quarta-feira, 1 de março de 2017

Diário de Um Náufrago (Capitulo XIX)




“Diário: prefácio” 
José Pedro Araújo

“Quero afirmar de princípio que este é o meu primeiro diário e, portanto, não sei nem mesmo como fazê-lo. Talvez devesse adotar a técnica corrente começando com... “Meu querido Diário”... Mas isso não me convém por já não ter a idade de um adolescente, e também por não ter a menor vontade de parecer um deles. Quero, sim, registrar nele algumas informações que possam ser de interesse para quem chegar a pôr as mãos neste caderno que encontrei soterrado pelas areias da praia, como tudo o que tenho aqui comigo. Portanto, vou escrevê-lo adotando a técnica de um livro didático, nada mais que isso. E, afinal, talvez ninguém venha a ler nada disso mesmo!” Mas, mesmo assim, vou pôr no papel algumas coisas sobre os meus dias aqui nessa ilha perdida nesse canto de mundo. Pra quê não sei. Talvez para passar o meu tempo, já que os dias por aqui são tão longos. Ou quase todos eles.
“Devo iniciar dizendo também que comecei a escrevê-lo na minha língua Mater, mas logo pensei que talvez fosse mais pragmático fazê-lo em inglês, língua com uma quantidade maior de adeptos. E assim o fiz. Entretanto, para não haver prejuízo na leitura, repeti tudo o que escrevi na primeira parte deste diário  - quando me utilizei do meu próprio idioma - nas páginas que lerão daqui para frente.”
“Devo esclarecer também que não vou passar para o texto, as minhas idiossincrasias ou as minhas carências afetivas. Vou descrever aqui a realidade vivida por mim, sem retoques nem dramas.”
“Quero alertar ainda ao meu possível leitor, que os dias que passei nesta ilha deserta foram de uma tranquilidade a toda a prova. Até mesmo o receio de que os meus inimigos americanos, ingleses, ou de qualquer outra nacionalidade, apanhassem-me para concluir o trabalho que iniciaram não me atribulou muito, porque, de uma coisa estejam certos, não me pegarão com vida. Ao contrário, guardo comigo uma pequena adaga que utilizarei para dar fim à minha existência neste paraíso, caso acredite que ela está na iminência de restar findada por mãos inimiga.”
“Deste modo, como ia dizendo, meus dias nessa ilha foram de paz e tranquilidade. Passei por provações, isso é certo, mas venci todas elas. E isso, para um cidadão japonês, é maior do que qualquer outro ganho. Acho até que já vivi mais do que o suficiente tendo em vista os perigos pelos quais passei nessa minha longa vida.”
“Portanto, sou um vencedor. Acho-me um grande vencedor. Homem nenhum – ou mesmo o acaso - conseguiu dar cabo da minha vida. Ao contrário, venci muitas batalhas antes que uma rajada de metralhadora atingisse o meu Mitsubish A6M Zero e o derrubasse no mar, perto de onde estabeleci a minha morada.”
“Nem mesmo a carência apresentada pela falta de um dos meus membros inferiores, foi elemento suficiente para impedir que eu viesse a pilotar um desses brinquedos mortais inventados pela engenhosidade do povo japonês. Venci outra vez.”
“Quanto ao texto, procurarei ser conciso, claro e objetivo, sem o rebuscamento dos textos literários que, de resto, sei não ter aptidão para tanto. Entretanto, vou tentar registrar essa enormidade de anos que já se passaram  - desde que aprendi a registrar o meu próprio nome em uma folha de papel -, em poucas páginas. Não quero tomar o precioso tempo de ninguém. Nem mesmo o tempo de alguém que possa também se achar perdido por aqui, assim como eu. E nesse caso, tempo é um bem que esse indivíduo encontrará por aqui em larga escala. Mas, nem mesmo a esse, tenho pretensões de ocupar um período que poderia está sendo melhor utilizado para viver as delícias deste local.”
“Também não tecerei comentários sobre os meus superiores hierárquicos, nem de bem, nem de mal, pois entendo que, se tiver havido algum culpado por me encontrar nesta situação, essa pessoa sou eu, e mais ninguém.”
“Tive momentos em que um leve pensamento me acudiu ao cérebro, um sentimento de culpa por infundir sofrimento aos meus pais, mas logo isso também era afastado, quando me lembrava da felicidade que observei no rosto de cada um deles ao me verem entrar na cabine do meu aviãozinho maravilhoso. Estavam tão radiantes, felizes até, eu diria, e esbanjando aquele sentimento de cumprimento do dever entranhado no coração de cada japonês. Eu estava fazendo tudo àquilo o que sei que eles também gostariam de poder realizar. E isso me felicitava e os fazia ficar em paz com as suas consciências. A vida de um membro daquela pequena família estava posta em defesa do nosso país, do nosso imperador. Era tudo. Então, ao pensar deste modo toda a tristeza ia embora de mim.”
“Acho que já me alonguei demais nesses primeiros escritos. Parece que já descumpri a minha promessa de não tomar o tempo precioso de ninguém. E já falhei logo no início das minhas memórias. Como somos falhos! Mas prometo me corrigir doravante.”
Por fim, devo deixar aqui registrado que, se alguém, por algum motivo, chegar a ter meus escritos em mãos, pode fazer uso deles para o que lhe aprouver. Dito isto, vamos aos acontecimentos. Antes, quero afirmar que já estou acostumado a viver assim, e nada, nada mesmo, faria diferente do fiz, antes de ter o meu caça abatido pelos inimigos do povo japonês. A vida é o que é. Ainda acredito que poderei contribuir de alguma forma com a minha experiência quando o meu imperador precisar de mim para retomar toda essa região das mãos dos nossos inimigos. Dito isto, vamos ao que interessa.”


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