José Pedro Araújo
- É isso mesmo que o senhor está
ouvindo. Tô nessa vida por gosto e por desgosto. Por gosto porque gosto da
minha profissão como gostaria de qualquer outra. Por desgosto, porque comecei
ela para vingar a morte do meu pai. Hoje não sinto nem uma coisa, nem outra.
Pra mim tanto faz matar um cachorro rabugento, como atirar num prefeito, por
contrato. Aliás, quer saber? Talvez sinta mais pena do cachorro. Não sinto
alegria, nem tristeza, somente um leve sentimento do dever cumprido.
- ...
- Só fico aqui matutando como
seria minha vida se meu pai não tivesse morrido daquela forma. Talvez ainda
estivesse vivendo naquele pedaço de chão seco de caatinga, plantando,
plantando, e pouco colhendo. No fundo, devo agradecer ao desinfeliz que acertou
um tiro de lazarina nele. Usou um pé de panela em lugar de chumbo e quase arranca a
cabeça lá dele. É isso, meu dotô. Fui forçado a procurar outra profissão. E me dei
bem. O senhor não concorda? Hoje não importa pra mim se o inverno foi bom, se a
mandioca pegou bem, ou se a seca devorou o meu roçado. Trabalho é o que não me
falta. Faça bom inverno ou que não caia uma gota d’água no chão.
- ...
- É o que eu digo sempre: o
sujeito pode ganhar dinheiro até mesmo na profissão de coveiro. É só inventar
uma maneira de melhorar a vida dos que vão deixar lá seus defuntos. Hoje têm
uns cemitérios tão arrumados que mais parece um jardim. E o pessoal ainda paga
uma boa grana pra manter o lugar bem bonito. Todo mês. Especialista, dotô!
Tem que ser especialista na profissão que você escolhe. Eu até posso dizer que
sou um dotô também de tão especializado que sou. Nunca deixei um contratante meu
em má situação. Pagamento feito, mercadoria entregue. Esse é um de meus lema. Por
isso não me falta contrato.
- ...
- Claro que pra chegar aonde
cheguei, precisei abater muito pé-de-chinelo. Gentinha, tá compreendendo?
Comecei assim, de baixo. Como todo mundo começa na vida, se não herdar. E no
começo era dinheiro miúdo pelo contrato, couro de rato, merreca, que às vezes
não dava pra chegar no fim do mês. Depois fui melhorando o meu prestígio,
fazendo defunto de elite. Até mesmo uns políticos conhecidos passaram pela alça
da mira do meu papo-amarelo. E quando você consegue cumprir bem um desses
contratos, ai a fama aumenta muito. E fama aumentando, aumenta os ganhos da
gente! Cheguei tão longe nesse meu negócio, que tive que abandonar o sertão do
Seridó. Lá não tinha mais cliente pra mim. E eu não posso voltar atrás nos
valores cobrados, senão todo mundo vai querer me pagar pouco, chorar miséria,
essas coisas. Olha, apareceu até mulher querendo se livrar do marido e propondo
me pagar com o apurado dela. Imagina! Não trabalho em consignação. Isso não!
Não trabalho mais também só com meiúca. Metade no ato do contrato, metade
depois do serviço terminado. Isso é pra principiante. Quero tudo na minha mão.
Pois, como já sou muito famoso, não podem me ver na região aonde o trabalho
aconteceu. Tenho que desaparecer por uns tempos, aparecer rapidamente em outros
lugares. Forjar o meu álibi. Não posso voltar pra cobrar a outra metade. Por
isso todo mundo sabe que eu vivo disso, mas ninguém tem provas pra me botar na
cadeia.
- ...
Sou muito profissional. Nem pra irmão
eu trabalho de graça. Aliás, o último que matei de graça foi por vingança. Foi
o caso que já lhe contei; o caso do meu pai. Coisa de menino afobado. Hoje
posso dizer que sou da paz. É! Um defensor da não violência. Prefiro os
argumentos, seu dotô! Os argumentos, tá entendendo? Outro dia mesmo, caboclinho
queria fazer fama comigo e andou me dando uns tabefes pra ver minha reação.
Puxei o tresoitão somente pra botar ele pra correr dali. Mas, não acho certo
matar por uma discussão a toa, um tabefezinho qualquer. Sou pela paz, como disse. Morte
mesmo, só com contrato.
- ...
- Não! Ninguém reluta mais.
Quando vem alguém me procurar já tá ciente de só trabalho assim, dotô. Outra
coisa que não admito é refazer o contrato. Contrato feito, temos que cumprir
tudo direitinho. Você me paga, eu te dou um cadáver em troca. Simples assim.
Ninguém pode voltar atrás.
- ...
- Pense bem antes de fazer o contrato comigo. Dinheiro bateu no meu bolso é meu.
