quarta-feira, 12 de abril de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XXV)




A FALTA QUE ELAS ME FAZEM

(José Pedro Araújo)

A partir desse ponto vou dar um salto de mais dez anos no meu registro. Se alguém quiser acompanhar detalhadamente o meu dia-a-dia nesse período, que vasculhe os papéis que, como já afirmei, estão sob o colchão. Preciso ainda pedir desculpas a quem estiver lendo esses escritos em razão da letra tremida e crescida que tem saído nas últimas anotações. Tudo por conta da minha vista que já está muito fraca me forçando a rabiscar letras cada vez maiores. O pulso também já não é firme como outrora e, por esta razão, as palavras saem tremidas para o papel. Logo vou ter que parar de escrever. Está ficando impossível.
Vou recomeçar esse relato a partir do dia em que a minha prótese tornou-se completamente imprestável e eu tive que fazer uma de madeira para substituí-la.  Foi um tempo difícil para mim. Pois a que eu fiz era muito rústica e pesada. E eu tive que me adaptar a ela e suportar os ferimentos advindos do contato do local amputado com o material grosseiro. Já estava também com mais de quarenta anos de idade, e os reflexos da minha maturidade me trouxeram um pouco de tranquilidade, apesar das minhas inquietudes com relação a algumas embarcações que passaram a ancorar na ilha trazendo gente que vinha vasculhar o local em busca de algo que nunca soube o que era. Até mesmo barcos pesqueiros passaram a visitar o lugar com relativa frequência. A minha gruta bem escondida me salvou de todos esses visitantes inoportunos.
Confesso que teve ocasião em que eu pensei em revelar a minha presença. Não por confiar nas mensagens que enviavam afirmando que a guerra havia terminado. Não era por isso. Mas, digo isso com certa vergonha: sentia muita falta da presença do sexo feminino. Acordei muitas noites em um estado de excitação que estava me deixando louco. Defendia-me usando os meios que eu tinha, e por isso recorri continuamente ao processo de onanismo, como se fora um adolescente. Mas, o que fazer diante da crescente ebulição do meu sangue, do avultamento da minha lubricidade?
Não revelei a minha presença, entretanto. Corria o risco de me levarem para um campo de concentração e, dai, ficaria na mesma, pois, pelo que eu sei não costumam manter em cativeiro pessoas de sexo oposto. Então, certo dia, fui premiado com uma revista masculina que eu encontrei na praia. Pelo visto, haviam acabado de lançá-la ao mar, pois estava em excelente estado. Ato realizado por algum capitão nervoso com a desídia dos embarcadiços, mais entretidos com as fotografias do que propriamente com a mareagem?
E que presente. Havia um desfile de mulheres com os seios à mostra. Cada uma delas mais bela que a outra. Formei com ela o meu harém. Passei a gostar de um único cidadão americano: Hugh Hafner. Ou melhor: São Hugh. Pois só poderia se tratar de um santo um homem com uma ideia miraculosa daquelas.
Como já afirmei, agora estou há vinte anos por aqui. É mais ou menos isso. Já me acostumei com tudo, menos com a certeza que hoje está me chegando de que a guerra, de fato, acabou. Tudo isso porque não vejo mais os americanos por aqui.  Mesmo assim ainda me assalta de quando em quando uma desconfiança de que a guerra esteja se desenrolando em outras partes do mundo.
No mais, tudo ocorreu como sempre nesses últimos dez anos. E nós outros dez que se passaram. Apenas não sinto mais aquela vitalidade de antes, apesar de fazer caminhadas constantes pela ilha. Mas uma coisa não mudou em mim: o ódio mortal que sinto pelos americanos, ingleses, franceses, e coisa e tal. Ainda lavarei a minha honra com algum deles, é o que eu espero. Será a minha última ação em prol do meu país.
Nos anos que se se seguiram aos dez últimos, esta ilha tem sido pouco visitada. Acredito até que sei o porquê disto: o peixe está ficando escasso por aqui. De raro em raro alguém ancora um barco nas imediações, e se aventura em pesquisas. Nada mais que isto. Mas não me engano com essa aparente calmaria. Sei muito bem que os gringos ainda não esqueceram as derrotas vergonhosas que lhe impingimos aqui nessa parte do globo. A Batalha de Bataan, por exemplo, foi a mais dura derrota que lhe aplicamos. Com um exército formado por cerca de 50.000 homens, vencemos o inimigo muito mais numeroso e entrincheirado.  Depois, para fazer o mundo se esquecer da vergonhosa derrota, passaram a criticar o herói japonês que chefiava as nossas tropas e nos deu essa vitória inesquecível, o general Homma, anunciando que ele havia causado um verdadeiro holocausto ao organizar uma marcha na qual levou os prisioneiros até outros campos de concentração. Nessa caminhada milhares pereceram. Tudo desculpa, jogo de cena, propaganda enganosa para obliterar o grande feito. E por conta disso, sei que nunca engoliram a vergonha e devem estar a nossa procura para a vingança final.
No mais, o meu problema de vistas é o que mais me preocupa. Já não consigo mais ler bem os meus livros ou revistas. E isso me trouxe um profundo ressentimento. Por que será que encontro de tudo nessas areias, menos um par de óculos que me sirva? Ai já é sofrimento demais. Isolado e sem poder me divertir com uma leitura sequer. Será que já não está na hora de me entregar aos meus inimigos? Talvez, passado tantos anos, não guardem mais tanto ódio dos adversários. Já não vejo as notícias que me levem a crer que a guerra ainda esteja em curso. Fala-se em guerra em muitos pontos do planeta, menos envolvendo o meu Japão. E isso só pode significar que realmente a guerra que eu lutei já acabou.
Mesmo assim, fazer o quê? A essa altura meus pais já se foram, e nada mais me resta dos meus parentes conhecidos, ou dos meus amigos mais próximos. E nessas horas, ao pensar assim, decido que aqui é o meu lugar. Afinal, já vivi nessa ilha mais do dobro da vida vivida na minha pátria. Depois, tenho uma sina a cumprir. Ainda me falta aniquilar pelo menos um dos meus inimigos. E aqui é mais fácil de encontrá-los e poder consumar a minha vingança.
Pelos meus cálculos, estamos próximos da virada do milênio. Já devo estar com mais de setenta e cinco anos de idade, e não saberia mais o que fazer se voltasse à minha terra. Tenho superado muitas enfermidades, mas sinto que ao término de cada uma delas o meu corpo fica mais debilitado. Aí recorro às técnica dos meus ancestrais para mantê-lo em bom estado. Uso a técnica do hara hachi bu, e pratico o radio taiso, a minha ginástica matinal, para mantê-lo ativo, alerta.
Meus dias estão que é uma calmaria só. Nada acontece nesse ponto perdido do mundo. Apenas vejo algumas embarcações passarem ao largo, mas, nunca mais nenhuma delas voltou a ancorar próxima a ilha.  Sem receio de aparecer alguém por aqui, estou passando meu tempo desenvolvendo tarefas caseiras, esperando o tempo passar e isso não é bom. Não é bom porque não me traz nenhuma emoção, faz-me baixar a guarda, ficar menos alerta. Até mesmo as minhas armadilhas, sistema que implantei no entorno da minha caverna, nunca mais conferi para ver se ainda funcionam a contento. Estou ficando muito acomodado. E isso me leva a me perguntar sempre: quando o meu inimigo por aqui chegar, estarei preparado para ele? É uma preocupação.

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