quarta-feira, 5 de abril de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XXIV)




"Aprendendo a Viver Sozinho"
José Pedro Araújo
 
"Não preciso descrever aqui as agruras pelas quais passei para resolver a questão da minha alimentação, da água para beber, e de todas as demais coisas que precisamos para viver em um lugar isolado como este. Basta dizer que quase morri de fome e de sede até resolver a questão. Mas depois observei que havia muitas frutas que poderiam ser comestíveis; encontrei, algum tempo depois, um laguinho muito bonito que me serviu água doce em abundância, mas foi do mar que me veio o principal sustento. Como, aliás, tem acontecido com a minha família desde as gerações passadas, recorri aos peixes. Logo encontrei uma forma de pegar alguns deles e, como é tradição em meio ao meu povo, não precisei do fogo para deixar o pescado no ponto de consumo: transformei os peixinhos em Sashimi utilizando a técnica dos meus ancestrais. Somente muito tempo depois conseguiu domar o fogo que me serviria para iluminação e aquecimento nas noites mais frias. Do mar também ia me chegando muitas coisas: óleo diesel, comida enlatada, vasilhames, madeira trabalhada, livros, muitas coisas enfim".

"Instalar-me também foi um problema. Com medo de animais, fiz uma espécie de Jirau em uma árvore e lá morei durante muitos dias, até que descobri uma caverna no interior da ilha, em um dos passeios para reconhecimento do terreno". 

"Mas a solidão era tremenda. Passei dias e dias em completa prostração, lamentando a minha desgraça. E esse abatimento só era interrompido pelo barulho de aviões inimigos sobrevoando a região. Então a minha dor se transformava em medo. Estavam me procurando para terminar o serviço que haviam começado".

"Depois, quando já estava me acostumando com isso, uma embarcação lançou âncoras ao largo e muitos homens desceram dela e tomaram botes para chegarem até a praia. Foi o pior dia da minha vida por aqui. Camuflei como pude a entrada da minha caverna e fiquei esperando a qualquer momento pela chegada do inimigo. Mas eles não vieram. Mesmo assim, é bom que diga que eu estava pronto para recepcioná-los. Com alguns arpões que aprendi muito bem a manejar, esperava que adentrassem à minha caverna. Estava decidido a vender cara a minha vida".

"Depois, no dia seguinte, eles não apareceram naquele lado da ilha. E no terceiro dia a minha curiosidade me levou a ir espioná-los. Tive certeza de que eram americanos e que estavam atrás de mim. A maioria do grupo de cerca de dez pessoas era composta de homens louros, altos e muito falantes. A língua, logo vi, era a inglesa.  Daí não ter tido mais dúvidas. Foi só somar dois mais dois".

"Mas, no final do terceiro dia foram embora assim como haviam chegado. Perambulando pela mata, dias depois, observei algumas árvores marcadas. Não demorou muito, e outra vez vieram os americanos e cortaram muitas daquelas árvores que depois levaram para o navio deixado ao largo. Foi somente ai que constatei que eles vieram atrás de madeira. Desse grupo herdei um machado, um facão e uma pequena serra que eles se esqueceram de levar. Foram de muita utilidade para mim. E ainda são".

"Depois vieram outros, e mais outros. Foi quando descobri o meu ponto de observação sobre um morro no centro da ilha. E quase todo dia me deslocava para lá para observar a aproximação de embarcações ou das pessoas".

"Com o tempo fui me conformando com a minha situação, embora o ódio aos meus inimigos, àqueles que me fizeram viver longe da minha terra e da minha família, só tenha aumentado nesses anos. E durante muito tempo vi que eles ainda permaneciam por aqui, o que provava que a guerra ainda continuava. Foi nessa mesma época que passei a registrar os dias na parede da caverna utilizando-me de um  pedaço de carvão. Já estou aqui há pelo menos dez anos. E como esse tempo demorou a passar. Não ter nada para fazer alongava esses dias. Matava parte desse tempo lendo tudo o que me chegava às mãos. Ou quase tudo, pois muita coisa estava escrita em língua desconhecida para mim. E também passei a escrever sobre a minha estada por aqui".

"Este diário é o resumo de tudo o que escrevi. Da minha luta e paciência aqui nesta ilha perdida. Foram muitas e muitas folhas escritas para registrar a passagem do tempo, e todo esse material eu guardo comigo sob o meu colchão de dormir. Esse resumo que passei a organizar deixo para a pessoa que encontrar os indícios da minha passagem por esta ilha. Deste modo, quem o achar, não terá dificuldades para decifrar as minhas anotações. Foi por isso que resolvi, mesmo a contragosto, escrevê-lo na língua do meu principal inimigo, pois sei que eles ainda estão por aqui e a probabilidade de me encontrarem um dia não é pequena".

"Cerca de três anos atrás naufragou nessas águas, aqui próximo, durante uma tempestade tropical, um navio cargueiro que me foi muito útil. O mar, depois, o arrastou para a praia. Menos mal que seus tripulantes puderam ser socorridos por outras embarcações, mas a embarcação ficou com parte da proa enterrada na areia, e completamente destruído. E ao abandonarem o navio naufragado, deixaram muitas coisas que me foram úteis, desde ferramentas, talheres, pratos, panelas, roupa de cama, além de outras coisas mais. Até mesmo alguma comida eles deixaram para trás e dela me servi por algum tempo. Deste navio fiz morada provisória para quando algum temporal me surpreendesse naquela parte da ilha, apesar de nos últimos anos não ter ido muito por lá".

"Nós últimos anos também meus inimigos lançaram uma nova estratégia para me atrair. Passaram o jogar panfletos de aviões que sobrevoam este arquipélago, propagando que a guerra havia acabado e que o Japão fora vencido e assinara um armistício. Tudo mentira. Meu imperador nunca se renderia ao inimigo. Preferiria morrer, cometer haraquiri a adotar esse ato de covardia. Depois, passaram a afirmar que nossas famílias estavam na região para confirmar o fim da guerra. Se isso era verdade, de fato, devem ter instalado um governo fantoche na minha pátria e querem nos atrair. Tudo isso faz parte da estratégia inimiga para consumar a sua vitória. Tudo mentira ,tudo propaganda enganosa. E se de fato for assim, logo o meu povo vai retomar as rédeas do país e vamos nos juntar para a batalha final. É por isso que eu espero. E é assim que vai ter fim esse conflito. Com os nossos inimigos totalmente vencidos".

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