Não devolvo. Por outro lado, sempre cumpri o acordo. Não pode dizer que se
arrependeu, que não quer mais o defunto. Eu sempre faço o que o patrão me pagou
pra fazer, dotô. Depois, já passei dias estudando o sujeito, zangando com ele,
opilando o meu fígado. E depois de criar ódio pelo cabra, pode encomendar o
paletó dele. Outro dia um político me contratou para mandar mais cedo um
adversário dele pro andar de cima. Contrato firmado, dinheiro entregue, passei
a fazer o meu ritual. Cuspi na foto do miserável, amassei, desamassei a bicha,
passei noites sem dormir dado o ódio que comecei a sentir por ele. Ai veio o
miserável do contratante e disse que não queria mais a morte do sujeito, que já
tinham feito uma parceria muito vantajosa pra ele. Eu respondi que não tinha
mais jeito. Podia ir se acostumando com a ideia que a coisa era questão de
dias. Ora vê se pode! Não tem palavra não, cabra! Eu tenho. E por isso meu nome
está limpo na praça.
- ...
- Prefiro no campo. Lá você fica
tranquilo. Procuro uma boa posição atrás de um pau ou de uma pedra. É só fazer
a coisa de modo a ninguém te ver. Na cidade isso é impossível. Sempre vai
aparecer alguém pra te denunciar. Depois, fico ali esperando, tranquilo. Uma
hora a caça passa na frente do meu trabuco. E também é mais fácil pra fugir do
local.
- ...
- Não! Fico tranquilo, esperando.
Aproveito pra cortar as unhas, pensar na vida. Planejar a fuga pra voltar logo
pro meu canto aqui. Aqui é o meu escritório. Aqui recebo meus clientes. Tenho
que voltar logo.
- ...
- Tenho um lema sim! “Esse não
morre mais!” Passou na frente do meu rifle, não vai ter outra chance pra
morrer. Tô é fazendo favor pro cabra! Todo mundo vai morrer um dia mesmo! E a maioria
das pessoas sofre que nem o diabo antes de partir dessa pra melhor. Uma vitima
minha não sofre nadinha de nada. O pau quebrou, em segundos ele já está
viajando pro além. Os outros, não! Sofrem dias, às vezes meses, gastando tudo o
que tinha pra diminuir as dores. E depois morre do mesmo jeito! É por isso que me
chamam de anjo negro. Me orgulho desse nome. Anjo, seu dotô. Me chamam de anjo.
Então devem está feliz com o meu trabalho. Se não, era fii da peste pra cá, incompetente
pra lá! Essas coisas. Sou um anjo vingador, meu dotô! Já me disseram isso! Abro
os caminhos pros meus clientes. Sou, com muita honra, Tibúrcio, o anjo negro.
Aquele que foi enviado para te afastar das tristezas da vida. Morto não sente
dor, não paga dívida. Pra que melhor, ingrato!
- ...
- Não preciso me oferecer pra
ninguém. Nem fazer propaganda preciso fazer. Cada contrato bem cumprido é que é
a minha propaganda. E quem quiser me contratar, que venha até aqui! Olha lá
aquele homem bem apessoado que acabou de dobrar na curva. Tá vindo atrás dos
meus serviços. Pode ter certeza. Só dois tipos de gente passa por aqui: os
clientes, ou algum incompetente que se perdeu no caminho. É! O pessoal que me
contrata é gente de bem, bem vestido, como aquele que vem lá. Pé rapado não tem
dinheiro pra contratar um homem famoso como eu! Se aparecer outro tipo de gente
por aqui, vai ter que se explicar direitinho pra mim.
- ...
- Se tenho medo de ser alguém
contratado pra me matar? Meu faro é meu guia, seu dotô! Por isso estou nessa
lida há tanto tempo. Conheço um da minha classe de longe, e só pelo cheiro.
Aquele lá é um molóide, monta mal, se segura na sela como se fosse cair a
qualquer instante. Um da minha iguala tem que saber se comportar em cima de uma
montaria. Se não, como vai conseguir escapar rapidamente? Oi de lá! Pode se chegar. Se sou Tibúrcio, o
anjo negro? Pode apostar que sim! Por que o patrão ai quer saber?
- ...
- Se tô disponível pra fazer um
serviço? Uma coisa que nunca fiz foi tirar férias, meu dotô! No meu ramo temos
que aproveitar o momento bom. E o preço é esse mesmo. Tá com o faz-me rir ai no
alforje? Isso é bom! Deixe-me ver.
- ...
- Mas o que é isso? Não! Não faça
isso! ... Miserável! Como fui me deixar surpreender por um novato desengonçado
desse? Só pode ser crime de vingança! Não precisava atirar na minha barriga,
infeliz! Isso é morte dolorosa e demorada! Por isso deve ser crime de vingança!
Crime por encomenda tem que ser rápido. É preciso levar notícia pro patrão que
contratou o serviço. Mas que coisa! Morto por um amarelo desse! Meu primeiro e
último erro. Peço perdão a todos os santos! Meu Padim Padre Cícero, me receba
no seu reino no céu! Como dói essas pestes encravada aqui na minha barriga! Foi
bala Dundum, senti a droga rasgando tudo. Dói e queima! Morrer de tiro de
Rossi 22! A bala nem consegue atravessar! Ô vida! Tá chorando por que, amarelo?
Para de tremer, siô!
- ...!?
- ...
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