José Pedro Araújo
Constitui-se
em mais uma epopeia sertaneja das mais belas a construção de uma fábrica de
laticínios nos sertões profundos do Piauí. Denominada de Fábrica de Laticínios
dos Campos, o empreendimento localizava-se em terras pertencentes ao
conglomerado das fazendas nacionais, na parte pertencente ao município de
Oeiras, hoje Campinas do Piauí. O dono do negócio, Antônio José de Sampaio,
engenheiro químico, piauiense de Livramento, hoje José de Freitas, formado em
universidade da Suíça, vislumbrou instalar uma fábrica de beneficiamento de
leite naqueles locais ermos com o fito de aproveitar-se do potencial pecuário
ainda existente nas fazendas nacionais. A ideia deve lhe ter surgido ao
observar as vaquinhas Pardo-Suíça pastando mansamente nas encostas das
montanhas daquele país, carregando seus gigantescos chocalhos no pescoço, ou
nas incontáveis mini-indústrias de fabricação de queijo e manteiga instaladas
nas pequenas comunidades rurais espalhadas por aquele país montanhoso, mas
acessíveis.
De
outra parte, instalar uma fábrica em região tão adversa, constituía-se em
tarefa das mais difíceis e problemáticas.
O local escolhido distava 104 quilômetros de Oeiras. Nada disso, porém,
esmoreceu este homem de vontade férrea e ideia progressista.
Levada a ideia à administração
estadual, Dr. Sampaio encontrou alguma receptividade, mas, também, muitos
adversários ao seu projeto. Os debates foram acirrados e chegaram até a Câmara Federal,
no Rio de Janeiro. Não resta dúvida que a proposta tinha aparência de negócio
entre compadres, uma vez que previa a cessão por parte do governo imperial de
parte das terras das Fazendas Nacionais, juntamente com todo o efetivo animal
que existia nelas. Pelo contrato
assinando em 26.04.1889, Dr. Sampaio receberia as 17 fazendas dos Departamentos
de Nazaré e Canindé (subdivididas por ele em 24 propriedades), munidas de todos
os equipamentos existentes nelas e todo o seu efetivo pecuário, calculado em
17.000 bovinos e 1.507 equinos, durante um período de 9 (nove) anos. Esta, entretanto, foi a primeira tentativa
real de uma ocupação dirigida implementada no estado, uma vez que entre
suas cláusulas principais do arrendamento existia a obrigatoriedade do contratado
“fundar um ou mais núcleos coloniais formados de nacionais e estrangeiros,
sendo metade, pelo menos, de estrangeiros, mantendo à sua custa o
Estabelecimento Rural de São Pedro de Alcântara com o fim de acolher libertos
menores e dar-lhes instrução primária, artística, industrial e zootécnica”.
Deveria
ainda criar e manter à sua custa uma estação meteorológica, desenvolver em
grande escala a criação de gado lanígero e introduzir outras espécies; mandar
vir da Europa às suas expensas, pessoal habilitado para o preparo dos produtos
e montar um estabelecimento para abater o gado e preparar carne seca (charque),
além de, é claro, montar a fábrica de laticínios e desenvolver lavouras de
cereais. Desembolsaria anualmente ainda, pela utilização do patrimônio, a
quantia de 20 contos de réis. Uma fortuna para a época. Deveria ainda, em prazo
exíguo, realizar o inventário de todo o rebanho existente nas fazendas naquele
momento. Esta última exigência lhe traria terríveis dores de cabeça, dada às
dificuldades que enfrentaria para contar um rebanho numeroso e disperso em
várias e extensas propriedades, em um período de seca devastadora.
O contrato consignava textualmente
que o arrendatário iniciaria o pagamento pelo aluguel dos bens contratados,
quando estivesse em pleno uso e gozo daquele patrimônio. E mais, como o rebanho
era a parte mais valiosa dos bens recebidos, somente após a sua contagem final
e ferra, estaria concretizada a posse em definitivo dos bens. A empreitada
levou dois anos para ser concluída, em razão das enormes dificuldades que o
trabalho encerrava, mas, também, por negligência e sabedoria do arrendatário.
Acontece
que os ventos da política nacional estavam mudando. No mesmo ano em que Sampaio
assinou o contrato de arrendamento, estabeleceu-se a república no país, ocasião
que muitos dos seus inimigos se utilizaram para voltar à carga, obtendo êxito inicial.
Alegando quebra de contrato, por falta de pagamento de duas parcelas do aluguel
já vencidas, o Ministro Tristão Alencar Araripe rescindiu unilateralmente o
contrato firmado, em 09 de abril de 1891, e determinou que as terras fossem
postas em leilão imediatamente, no que pese existirem documentos emitidos pelos
funcionários da fazenda pública afirmando que o arrendatário ainda não havia
entrando em plena posse e uso dos bens. Com muito custo, pressões políticas e
um alentado e bem consubstanciado documento enviado ao Presidente da República,
Marechal Floriano Peixoto, o contrato das fazendas estaduais seria retomado.
Corria já o ano de 1893. Passara-se dois anos desde o atrapalhado ato de
cancelamento do contrato.
