Os conflitos
pela posse da terra se arrastam até os dias de hoje no Brasil e, pelo andar da
carruagem, não tem data próxima para acabar. Se hoje o assunto divide as
pessoas em prós e contras em apaixonado debate, imagine-se o que acontecia lá
pelo final da década de 70, quando os militares ainda estavam no poder e
abominavam qualquer forma de protesto. O chamado Bico do Papagaio é uma região
de solos fertilíssimos, e florestas luxuriantes, encravada entre os rios
Tocantins e Araguaia, no norte do estado do Tocantins. A partir dos anos
sessenta, e posteriormente à abertura da transamazônica, milhares de famílias
de trabalhadores rurais, a maioria expulsa de suas terras nordestinas pela seca
inclemente, escolheu essa região de terras férteis e água em abundância para se
situarem.
O exuberante
rio Araguaia corre à esquerda do Tocantins por centenas de quilômetros no rumo
norte até entrar neste último em um ângulo que vai se fechando à medida que um
se aproxima do outro. E o desenho formado na aproximação desses dois imensos
drenos fluviais, toma um aspecto da cabeça e, finalmente, do bico de um
papagaio. Por isso o nome com que a região passou a ser conhecida. E dentro
dessa Mesopotâmia, milhares e milhares de hectares de terra boa para o plantio
de gêneros alimentícios, mas também para a criação de animais, passou a ser
alvo de sangrenta disputa.
No final dos
anos setenta se estabeleceu na região um religioso italiano chamado Nicola
Arpone. Enviado pela CPT para prestar assistência aos trabalhadores rurais
acossados pelos fazendeiros e grileiros que ocupavam desordenadamente a região,
o religioso logo organizou as comunidades rurais para a defesa de suas posses. Como
parte da sua estratégia, passou a estimular a formação de grupos de pessoas que
vivam na periferia de São Sebastião do Tocantins, Augustinópolis, Sampaio e
Buriti, para procederem à ocupação dos grandes latifúndios existentes na
região. Essas terras, normalmente em poder de grupos econômicos de fora do
estado, vivam praticamente sem nenhuma exploração e em total descumprimento da
sua função social. E por conta dos graves problemas fundiários ali existentes,
o governo declarou sub judice uma extensa faixa de terra que ia desde São Sebastião
do Tocantins, situado bem no Bico do papagaio, a Porto Nacional, englobando
milhões de hectares. O ato suspendia a validade dos registros de todas as
terras da região, em razão da grande quantidade de títulos falsos de terra que
circulava na região. Os tais grileiros imperavam na região, e a comercialização
de terras tomou impulso sem precedentes.
Nicola Arpone
se servia da igreja do município e das capelas erigidas nas outras comunidades,
para reunir os trabalhadores ao término da missa. A notícia sobre as ações do
religioso se espalharam rapidamente e logo a reação dos grandes proprietários e
latinfundiários sobre as autoridades constituídas começou a surtir efeitos. Certo
dia, quando os sindicalistas faziam uma reunião no povoado Sampaio, um
helicóptero do exército sobrevoou o local e disparou rajadas de metralhadoras
no largo fronteiriço à capela. Houve grande correria e desespero. Dizia-se na
época que mulheres perderam crianças e que muitos velhos morreram de ataque
cardíaco. Essas notícias faziam parte da política de informação e contra
informação dos envolvidos no conflito que se iniciava. Mas, o certo é que o
desespero foi grande naquele dia.
Retrocedo um
pouco no tempo para dizer que cerca de um mês antes deste relato, estive em São
Sebastião do Tocantins para observar a movimentação dos ditos sem terra. Num
dia de sábado, desloquei-me para o município acima referido para levantar
informações sobre as ocorrências que eram de interesse do INCRA. Fui escolhido
exatamente porque era um dos mais novos na repartição, e um desconhecido para os
sindicalistas da região a ser visitada.
Chegamos cedo
à cidade e, como já havíamos previamente acertado com algumas pessoas
conhecidas, nos dirigimos ao rio para tomar banho. O local escolhido foi uma
“coroa” no meio do rio, onde algumas pessoas já se encontravam. Conduzíamos um
isopor com algumas cervejas e refrigerantes. Era a nossa parte da brincadeira.
Aos nativos coube a tarefa de apanhar o peixe no rio e preparar o tira-gosto.
Tomei conhecimento naquele dia de uma iguaria muito apreciada pelos
ribeirinhos: a carne de uma tartaruga chamada Tracajá. Mas a forma de preparo
do quelônio me afastou dele. Pegava-se o bicho vivo, sangrava-o e, em seguida,
sem retirar suas vísceras, ele era colocado com o casco para baixo para assar
sobre uma fogueira acesa. Depois de considerado pronto é que ele era aberto e tinha
as vísceras extraídas. Na cavidade formada, após a retirada das vísceras, ficava
um liquido esverdeado. Repugnou-me aquilo. Não conseguiu comer nem um naco da
carne branca do anfíbio. Os colegas de farra riram a valer do meu escrúpulo e diziam
que eu não sabia o que estava perdendo. Sobrou mais para eles do petisco que
comiam com indisfarçável prazer.
Mas o meu
objetivo ali era outro. Bebi pouco e comi menos ainda.
À tarde, por
volta das duas horas, parte da população acorreu ao templo católico para
assistir à missa. Fomos também. O traje não era muito adequado e, por isso,
chamamos muito a atenção dos circunstantes. A missa continuou, contudo.
