quarta-feira, 8 de março de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XX)




“Breves Recordações da Minha Vida Fora Desta Ilha”.
José Pedro Araújo

“Sou natural de Kobe, importante cidade situada no sul do Japão, na província de Hiôgo. Situada esplendidamente no litoral, possui um dos melhores e maiores portos do país. E inicio dizendo que nasci de uma família que tirava ordinariamente da pesca a sua sustentação desde os meus ancestrais mais distantes. E eu deveria dar continuidade ao empreendimento industrial que o meu pai comandava, e que o fazia estar quase sempre ausente de casa por obrigações relacionadas ao seu ofício. Ainda mais porque era filho único. Nascido, portanto, em uma família tradicional, estudei em escolas que meus pais e avós já haviam estudado, e entrei para a faculdade para me preparar para dar prosseguimento ao empreendimento familiar, ou mais precisamente para prosseguir a sua saga na área de pesca industrial. Tive uma infância normal de uma criança japonesa da primeira metade do século vinte, e uma juventude não tão tranquila assim, porquanto gostava de praticar esportes que continham algum risco. Esquiar, por exemplo, tinha a minha predileção, enquanto meus pais preferiam a calma das estâncias termais. E por conta disso, vivia em permanente conflito com eles para obter autorização para frequentar estações de esqui distantes, como as das províncias de Hokkaido, Ymagata e Nagano. E isso, naturalmente, embutia custos altíssimos, investimento que meus pais achavam desnecessários, além de dispendiosos. Mas o que os deixava mais preocupados era os riscos que isso me trazia, pois, logo depois, já praticava o esqui em pistas com grau de dificuldade elevadas. O esporte de competição”.
“Mas eu gostava daquilo, do risco e das emoções de um esporte emocionante e competitivo que cada vez mais me desafiava. E como para provar que meus pais estavam sempre certos, aquilo terminou por me impingir um duro golpe, logo aos vinte anos. Tudo o que meus mais temiam aconteceu. Em uma das vezes em que punha em prática o meu desafio de todos os dias, e em uma das pistas mais perigosas de Hokkaido, sofri um acidente que quase me tirou a vida, e que me levou um pedaço de uma das minhas pernas, soterrado e esmagado que fui por uma montanha de neve advinda de uma avalanche.”
“Causei imenso sofrimento para a minha família, mas isso não me tirou a vontade de me meter em aventuras e em esportes perigosos. Logo que me adaptei com a prótese que complementava agora a minha perna, entrei para uma escola de pilotagem de avião. Não demorou muito e logo estava participando de grupos de paraquedistas que faziam demonstrações em todas as regiões do país. Como tudo na minha vida, depois que me tornei um mutilado, tive dificuldades em ser aceito pelos meus futuros colegas em decorrência da minha condição física. Mas, isso foi apenas no início, pois logo que demonstrei a minha perícia e a minha determinação, superei todos os entraves. Meus pais, mais uma vez, não ficaram satisfeitos com a minha decisão, mas, por acharem que eu já havia sofrido demais com a perda de uma parte de um dos meus membros inferiores, consentiram com a minha nova decisão. E devo confessar que me tornei bom no ofício, um dos melhores, especialmente na pilotagem e acrobacia de pequenas aeronaves. A falta de uma perna completa não era impedimento nenhum. E mesmo por isso, dediquei-me ao máximo ao ofício de piloto com o intuito de superar a deficiência.”
“Mas a idade foi chegando, e eu precisei me dedicar mais ao meu lado profissional também, fazendo com que me afastasse dos meus brinquedos voadores. E foi nessa época que fui mandado para a Inglaterra para concluir a minha especialização em negócios, economia e administração de empresas. O meu destino foi Cambridge, uma das universidades mais famosas do mundo. Mas, antes mesmo de concluir o meu aprendizado, estourou a segunda grande guerra. E o Japão tomou o partido da Alemanha. Posicionou-se contra os britânicos, portanto. Terminava ali a minha experiência inglesa. Voltei para casa menos de dois anos após iniciar a minha preparação.”
“A vida que encontrei no meu país, nem de longe lembrava a que deixei pouco tempo antes: estava tudo um caos total. Tudo girava em torno da guerra. As indústrias passaram a se dedicar com afinco em equipar as forças imperiais para o confronto com as nações inimigas. E isso era uma tarefa hercúlea e que forçava a maior parte das plantas industriais a produzirem equipamentos para as três armas em detrimento dos de uso doméstico, por exemplo. Menos mal que eles precisavam de alimento para matar a fome dos exércitos aliados, e a indústria de pescado da minha família não foi muito afetada. Foi até estimulada a aumentar a sua produção.”
“Agora, se você precisasse de um armário de aço, de algumas esquadrias para casa, ai ficava praticamente impossível de conseguir. Todas as metalúrgicas, além de tudo o que era transformado em metal, devia se voltar para a produção de coisas destinadas à guerra. E, mesmo assim, o povo estava empolgado com o que estava acontecendo. Sobretudo os mais jovens. Para esses, era uma questão de honra dedicar a vida ao império japonês, demonstrar profundo amor à pátria, partir para a briga, enfim. E eu não fiquei fora disso, lógico, apesar da minha deficiência, e de no início achar aquilo um tremendo desperdício de material humano e de precioso tempo.”
“Mudei de pensamento porque todos os meus amigos, quando voltei ao país, já haviam se alistado em uma das forças que mais lhe atraiam. Meus companheiros de pilotagem, por exemplo, foram logo recrutados a prestar serviços no comando aéreo, e passaram por treinamentos intensivos nos campos de preparação instalados em várias partes do país. Até então não me empolgara muito com o conflito armado. Até achava aquilo um tremendo desperdício, como já afirmei, envolver toda uma nação em uma guerra que não nos dizia respeito. Se a guerra era entre europeus, que eles resolvessem as suas pendências! O Japão tinha mais era que aproveitar os tempos correntes para comercializar com os dois lados tudo o que produzia, e aumentar a sua participação no comércio internacional”.
“Mas, isso foi antes. Com o tempo, com as notícias diárias veiculadas pelos jornais e rádios, com o ufanismo uniformemente espalhado por toda a mídia, fui aos poucos me envolvendo e um grande sentimento patriótico foi se apoderando de mim. A propaganda nipônica conseguia mais um adepto. Talvez um adepto que não desejavam, como veremos mais adiante. Mas, mesmo assim, um aguerrido e dedicado parceiro militar”.

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