quarta-feira, 26 de abril de 2017

Diário de Um Náufrago (Capítulo XXVII)




Sozinho, definitivamente!

José Pedro Araújo

Terminei de ler o diário e um sentimento de pesar se apoderou de mim. Na última parte das suas memórias na ilha, meu ex-inimigo descrevia como se sentia perto do fim e isso o entristecia muito, podia ver isso claramente. Pior ainda, sentia-se derrotado e já sem esperança de voltar à guerra que achava ainda estar em curso. Isso também me entristeceu em razão do que eu vislumbrava para mim se permanecesse mais tempo nesta ilha remota. E, caso não achasse uma maneira de escapulir para longe daqui, estaria reservado a mim o mesmo futuro que foi destinado ao meu vizinho agora defunto.
Perambulei tristemente pela caverna, bisbilhotando aqui e ali, e foi então que observei, enfileirados no alto de uma prateleira rude, pequenos barquinhos feitos de madeira. Pareciam pequenos bibelôs, mais intui bem mais do que isso. Apanhei três deles e fiquei a observá-los com muito interesse. Tratavam-se de pequenos objetos cuidadosamente esculpidos em madeira mole e leve, talvez em pedaços de raízes. De tamanho pouco maior que um palmo, haviam sido esculpidos com graça e cuidado, e poderiam ser apresentados como belas peças de artesanato em qualquer lugar sem desonra. E eu não tinha dúvidas que haviam saído das mãos do meu japonês agora extinto. Mas, eu sabia que o seu objetivo não era aquele. Ou melhor: imaginava ter certeza. Nada de artesanato. Eram pequenas réplicas de embarcações que ele projetava e que pensava em transformar em tamanho real algum dia. Apenas modelos. Apanhei as outras duas e vi que, quase todas, se pareciam com jangadas. Fixei-me na mais graciosa delas, e senti que havia sido mais manuseada que as outras, pois mostrava marcas de continuado uso e sujeira de mãos impregnadas na madeira trabalhada.
Sai da caverna e me sentei com as costas apoiada na parede rochosa enquanto conservava nas mãos a pequena embarcação, e sob o braço mantinha o diário. Passei alguns momentos analisando aquele trabalho de competente artesão e conclui que não seria difícil reproduzi-lo em tamanho ideal para velejar em mar calmo. Era quase um tralho de marchetaria. As partes estavam unidas por finas lascas de madeira inseridas em entalhes que se ajustavam perfeitamente. E finas peças transversais fixavam e uniam fortemente o conjunto. Um pequeno mastro de madeira sustentava duas traves transversais que serviam de suporte para uma vela feita de um tecido fortemente encerado. E um pequeno branquinho em formato de caixa fora construído e poderia ser usado como assento, mas também para acondicionar alguma coisa no seu interior. A tampa do pequeno caixote em forma de banco era móvel e ao levantá-la podia-se ver o seu interior apropriado para guardar com segurança algo que se pretendesse. Estava ali uma embarcação que eu iria copiar logo que eu conseguisse juntar o material necessário.
Depositei a jangadinha ao meu lado e fiquei a olhar distraidamente para o diário que tinha em mãos. O japonesinho pensava em bater em retirada da ilha em algum momento, pensei comigo mesmo. Mas por quê? Ele, com certeza, tivera inúmeras chances de sair e havia deixado claro isso em seus escritos. Se não queria fugir dali, porque pensava em construir uma embarcação. Para usá-lo em pescarias? Para conhecer as outras ilhas que formavam aquele arquipélago perdido? Sei não. Essa incógnita não poderia ser respondida ser a ajuda de alguma outra coisa. 
Enquanto pensava meus dedos foram alisando cuidadosamente o diário, acariciando a capa encerada vagarosamente, meus olhos fitavam o horizonte distante sem nada ver. Daquele jeito quando nos perdemos em pensamentos. E foi então que senti um leve desnível na capa de trás, ou na última capa, como é chamada. Abri o diário, apalpei-a e tive certeza de que havia algo no seu interior. Encontrei uma incisão na sua parte superior e, com alguma dificuldade, consegui puxar com as ponta dos dedos, um papel dobrado em quatro partes. Desdobrei-o cuidadosamente para evitar que se rasgasse e observei que se tratava de um pequeno mapa desenhado com muito cuidado, e no qual se podia notar a presença de várias ilhas. Uma infinidade delas. Via-se ainda uma que linha sinuosa e escura coleava as ilhotas até chegar a uma que me pareceu bem maior que as outras.
Agora tinha certeza. Tratava-se de uma rota de fuga. O meu amigo pensava em construir uma embarcação para, em caso de necessidade, buscar abrigo em outro local. Mas, porque aquela ilha especificamente? Bom, aí já era querer saber demais. Mesmo assim, observei que ela ficava próxima ao mar aberto. Talvez isso esclarecesse algo.
E fiquei assim a matutar por horas. E quanto mais estudava aquele mapa, uma profunda convicção se apoderava de mim: sozinho não dava mais para ficar na ilha. E se insistisse nessa ideia iria ficar como o meu amigo defunto, pereceria ali também.
Na manhã seguinte, já levantei com o pedaço de papel nas mãos, que li e reli até ficar com os olhos ardendo. Não restavam dúvidas, tratava-se de uma rota de fuga bem estudada e cuidadosamente planejada pelo meu antigo vizinho. Esperava ele por alguma outra presença na ilha, ou eu o forcei a isso? Talvez tenha sido isso. Preparou o mapa após a minha chegada à ilha. E como tudo que saia da cabeça daquele oriental, era bem planejado, bem pensado, talvez estivesse ali uma forma segura de deixar a ilha definitivamente e buscar outro local mais transitado, um local em que ajuda fosse mais fácil de obter. Então, mãos à obra. Vamos nos utilizar do seu projeto e construir a nossa próxima embarcação com base naquele achado.
Dizem que um problema só é um problema até tomarmos uma decisão sobre ele. Depois a esperança transforma tudo em algo possível, uma meta tangível. E parecia ser assim mesmo. Fui visitado por uma energia como a muito não me acontecia. Assumi a tarefa com alegria e muita vontade de tentar novamente sair da ilha e buscar, pelo menos, um local de maior exposição. Uma rota de passagem mais usada pelos navegantes.

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