Terminada a parte litúrgica daquela tarde, começou a reunião dos presentes com
o pessoal do sindicato. O palestrante daquela tarde seria o famoso Nicola
Arpone, além de duas religiosas que lhe faziam companhia sempre. Acredito que
francesas também. Mal começou a reunião, e o esperto religioso logo deu pela
nossa presença. E então mudou completamente o discurso. Até o término do
encontro só se ouviu mensagens religiosas. Uma frustração. Voltei para
Araguatins sem ouvir o tal discurso inflamado que se afirmava ser a tônica das
reuniões do religioso com a comunidade.
22 de julho de
1979. Manhã de domingo. Um mês depois. Um helicóptero militar de tamanho
avantajado, com uma metralhadora, também de dimensões assombrosas, apontada
para fora da aeronave, baixa de repente na praça em frente ao prédio do INCRA
em Araguatins. E em meio à poeira levantada, um grupo de militares desembarca
dele conduzindo três pessoas algemadas. Já no interior do prédio todos se
dirigiram para a sala do executor, chefe do projeto fundiário. E lá procederam ao
interrogatório dos prisioneiros.
A imagem de um
dos homens que permaneceu no helicóptero, lá fora, era de botar medo. Segurando
a metralhadora com suas possantes mãos, o indivíduo encarava a plateia que ia
se formando como se fosse disparar a arma a qualquer momento. O homenzarrão
tinha o rosto pintado de preto e vestia-se com roupas camufladas de combate, e
do rosto saltavam dois olhos vermelhos e ameaçadores. Como se para ampliar o
ambiente dantesco, a aeronave continuava com os motores ligados enquanto o
restante do grupo se mantinha com os prisioneiros no interior do prédio. A
barulheira era infernal, e a poeira tornava o ambiente lúgubre.
Nunca tive a
curiosidade de perguntar para o executor do projeto se tinha havido um contato
prévio dos militares com ele. Mas é bem provável que sim, pois quando os homens
chegaram, já estávamos na frente da repartição para recebê-los. Poucas pessoas
receberam permissão para entrar no prédio naquele domingo. Reconheci entre os
três homens conduzidos algemados, o presidente do Sindicato Rural de São
Sebastião e o Secretário da entidade. Os três estavam com um aspecto
lastimável, pareciam ter sido judiados no rápido trajeto aéreo entre São
Sebastião e Araguatins.
Reiniciado o
interrogatório, os militares perguntavam-lhes, insistentemente, pelo paradeiro
de Nicola Arpone. Nesses momentos os homens negavam saber onde o religioso se
encontrava, e recebiam safanões em troca. Depois de alguns momentos de profunda
consternação ao vermos a sede da instituição sendo utilizada para outras
finalidades menos nobres, vi quando um dos militares aplicou um telefone com as
duas mãos em forma de concha nos ouvidos do presidente do sindicato. O golpe
surdo me causou revolta e principiei um protesto. Mas rapidamente fui convidado
a me retirar do recinto. Recebi ordens para ir para casa.
Parece que a
secção de torturas fez efeitos, pois logo a aeronave levantou voo com todos os
que nela haviam chegado. Somente depois, ficamos sabendo que voaram em direção à
cidade de Wanderlândia, situada nas margens da rodovia Belém-Brasília.
Lá conseguiram
capturar e aprisionar o religioso, retirando-o da casa paroquial. O assunto
tomou conta do noticiário nacional e ganhou as páginas da imprensa mundial. Mas,
apesar da CPT e da CNBB pressionarem as autoridades pela libertação do
religioso italiano, não se sabia ao certo o seu paradeiro. As informações
chegadas até nós eram de que o italiano estava sendo levado de um lugar para o
outro da floresta enquanto era torturado. Queriam que ele emitisse informações
sobre o movimento organizado por ele no Araguaia.
Precisamos
lembrar que poucos anos antes, essa mesma região foi alvo de um movimento
armado que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia. Dezenas de pessoas
perderam a vida em decorrência dos combates entre as forças do governo e os
ditos revolucionários. O receio do governo, portanto, era que o problema
voltasse novamente a ocorrer, agora sob o disfarce de uma luta pelo acesso à
terra. O tempo se encarregou de mostrar que o movimento ali iniciado tinha como
objetivo apenas a luta pela ocupação de milhares e milhares de hectares de
terras usurpadas por grileiros de todos os lugares que iniciavam uma corrida
rumo ao norte do país. E que, enquanto isso, os pequenos trabalhadores rurais
que já vinham desbravando a região há tantos e tantos anos, passaram a sofrer
pressão para abandonarem a região que haviam desbravado à custa do suor e do
sangue dos seus familiares. Região inóspita e insalubre que agora virara objeto
da ambição de fazendeiros e madeireiros de todos os cantos do país.
Conheci Nicola Arpone aos 10 anos de idade em 1973, e por morar ao lado da Igreja de Santa Teresa em Imperatriz Maranhão, Nicola se tornou amigo de meus pais. Admirava sua luta em prol da defesa dos mais necessitados. Me tornei adolescente, e a amizade com ele se tornou mais forte. No episódio do seu sequestro em 1979, quando o libertaram, minha casa foi uma das primeiras que visitou em Imperatriz, por força da sua amizade com meus pais e comigo, pois na época era um jovem de 16 anos, católico praticante. Lembro como se fosse hoje, quando da morte do Papa Paulo VI, em 6 de agosto de 1978, Nicola estava conversando com meus pais no fundo do quintal de casa, e quando me viu foi logo me informando a triste noticia, Por incrível coincidência, um mês e meio depois, estava ele em casa novamente, quando me informou que o papa tinha morrido, e eu falei que ele já tinha me falado isso no início de agosto, foi quando ele me falou que tinha sido o Papa João Paulo I, o sucessor de Paulo VI. Nicola fez parte da minha infância e adolescência e parte da juventude, exemplo a ser seguido. Perdemos o contato com ele, se hoje estiver vivo é um senhor com seus setenta e poucos anos.
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