"Aprendendo a Viver
Sozinho"
José Pedro Araújo
"Não preciso descrever aqui as agruras pelas quais passei para
resolver a questão da minha alimentação, da água para beber, e de todas as
demais coisas que precisamos para viver em um lugar isolado como este. Basta
dizer que quase morri de fome e de sede até resolver a questão. Mas depois
observei que havia muitas frutas que poderiam ser comestíveis; encontrei, algum
tempo depois, um laguinho muito bonito que me serviu água doce em abundância,
mas foi do mar que me veio o principal sustento. Como, aliás, tem acontecido
com a minha família desde as gerações passadas, recorri aos peixes. Logo
encontrei uma forma de pegar alguns deles e, como é tradição em meio ao meu
povo, não precisei do fogo para deixar o pescado no ponto de consumo: transformei
os peixinhos em Sashimi utilizando a técnica dos meus ancestrais. Somente muito
tempo depois conseguiu domar o fogo que me serviria para iluminação e
aquecimento nas noites mais frias. Do mar também ia me chegando muitas coisas:
óleo diesel, comida enlatada, vasilhames, madeira trabalhada, livros, muitas
coisas enfim".
"Instalar-me também foi um problema. Com medo de animais, fiz
uma espécie de Jirau em uma árvore e lá morei durante muitos dias, até que
descobri uma caverna no interior da ilha, em um dos passeios para
reconhecimento do terreno".
"Mas a solidão era tremenda. Passei dias e dias em completa
prostração, lamentando a minha desgraça. E esse abatimento só era interrompido
pelo barulho de aviões inimigos sobrevoando a região. Então a minha dor se
transformava em medo. Estavam me procurando para terminar o serviço que haviam
começado".
"Depois, quando já estava me acostumando com isso, uma
embarcação lançou âncoras ao largo e muitos homens desceram dela e tomaram
botes para chegarem até a praia. Foi o pior dia da minha vida por aqui.
Camuflei como pude a entrada da minha caverna e fiquei esperando a qualquer
momento pela chegada do inimigo. Mas eles não vieram. Mesmo assim, é bom que
diga que eu estava pronto para recepcioná-los. Com alguns arpões que aprendi
muito bem a manejar, esperava que adentrassem à minha caverna. Estava decidido
a vender cara a minha vida".
"Depois, no dia seguinte, eles não apareceram naquele lado da
ilha. E no terceiro dia a minha curiosidade me levou a ir espioná-los. Tive
certeza de que eram americanos e que estavam atrás de mim. A maioria do grupo
de cerca de dez pessoas era composta de homens louros, altos e muito falantes.
A língua, logo vi, era a inglesa. Daí
não ter tido mais dúvidas. Foi só somar dois mais dois".
"Mas, no final do terceiro dia foram embora assim como haviam
chegado. Perambulando pela mata, dias depois, observei algumas árvores marcadas.
Não demorou muito, e outra vez vieram os americanos e cortaram muitas daquelas árvores
que depois levaram para o navio deixado ao largo. Foi somente ai que constatei
que eles vieram atrás de madeira. Desse grupo herdei um machado, um facão e uma
pequena serra que eles se esqueceram de levar. Foram de muita utilidade para
mim. E ainda são".
"Depois vieram outros, e mais outros. Foi quando descobri o
meu ponto de observação sobre um morro no centro da ilha. E quase todo dia me
deslocava para lá para observar a aproximação de embarcações ou das pessoas".
"Com o tempo fui me conformando com a minha situação, embora o
ódio aos meus inimigos, àqueles que me fizeram viver longe da minha terra e da
minha família, só tenha aumentado nesses anos. E durante muito tempo vi que
eles ainda permaneciam por aqui, o que provava que a guerra ainda continuava.
Foi nessa mesma época que passei a registrar os dias na parede da caverna
utilizando-me de um pedaço de carvão. Já
estou aqui há pelo menos dez anos. E como esse tempo demorou a passar. Não ter
nada para fazer alongava esses dias. Matava parte desse tempo lendo tudo o que
me chegava às mãos. Ou quase tudo, pois muita coisa estava escrita em língua
desconhecida para mim. E também passei a escrever sobre a minha estada por
aqui".
"Este diário é o resumo de tudo o que escrevi. Da minha luta e
paciência aqui nesta ilha perdida. Foram muitas e muitas folhas escritas para
registrar a passagem do tempo, e todo esse material eu guardo comigo sob o meu
colchão de dormir. Esse resumo que passei a organizar deixo para a pessoa que
encontrar os indícios da minha passagem por esta ilha. Deste modo, quem o
achar, não terá dificuldades para decifrar as minhas anotações. Foi por isso
que resolvi, mesmo a contragosto, escrevê-lo na língua do meu principal
inimigo, pois sei que eles ainda estão por aqui e a probabilidade de me encontrarem
um dia não é pequena".
"Cerca de três anos atrás naufragou nessas águas, aqui próximo,
durante uma tempestade tropical, um navio cargueiro que me foi muito útil. O
mar, depois, o arrastou para a praia. Menos mal que seus tripulantes puderam
ser socorridos por outras embarcações, mas a embarcação ficou com parte da proa
enterrada na areia, e completamente destruído. E ao abandonarem o navio
naufragado, deixaram muitas coisas que me foram úteis, desde ferramentas,
talheres, pratos, panelas, roupa de cama, além de outras coisas mais. Até mesmo
alguma comida eles deixaram para trás e dela me servi por algum tempo. Deste
navio fiz morada provisória para quando algum temporal me surpreendesse naquela
parte da ilha, apesar de nos últimos anos não ter ido muito por lá".
"Nós últimos anos também meus inimigos lançaram uma nova
estratégia para me atrair. Passaram o jogar panfletos de aviões que sobrevoam
este arquipélago, propagando que a guerra havia acabado e que o Japão fora
vencido e assinara um armistício. Tudo mentira. Meu imperador nunca se renderia
ao inimigo. Preferiria morrer, cometer haraquiri a adotar esse ato de covardia.
Depois, passaram a afirmar que nossas famílias estavam na região para confirmar
o fim da guerra. Se isso era verdade, de fato, devem ter instalado um governo
fantoche na minha pátria e querem nos atrair. Tudo isso faz parte da estratégia
inimiga para consumar a sua vitória. Tudo mentira ,tudo propaganda enganosa. E
se de fato for assim, logo o meu povo vai retomar as rédeas do país e vamos nos
juntar para a batalha final. É por isso que eu espero. E é assim que vai ter
fim esse conflito. Com os nossos inimigos totalmente vencidos".
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