quarta-feira, 19 de abril de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XXVI)



ELE CHEGOU!
(José Pedro Araújo)

“Recentemente aconteceu um fato que me deixou em estado de máximo alerta: um americano resolveu se estabelecer aqui na ilha. E, pelo visto, pensa em demora-se por aqui, o que me leva a seguinte conclusão: é a última cartada dos meus inimigos para me capturar. Agora tenho certeza disso. Mas, apesar de bem mais jovem que eu, acho que ele terá dificuldades de concluir o que veio aqui fazer. E eu vou aproveitar o ensejo para realizar a minha desforra. Sei que outros virão e que, depois que eu eliminar este primeiro gringo, terão certeza de que eu estou ainda por aqui, mas, isto não tem a menor importância para mim. Talvez até tenha a oportunidade de levar mais que um comigo. Com este, vou esperar para um momento propício para consumar a minha vingança. E acredito que não será difícil, já que conheço melhor que ele todos os caminhos e reentrâncias deste chão. E por último, tenho um plano para mim também. Escapar daqui.
Hoje fui conhecer o lugar em que ele se alojou no outro lado da ilha e vi que construiu um barraco com o material que conseguiu apanhar pela praia. E, pelo visto, já está com alguns dias por aqui, pois a sua morada, apesar de muito mal erguida, deve ter levado alguns dias para ser concluída. Passei parte do dia observando a sua movimentação para aprender os seus hábitos, mas vi também que é um homem bastante jovem, alto e forte. Por isso, nada de me aproximar demais dele. Tenho que atacá-lo de longe, mas isso não será um problema para mim. Com o meu arco e as minhas flechas, não terei dificuldades em abatê-lo; só terei que esperar pelo momento ideal.
Foi assim que eu passei a monitorá-lo diariamente. E observei que ele já se comporta com certa despreocupação, diferentemente de quando o vi pela primeira vez. Isso só comprova que o tal ainda não tem certeza de que eu estou por aqui. Mas, ao mesmo tempo, vejo que as suas pesquisas continuam a ser realizadas diariamente. Vejo-o andar pela praia ou pelo interior da ilha, ou em busca de frutos, ou a procura por indícios da presença de alguém.
Veja como são as coisas: hoje fui surpreendido pelo meu adversário. Estava preparando a minha alimentação quando o meu sistema de alarme disparou avisando-me da presença de estranhos. E antes que eu concluísse ser algum animal vadio, vi o meu inimigo abaixar-se para observar algo. Depois disso, prosseguiu observando os fios da minha armadilha. O miserável descobriu facilmente o meu sistema de defesa. Mais que isso. Encontrou a minha moradia. E eu pensando que ele estava se comportando despreocupadamente. Na verdade, é muito mais esperto do que eu imaginava. Mas, cometeu um erro. Veio se entregar na boca do leão.
Felizmente a minha vista ainda me permite ver com alguma clareza à distância. Não como era antes, mas, com boa visibilidade. Da entrada da minha caverna disparei a primeira seta com alguma ansiedade, o que me fez errar por pouco. Pelo menos me pareceu isso. E o meu inimigo, alertado pelo meu disparo, correu desabaladamente pelo mato, procurando fugir das outras flechas que disparei contra ele. Sumiu no mato. Pronto. Desperdicei a chance de abatê-lo hoje e talvez não tenha outra chance tão real. E o pior: ele também já sabia onde eu morava, de modo que estávamos empatados nesse quesito. Só que eu ainda tenho algumas cartas na manga que posso jogar.
Reforcei a minha proteção e me mantive em alerta total nos dias subsequentes. Mais que isso. Monitorei com cuidado os passos dados pelo meu opositor. No segundo dia após a visita que ele me fez vi que saia da sua cabana com algo nas mãos que não conseguiu identificar. Esperei alguns minutos e fui até a borda da floresta, mas o perdi de vista. Ele tinha ido longe. Então aproveitei para me aproximar mais do seu barraco, mas não entrei, preferi voltar para casa. Observei, contudo, que entrar naquele amontoado de tábuas era coisa para principiante.
