“Diário: prefácio”
José Pedro Araújo
“Quero afirmar de princípio que
este é o meu primeiro diário e, portanto, não sei nem mesmo como fazê-lo.
Talvez devesse adotar a técnica corrente começando com... “Meu querido
Diário”... Mas isso não me convém por já não ter a idade de um adolescente, e
também por não ter a menor vontade de parecer um deles. Quero, sim, registrar
nele algumas informações que possam ser de interesse para quem chegar a pôr as
mãos neste caderno que encontrei soterrado pelas areias da praia, como tudo o
que tenho aqui comigo. Portanto, vou escrevê-lo adotando a técnica de um livro
didático, nada mais que isso. E, afinal, talvez ninguém venha a ler nada disso
mesmo!” Mas, mesmo assim, vou pôr no papel algumas coisas sobre os meus dias
aqui nessa ilha perdida nesse canto de mundo. Pra quê não sei. Talvez para
passar o meu tempo, já que os dias por aqui são tão longos. Ou quase todos
eles.
“Devo iniciar dizendo também que
comecei a escrevê-lo na minha língua Mater, mas logo pensei que talvez fosse mais
pragmático fazê-lo em inglês, língua com uma quantidade maior de adeptos. E
assim o fiz. Entretanto, para não haver prejuízo na leitura, repeti tudo o que
escrevi na primeira parte deste diário -
quando me utilizei do meu próprio idioma - nas páginas que lerão daqui para
frente.”
“Devo esclarecer também que não
vou passar para o texto, as minhas idiossincrasias ou as minhas carências
afetivas. Vou descrever aqui a realidade vivida por mim, sem retoques nem
dramas.”
“Quero alertar ainda ao meu
possível leitor, que os dias que passei nesta ilha deserta foram de uma
tranquilidade a toda a prova. Até mesmo o receio de que os meus inimigos
americanos, ingleses, ou de qualquer outra nacionalidade, apanhassem-me para
concluir o trabalho que iniciaram não me atribulou muito, porque, de uma coisa
estejam certos, não me pegarão com vida. Ao contrário, guardo comigo uma
pequena adaga que utilizarei para dar fim à minha existência neste paraíso,
caso acredite que ela está na iminência de restar findada por mãos inimiga.”
“Deste modo, como ia dizendo,
meus dias nessa ilha foram de paz e tranquilidade. Passei por provações, isso é
certo, mas venci todas elas. E isso, para um cidadão japonês, é maior do que
qualquer outro ganho. Acho até que já vivi mais do que o suficiente tendo em
vista os perigos pelos quais passei nessa minha longa vida.”
“Portanto, sou um vencedor.
Acho-me um grande vencedor. Homem nenhum – ou mesmo o acaso - conseguiu dar
cabo da minha vida. Ao contrário, venci muitas batalhas antes que uma rajada de
metralhadora atingisse o meu Mitsubish A6M Zero e o derrubasse no mar, perto de
onde estabeleci a minha morada.”
“Nem mesmo a carência apresentada
pela falta de um dos meus membros inferiores, foi elemento suficiente para
impedir que eu viesse a pilotar um desses brinquedos mortais inventados pela
engenhosidade do povo japonês. Venci outra vez.”
“Quanto ao texto, procurarei ser
conciso, claro e objetivo, sem o rebuscamento dos textos literários que, de
resto, sei não ter aptidão para tanto. Entretanto, vou tentar registrar essa
enormidade de anos que já se passaram - desde
que aprendi a registrar o meu próprio nome em uma folha de papel -, em poucas
páginas. Não quero tomar o precioso tempo de ninguém. Nem mesmo o tempo de
alguém que possa também se achar perdido por aqui, assim como eu. E nesse caso,
tempo é um bem que esse indivíduo encontrará por aqui em larga escala. Mas, nem
mesmo a esse, tenho pretensões de ocupar um período que poderia está sendo melhor
utilizado para viver as delícias deste local.”
“Também não tecerei comentários
sobre os meus superiores hierárquicos, nem de bem, nem de mal, pois entendo
que, se tiver havido algum culpado por me encontrar nesta situação, essa pessoa
sou eu, e mais ninguém.”
“Tive momentos em que um leve pensamento
me acudiu ao cérebro, um sentimento de culpa por infundir sofrimento aos meus
pais, mas logo isso também era afastado, quando me lembrava da felicidade que
observei no rosto de cada um deles ao me verem entrar na cabine do meu
aviãozinho maravilhoso. Estavam tão radiantes, felizes até, eu diria, e esbanjando
aquele sentimento de cumprimento do dever entranhado no coração de cada
japonês. Eu estava fazendo tudo àquilo o que sei que eles também gostariam de
poder realizar. E isso me felicitava e os fazia ficar em paz com as suas
consciências. A vida de um membro daquela pequena família estava posta em
defesa do nosso país, do nosso imperador. Era tudo. Então, ao pensar deste modo
toda a tristeza ia embora de mim.”
“Acho que já me alonguei demais
nesses primeiros escritos. Parece que já descumpri a minha promessa de não
tomar o tempo precioso de ninguém. E já falhei logo no início das minhas
memórias. Como somos falhos! Mas prometo me corrigir doravante.”
Por fim, devo deixar aqui
registrado que, se alguém, por algum motivo, chegar a ter meus escritos em
mãos, pode fazer uso deles para o que lhe aprouver. Dito isto, vamos aos
acontecimentos. Antes, quero afirmar que já estou acostumado a viver assim, e
nada, nada mesmo, faria diferente do fiz, antes de ter o meu caça abatido pelos
inimigos do povo japonês. A vida é o que é. Ainda acredito que poderei
contribuir de alguma forma com a minha experiência quando o meu imperador
precisar de mim para retomar toda essa região das mãos dos nossos inimigos.
Dito isto, vamos ao que interessa.”
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