Ao governo, caberia o repasse das
terras e do gado, mas também havia uma cláusula que previa a venda das fazendas
ao arrendatário ao término do contrato por 400 contos de réis, além de
proporcionar a vinda de 500 imigrantes estrangeiros.
No dia 09 de abril do ano de 1897, a
fábrica foi inaugurada com a presença das mais expressivas autoridades civis e
eclesiásticas da época. Mas, antes fora preciso investir vultosa soma de
recursos próprios para adquirir os equipamentos e maquinários diretamente na
Suíça, e realizar também o seu custosíssimo transporte até o local escolhido. A
imensa caldeira, e todo o resto da engrenagem da usina de pasteurização, foram
desembarcados no litoral piauiense e seguiram em embarcações menores até o
porto fluvial de Colônia, onde hoje se localiza a cidade de Floriano, nas
margens do rio Parnaíba. Era preciso, entretanto, empreender o restante da
viagem por terra, num trecho de cerca de 240 quilômetros. O transporte deste
pesado material envolveu uma logística de guerra, uma vez que não havia
estradas e, para empreender a travessia dos rios Itaueira e Canindé, foi
preciso até mesmo construir pontes de madeira a fim de que os carros de boi
pudessem transpor estes obstáculos naturais. A operação durou várias semanas
até que o material chegasse ao destino final. Somente o transporte do
maquinário já daria matéria primária para a redação de um bom livro de
aventuras.
Em
seu livro, Maranduba, a autora Odete Vieira da Rocha afirma que “o Dr.
Sampaio trouxe da Suíça um carroção de ferro e engatou em juntas de bois e
mandou cobrir a estrada com milhares de couros de bois para que o carroção
pudesse deslizar com a caldeira. Sem exagero, só no transporte da caldeira
morreram mais de mil juntas de bois, de espinhaço quebrado, golfando sangue.
Não andavam dois metros e caíam arrebentados”. Há aqui, naturalmente, um
pouco de fantasia e exagero na recuperação da memória daquela epopeia. Mas, sem
dúvidas nenhuma, muitos bois de carro devem ter perecido no trajeto. Os
exageros, contudo, servem para glamourizar
mais ainda o feito notável daquele bravo piauiense.
Para a elaboração do projeto e a construção
do prédio da fábrica, foi contratado o engenheiro alemão Alfredo Modrack,
responsável por muitas obras importantes neste país, como também pela
elaboração da planta e pela construção do prédio do Teatro 4 de Setembro, em
Teresina. É possível constatar pelo menos uma viagem de Modrack para a região.
Em documentos apresentados por Sampaio quando recorreu da rescisão do seu contrato
com o governo, foi apresentada relação de despesas efetuadas por ele. E entre
estes, um documento emitido pela Companhia de Navegação a Vapor do Rio Parnaíba
no qual o engenheiro responsável pela obra de construção do prédio da fábrica
de laticínios embarcou com destino à Colônia no vapor Santo Estevão, no dia 1º de agosto de 1890, ao custo de 33$900 réis.
Ocupava, segundo o documento, as melhores posições na embarcação,
localizando-se à ré do vapor.
A tarefa de construir um edifício
naqueles sertões também não era nada fácil, visto que até mesmo os tijolos que
seriam utilizados na elevação das paredes do prédio tiveram que ser preparados
nas imediações da obra, com barro trazido de um local distante. A mesma coisa
aconteceu com a água utilizada na sua preparação, e na construção em si.
Mecânicos foram trazidos de fora para a montagem das máquinas e da caldeira,
como um velho italiano chamado João Monte Santo (abrasileirando, naturalmente).
Mas, apesar de todos esses percalços, a obra foi concluída e a fábrica entrou
em operação.
Operários
especializados na fabricação do produto final foram também trazidos de fora.
Até mesmo um grupo de 40 italianos chegou a ser levado até o estabelecimento
rural, na Colônia. Destes, a história aponta que a metade se negou a ficar em
um local tão distante da civilização e com clima tão seco e quente, após a
morte de cerca de quinze crianças por difteria. Os que ficaram, especialistas
na produção de queijo e manteiga e na operação das máquinas, contribuíram para
a capacitação dos outros operários nativos.
A indústria instalada, que chegou a
ser a maior da América Latina neste seguimento, em que pese oferecer produtos
de alta qualidade, passou a sofrer dificuldades para colocar a produção no
mercado em razão da sua localização pouco estratégica e do mercado local muito
pequeno. Em meados dos anos 40, após sucessivas mudanças de mão, as máquinas
foram desligadas e a fábrica fechou suas portas. Findava assim, tristemente, um
empreendimento que reunia ali todas as esperanças dos piauienses por melhores
dias para aquela região pobre e desassistida.
Foi um grande sonho. O dr. Sampaio certamente reencarnou no nosso contemporâneo Alberto Silva, que felizmente, conseguiu realizar alguns de seus sonhos.
ResponderExcluirUma história esquecida pelos governantes...história que poderia ser vivida pelas crianças e até mesmo adultos de hoje...histórias do meu Piauí
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