Dia seguinte, manhã chuvosa, estava eu a pensar no meu inimigo, quando ouvi um baque surdo próximo da entrada da minha morada. Apanhei o arco com a aldrava e sai cuidadosamente para a porta da caverna e só tive tempo de ver o miserável fugindo por entre as árvores em desabalada carreira. Depois de alguns momentos, coração já mais calmo, fui até ao local da minha armadilha e observei que a mesma havia sido desarmada, mas que não lograra sucesso. Se tivesse caído naquele buraco cheio de pontas afiadas, a partida estaria liquidada. Voltei rapidamente com a certeza de que o meu adversário era um homem de muita sorte. E isso era um grande problema. Retornei para lá mais uma vez para rearmá-la. E ao verificar melhor, vi que um maldito galho atravessado sobre a fossa mortal havia ajudado o infeliz a escapar mais uma vez. Foi o meu primeiro ato falho. Deixar aquele galho no local em que estava fora imprudente. Engoli o meu orgulho e passei a me policiar melhor. Sempre haveria outra chance para me redimir do meu fracasso. O meu adversário estava aceso demais e logo nos encontraríamos outra vez para um ajuste de contas.
No dia seguinte, postei-me, ainda de madrugada, próximo ao seu barraco e fiquei esperando que saísse. Dava para ver as réstias de luz lá dentro. A chuva caia insistentemente mais uma vez aumentando o meu desconforto. Estava ali todo ensopado enquanto ele deveria estar ainda sob as cobertas, foi o pensamento que tive. E isso me enfureceu. Nesse dia ele demorou a dar o ar da sua graça. Somente muito mais tarde vi quando saiu outra vez com algo nas mãos. E não o vi mais. Andava rápido, enquanto eu claudicava. Resolvi retornar e qual não foi a minha surpresa ao ver algumas coisas pregadas em árvores já próximas ao meu esconderijo. Alarmei-me. Talvez ainda estivesse por ali neste dia. Embrenhei-me no mato, pois temia que ele tivesse encontrado a minha gruta e fiquei longo tempo observando das imediações. Ao final de várias horas de espera resolvi entrar na minha casa e vi que ele não havia chegado até lá, para alívio meu. Passado algum tempo, nervos já aquietados, fui verificar nas imediações e observei que o que ele havia deixado pregado nas árvores eram pedaços de papelão com alguma coisa escrita.
As mensagens por ele deixadas acenderam em mim outro sinal de alerta. Meu inimigo propunha confabular comigo. Devia achar-me presa fácil. Arranquei as placas com furor e ali nasceu uma certeza: precisava me livrar do meu oponente rapidamente. Ele estava ficando muito confiante. Mas, antes, precisava dar uma resposta para ele, de modo que não restassem dúvidas de que não me intimidava. A noite foi passada quase em claro. Achava que o infeliz poderia pensar em se acercar de mim procurando me achar a dormir. O dia já ia amanhecendo quando ouvi um grito. Não tive dúvidas de que era dele. E isso aconteceu muito próximo da entrada da minha gruta. Sai desesperado com a arma pronta para disparar quando vi que ele tentava fugir mais uma vez. Disparei a primeira flecha e acho que o acertei. Mas ele não parou de correr e logo estava fora de alcance dos meus disparos.
Recriminei-me por ter perdido mais uma oportunidade de me livrar dele. Passei o resto do dia com uma enxaqueca terrível. A minha calma nipônica estava sendo abalada em decorrência das minhas falhas. Resolvi tomar a iniciativa e fui atrás dele. Cheguei até o seu barraco e fiquei a espreita. Nesta manhã ele saiu ainda mais cedo, o que acendeu o meu alerta e o elevou ao nível mais alto daqueles dias. Então resolvi entrar no seu barraco. Forcei a porta e não encontrei dificuldade para abri-la. Como eu pensava. Mas o que encontrei lá dentro me alarmou. Meu inimigo estava bem instalado, apesar a péssima aparência exterior, e parecia com planos para uma longa temporada. Apanhei algumas coisas e, ao sair, deixei a cabeça de uma pequena iguana que eu havia levado pregada na porta. Era o meu último aviso.
Surpresa também encontrei ao retornar... desculpem, não está dando mais. Quase não consigo mais escrever. A vista já está embaçada demais e o pulso ficou tão trêmulo que a escrita está ficando muito ruim.  Há anos espero por um par de óculos, mas o mar nunca me presenteou com um que, pelo menos melhorasse um pouco a minha visão. Nada. Bem, não é bem assim! Algum tempo atrás encontrei enterrada na areia uma lente de aumento já bem estragada, ralada, mais que ainda dava para ver alguma coisa. E me utilizei dela até agora. Foi a minha salvação.  Mas agora não dá mais. Nem ela é suficiente. Então, hoje decidi: vou parar por aqui. As informações que poderia repassar, já as coloquei a vossa disposição. Não consigo prosseguir. Mãos trêmulas, vista cansada. Assim é demais. Adeus! Concluo dizendo que estávamos nesse pé, nesse jogo de gato e rato, mas que logo o abaterei, pois está ficando muito atrevido”.

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