A FALTA QUE ELAS ME FAZEM
(José Pedro Araújo)
A partir desse ponto vou dar um salto de mais dez anos no meu
registro. Se alguém quiser acompanhar detalhadamente o meu dia-a-dia nesse
período, que vasculhe os papéis que, como já afirmei, estão sob o colchão. Preciso
ainda pedir desculpas a quem estiver lendo esses escritos em razão da letra
tremida e crescida que tem saído nas últimas anotações. Tudo por conta da minha
vista que já está muito fraca me forçando a rabiscar letras cada vez maiores. O
pulso também já não é firme como outrora e, por esta razão, as palavras saem
tremidas para o papel. Logo vou ter que parar de escrever. Está ficando
impossível.
Vou recomeçar esse relato a partir do dia em que a minha
prótese tornou-se completamente imprestável e eu tive que fazer uma de madeira
para substituí-la. Foi um tempo difícil
para mim. Pois a que eu fiz era muito rústica e pesada. E eu tive que me adaptar
a ela e suportar os ferimentos advindos do contato do local amputado com o
material grosseiro. Já estava também com mais de quarenta anos de idade, e os
reflexos da minha maturidade me trouxeram um pouco de tranquilidade, apesar das
minhas inquietudes com relação a algumas embarcações que passaram a ancorar na
ilha trazendo gente que vinha vasculhar o local em busca de algo que nunca
soube o que era. Até mesmo barcos pesqueiros passaram a visitar o lugar com
relativa frequência. A minha gruta bem escondida me salvou de todos esses
visitantes inoportunos.
Confesso que teve ocasião em que eu pensei em revelar a minha
presença. Não por confiar nas mensagens que enviavam afirmando que a guerra
havia terminado. Não era por isso. Mas, digo isso com certa vergonha: sentia
muita falta da presença do sexo feminino. Acordei muitas noites em um estado de
excitação que estava me deixando louco. Defendia-me usando os meios que eu
tinha, e por isso recorri continuamente ao processo de onanismo, como se fora
um adolescente. Mas, o que fazer diante da crescente ebulição do meu sangue, do
avultamento da minha lubricidade?
Não revelei a minha presença, entretanto. Corria o risco de
me levarem para um campo de concentração e, dai, ficaria na mesma, pois, pelo
que eu sei não costumam manter em cativeiro pessoas de sexo oposto. Então,
certo dia, fui premiado com uma revista masculina que eu encontrei na praia.
Pelo visto, haviam acabado de lançá-la ao mar, pois estava em excelente estado.
Ato realizado por algum capitão nervoso com a desídia dos embarcadiços, mais
entretidos com as fotografias do que propriamente com a mareagem?
E que presente. Havia um desfile de mulheres com os seios à
mostra. Cada uma delas mais bela que a outra. Formei com ela o meu harém. Passei
a gostar de um único cidadão americano: Hugh Hafner. Ou melhor: São Hugh. Pois
só poderia se tratar de um santo um homem com uma ideia miraculosa daquelas.
Como já afirmei, agora estou há vinte anos por aqui. É mais
ou menos isso. Já me acostumei com tudo, menos com a certeza que hoje está me
chegando de que a guerra, de fato, acabou. Tudo isso porque não vejo mais os
americanos por aqui. Mesmo assim ainda
me assalta de quando em quando uma desconfiança de que a guerra esteja se
desenrolando em outras partes do mundo.
No mais, tudo ocorreu como sempre nesses últimos dez anos. E
nós outros dez que se passaram. Apenas não sinto mais aquela vitalidade de
antes, apesar de fazer caminhadas constantes pela ilha. Mas uma coisa não mudou
em mim: o ódio mortal que sinto pelos americanos, ingleses, franceses, e coisa
e tal. Ainda lavarei a minha honra com algum deles, é o que eu espero. Será a
minha última ação em prol do meu país.
Nos anos que se se seguiram aos dez últimos, esta ilha tem
sido pouco visitada. Acredito até que sei o porquê disto: o peixe está ficando
escasso por aqui. De raro em raro alguém ancora um barco nas imediações, e se
aventura em pesquisas. Nada mais que isto. Mas não me engano com essa aparente
calmaria. Sei muito bem que os gringos ainda não esqueceram as derrotas
vergonhosas que lhe impingimos aqui nessa parte do globo. A Batalha de Bataan,
por exemplo, foi a mais dura derrota que lhe aplicamos. Com um exército formado
por cerca de 50.000 homens, vencemos o inimigo muito mais numeroso e
entrincheirado. Depois, para fazer o
mundo se esquecer da vergonhosa derrota, passaram a criticar o herói japonês que
chefiava as nossas tropas e nos deu essa vitória inesquecível, o general Homma,
anunciando que ele havia causado um verdadeiro holocausto ao organizar uma
marcha na qual levou os prisioneiros até outros campos de concentração. Nessa
caminhada milhares pereceram. Tudo desculpa, jogo de cena, propaganda enganosa
para obliterar o grande feito. E por conta disso, sei que nunca engoliram a
vergonha e devem estar a nossa procura para a vingança final.
No mais, o meu problema de vistas é o que mais me preocupa.
Já não consigo mais ler bem os meus livros ou revistas. E isso me trouxe um
profundo ressentimento. Por que será que encontro de tudo nessas areias, menos
um par de óculos que me sirva? Ai já é sofrimento demais. Isolado e sem poder
me divertir com uma leitura sequer. Será que já não está na hora de me entregar
aos meus inimigos? Talvez, passado tantos anos, não guardem mais tanto ódio dos
adversários. Já não vejo as notícias que me levem a crer que a guerra ainda esteja
em curso. Fala-se em guerra em muitos pontos do planeta, menos envolvendo o meu
Japão. E isso só pode significar que realmente a guerra que eu lutei já acabou.
Mesmo assim, fazer o quê? A essa altura meus pais já se
foram, e nada mais me resta dos meus parentes conhecidos, ou dos meus amigos
mais próximos. E nessas horas, ao pensar assim, decido que aqui é o meu lugar.
Afinal, já vivi nessa ilha mais do dobro da vida vivida na minha pátria.
Depois, tenho uma sina a cumprir. Ainda me falta aniquilar pelo menos um dos
meus inimigos. E aqui é mais fácil de encontrá-los e poder consumar a minha
vingança.
Pelos meus cálculos, estamos próximos da virada do milênio.
Já devo estar com mais de setenta e cinco anos de idade, e não saberia mais o
que fazer se voltasse à minha terra. Tenho superado muitas enfermidades, mas
sinto que ao término de cada uma delas o meu corpo fica mais debilitado. Aí
recorro às técnica dos meus ancestrais para mantê-lo em bom estado. Uso a
técnica do hara hachi bu, e pratico o
radio taiso, a minha ginástica
matinal, para mantê-lo ativo, alerta.
Meus dias estão que é uma calmaria só. Nada acontece nesse
ponto perdido do mundo. Apenas vejo algumas embarcações passarem ao largo, mas,
nunca mais nenhuma delas voltou a ancorar próxima a ilha. Sem receio de aparecer alguém por aqui, estou
passando meu tempo desenvolvendo tarefas caseiras, esperando o tempo passar e
isso não é bom. Não é bom porque não me traz nenhuma emoção, faz-me baixar a
guarda, ficar menos alerta. Até mesmo as minhas armadilhas, sistema que
implantei no entorno da minha caverna, nunca mais conferi para ver se ainda
funcionam a contento. Estou ficando muito acomodado. E isso me leva a me
perguntar sempre: quando o meu inimigo por aqui chegar, estarei preparado para
ele? É uma preocupação.
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