!
Rápido que a campainha já vai tocar! Tal gritaria chamava a atenção de quem
passava por ali e contemplava o aglomerado que mais parecia um formigueiro
humano. E o homem ali, com a sua incansável faquinha trabalhando aceleradamente
e sem cessar. E como trabalhava rápido o vendedor de laranjas!
Quase encostada ao prédio do
colégio, residia Dona Ana, a zeladora do ginásio, que logo vislumbrou a
possibilidade de ganhar “um extra” explorando a fome daqueles jovens na idade
em a que a gula é companhia constante. E passou a dita senhora a vender café
com bolo frito. Fez sucesso imediato. Figura queridíssima dos alunos, Dona Ana
notabilizava-se pelo jeito carinhoso com que se dirigia ao alunado, sempre
tratando com grande desvelo a todos indistintamente. Mas, o “buraco aqui já era
mais em baixo”. A conta já era um pouco maior e, portanto, não era apropriada para
todos os bolsos. Criativa e atenta, logo a bondosa senhora apareceu com uma
linguiça frita de encher os olhos de gulodice, e a boca de saliva. O produto
era mais caro, mas era também uma delícia. De modo que, sempre que entrava
algum dinheirinho a mais na carteira, era para a “lanchonete” da caridosa
senhora que eu me dirigia.
Não demorou para um espertinho
imaginar que poderia pendurar a conta no prego mais alto da velha casa. E não é
que a bondosa mulher aceitou! Também consegui um crédito com ela, mas não
exagerei. Sabia que teria que pagar do mesmo jeito! Todavia, acredito que muita
gente deve ter deixado o crédito em aberto. Havia muitos que exageravam no
consumo somente porque saia tudo fiado.
Nos dias de pouco dinheiro no
bolso (quase todos), voltava ao homem das laranjas amarelinhas e o meu lanche
do intervalo das aulas era aquele. Empolgado com o florescente comércio que
ganhava clientes a cada dia, o homem apareceu certo dia com uma maquininha de
descascar laranjas. Era uma tecnologia muito adiantada para a nossa época e
logo chamou a atenção de gente que nunca ia até ele para obter alguns frutos.
Esperto, o homem levou um filho para operar o tal engenho. Ele continuou
utilizando a sua faca amolada, coisa que fazia com muita competência. Depois, com
o aumento da clientela, trouxe a mulher: porque perder clientes, se o período
do recreio era tão pequeno?
Nessas horas a animação tomava
conta da rapaziada, e as brincadeiras iam se sucedendo, até que um indivíduo
menos escrupuloso achou de inventar uma guerra com as “chupas” de laranja.
Virou a brincadeira de todos os dias. Naquele curto espaço de tempo travavam-se
verdadeiras batalhas com os bagaços das laranjas. E isso, naturalmente, trouxe alguns
entreveros sérios também, uma vez que sempre havia alguém que não aceitava a
tal brincadeira. E, num desses dias, estávamos nós a brincar com esse tiroteio
indiscriminado, quando um colega me acertou um bagaço que me deixou a camisa
toda suja. Atirou e correu, pois a campainha acabava de tocar chamando o
pessoal para as salas de aula. Meu
agressor subiu os degraus da calçada e já ia entrar pela porta do colégio
quando eu arremessei nele a laranja que mal havia iniciado a chupar o seu suco.
Antes de contar o resultado disso, preciso fazer um esclarecimento: o diretor e
dono do GPD era o juiz da cidade, Dr. José de Ribamar Fiquene, figura
respeitada, tanto pelo posto que ocupava, quanto por imprimir a ordem com mão
de ferro. Impunha respeito, poderia afirmar.
Pois bem, voltando à nossa
estória, o meu agressor me atingiu e correu. E já estava quase entrando pela
porta do colégio quando arremessei contra ele a laranja que ainda estava cheia
do delicioso caldo. E nesse momento, em decorrência da algazarra que se fazia
lá fora, saia pela porta o diretor do colégio para verificar o que acontecia. A
laranja quase cheia que eu havia arremessado atingiu o homem exatamente no
rosto. O resultado imediato foi que um silêncio profundo se estabeleceu em meio
à garotada. Dava para se ouvir a minha respiração ofegante a dezenas de metros
de distância. Todos aguardavam o que poderia me acontecer. O agredido se
utilizaria do cargo de diretor ou da função de maior autoridade judiciária do
município para responder à agressão?
Dr. Fiquene era um homem de
gestos graves, mas afáveis. E quase nunca perdia a pose honorífica, sempre em
“respeito à liturgia do cargo”, como diria um ex-presidente da república muito
conhecido dos maranhenses. Deste modo, permaneceu ele impassível, com gesto
senhorial grave, lá no alto da calçada. E os alunos, qual ovelhas em direção ao
aprisco, foram entrando no colégio, um por um. Fiquei sozinho no meio da rua
aguardando pelo que viria. Irrequieto, logo tomei a decisão de me dirigir ao
diretor para pedir-lhe desculpas e me retratar pelo acontecido. Mas, mal havia
começado as minhas evasivas vênias, fui instado suavemente pelo juiz a entrar e
lhe aguardar na diretoria.
Para não ser muito prolixo, digo
mais apenas que ele, depois de alguma admoestação, determinou que eu ocupasse,
por quinze dias, o meu horário do recreio a escrever a frase: “nunca devo travar brincadeiras pesadas com
meus colegas em horário escolar”. A punição foi menor do que a que eu
imaginava, pois cheguei a pensar em uma expulsão, pura e simplesmente. Mas, se a
punição não foi muito severa, o resultado dela foi devastador: tive que aturar,
diariamente, e por quinze dias, as brincadeiras dos meus colegas ou a olhadela
das garotas quando passavam para o recreio e, consequentemente, para o lanche.
O resultado do exercício para trazer de volta o meu bom comportamento, foram
dois volumosos cadernos cheios com a miserável frase que parece que nunca mais
vou esquecer.
O lanche da Dona Ana, juntamente com as
laranjas doces do descascador veloz, também ficaram para sempre na minha
memória.
Naqueles tempos a disciplina e a ordem eram conseguidas através de regulamentos rígidos e que surtiam efeitos duradouros na nossa personalidade. Bons tempos aqueles.
ResponderExcluirOrdem e disciplina, e todos saíam ganhando.
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